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sábado, 1 de fevereiro de 2025

Um caso espírita, 2

Tábua de Giovanni Morelli

1) O momento em que a velha cega percorre o rosto de Gibbon com as mãos é o ápice do conto de Leskov: o momento de riso e humor (sem dúvida uma dimensão da "incontinência" meticulosamente pensada por Leskov: o riso corre solto como poderia fazê-lo a merda de um rosto que parece um ânus) e, também, o momento em que a crença no sobrenatural da princesa caia por terra: a senhora Genlis falhou, não ofereceu o oráculo que ela gostaria.

2) A cena toda é, também, uma lição de humildade - como aquela que Montaigne arma em seu ensaio sobre a experiência, também articulada em torno de um envio em direção à merda e ao cu, quando ele escreve que mesmo no trono mais alto, estamos sempre sentados sobre nosso cu (Et au plus eslevé throne du monde si ne sommes assis que sus nostre cul). E também uma reflexão sobre os prazeres baixos e a onipresença do escatológico em nossos processos psicológicos, como mostrará Freud poucas décadas depois da publicação do conto de Leskov: desde a Psicopatologia da vida cotidiana até a "dreckologia" (ou ainda, a "merdologia" de que fala  Freud em suas cartas para Fliess) que precede até mesmo a Interpretação dos sonhos, já que data de 1897.

3) A cena de Leskov, na qual um rosto se transforma em cu, pode ser vista também como uma sorte de antecipação artística (o próprio Freud não disse que foi nos poetas do passado que encontrou a doutrina psicanalítica?) da crítica aos procedimentos de controle e padronização dos corpos e rostos, sobretudo com fins policiais: não só a fisiognomonia de Lavater (e também de Goethe), mas também as impressões digitais de Francis Galton (ou mesmo a frenologia de Cesare Lombroso - e são absolutamente contemporâneos, já que Leskov nasceu em 1931 e Lombroso, em 1935), tudo isso evidentemente amarrado narrativamente por Carlo Ginzburg em seu ensaio de 1979 sobre o paradigma indiciário (que, de resto, se ocupa extensamente de Freud e de Giovanni Morelli).  


sábado, 14 de setembro de 2024

Arqueologia do descontentamento



1) Existe um sentimento de descontentamento diante da própria época, diante da própria contemporaneidade, que funciona como um fio que une e articula uma série de obras e poéticas: é possível começar com Leonardo Sciascia que, apesar de ligado à política (portanto, aos debates e às burocracias de sua época), exaltava outros tempos, outros gestos, outros interesses e sentimentos (aqueles de Voltaire, por exemplo), sempre manifestando descontentamento com o embrutecimento que diagnosticava na sociedade ao seu redor (o caso Aldo Moro é paradigmático dessa situação).

2) A partir de Sciascia, é possível prosseguir em direção àquela que é sua principal referência, Stendhal, também ele marcado pelo cultivo de um desajuste com sua própria época (e, assim como Sciascia, um descompasso que é ambivalente: Stendhal exaltou seu contemporâneo Napoleão e todas as mudanças que o Imperador desencadeou), buscando nos arquivos italianos os traços luminosos de um passado que ele reconhecia como mais condizente com sua sensibilidade (Crônicas italianas); assim como Sciascia leu Stendhal com devoção, o mesmo fez Stendhal com Montaigne: é do inventor do ensaio que fez a potência do "eu", a capacidade virtualmente infinita de dar voltas ao redor dos próprios medos e ambições, capacidade essa que é o centro da invenção ficcional do próprio Stendhal (Souvenirs d'égotisme).

3) Montaigne também é um bom exemplo da tensão entre o pertencimento do artista à própria época e seu desejo de ser sozinho, de estar isolado - Montaigne que foi prefeito de Bordeaux entre 1580 e 1581 e que também mandou construir uma torre para melhor trabalhar em solidão. E, a partir de Montaigne, é possível pensar em Plutarco, uma de suas referências constantes: vive no Império Romano (nasce por volta de 46, morre por volta de 120), mas escreve em grego; foi sacerdote, magistrado e uma espécie de diplomata; sempre atento aos meandros políticos do presente imediato, mas permanentemente ligado às camadas metafísicas da experiência (falava em Alma e em Providência).

sexta-feira, 22 de março de 2024

Diga-me o que comes


"Nunca li nem ouvi falar da frase de Marx Diga-me o que comes e eu te direi quem és na minha juventude, mas isso era óbvio para mim, eu via o que os clientes da minha mãe compravam na mercearia de acordo com o bolso deles. Eu sabia muito bem em que dia o auxílio governamental 'caía'. Dizer que 'eu sabia muito bem' não é muito preciso, era esse mundo que me moldava, não era preciso ouvir para saber. As palavras ligadas ao trabalho, à contratação e à demissão, 'fazer cortes' etc., entraram no meu vocabulário naturalmente. Eu as escutava no café, ao lado da mercearia" 

(Annie Ernaux, A escrita como faca e outros textos, trad. Mariana Delfini, Fósforo, 2023, p. 70-71).

*

"Há nações em que as pessoas se escondem ao comer. Conheço uma senhora, e das maiores, que tem essa mesma opinião de que mastigar é um gesto desagradável: que rebaixa muito a graça e a beleza das mulheres: e não gosta de se apresentar em público com fome. E conheço um homem que não tolera ver os outros comerem nem que o vejam, e foge da presença deles muito mais quando se enche do que quando se esvazia. E no império do grão-turco se encontra grande número de homens que, para se mostrarem superiores aos outros, nunca se deixam ver quando fazer suas refeições; que só fazem uma por semana; que se cortam e trincham o rosto; que nunca falam com ninguém" 

(Montaigne, "Sobre versos de Virgílio", Os ensaios, trad. Rosa Freire D'Aguiar, Penguin Companhia, 2010, p. 438-439).

domingo, 8 de outubro de 2023

O amigo de Florio



1) No segundo ensaio de seu livro Nenhuma ilha é uma ilha (intitulado "Identidade como alteridade: um debate sobre a rima na era elisabetana"), Carlo Ginzburg fala de Montaigne e da tradução dos Ensaios na Inglaterra, realizada por John Florio: "o Montaigne de Florio era o Montaigne de Shakespeare", escreve Ginzburg, indicando com isso que Shakespeare leu Montaigne em tradução e, mais do que isso, seus Ensaios foram importantes para a escrita de uma peça como A tempestade (e a partir disso, uma informação específica: foi importante para Shakespeare a leitura do ensaio de Montaigne sobre o "Novo Mundo", sobre os canibais).

2) Ginzburg, contudo, acrescenta uma nova informação, para além da leitura de Shakespeare - uma informação que diz respeito ao tradutor, Florio, que deixou a Itália, com seu pai, por motivos religiosos. Ginzburg cita o prefácio que Florio escreveu à tradução: Florio diz, aí, que na Itália alguns viam a tradução como uma subversão das universidades, citando, a esse propósito, seu "velho amigo, o Nolano", uma referência a Giordano Bruno, natural de Nola, queimado em Roma como herege em 1600 (a tradução de Florio é publicada na Inglaterra três anos depois, em 1603). 

3) Junto à menção a Giordano Bruno, incrível por si só, Florio também faz em seu prefácio um elogio da tradução: segundo ele (escreve Ginzburg), todas as ciências se originaram da tradução, uma vez que os gregos haviam aprendido todas as suas ciências dos egípcios, e os egípcios, por sua vez, tinham aprendido dos hebreus ou dos caldeus. A ideia de Ginzburg é que Montaigne caiu como uma luva na postura "aberta" que Florio compartilhava não só com o amigo Giordano Bruno, mas com outros companheiros de ofício como Samuel Daniel, autor de Defesa da rima, de 1603 (Daniel era cunhado e amigo de Florio, a quem dedicou um longo poema, no qual aparece, em determinado momento, um elogio a Montaigne).

sábado, 17 de setembro de 2022

Canonização



1) Outro ponto importante levantado por Giorgio Agamben em seu livro O Reino e o Jardim - além da relação inventiva que Dante estabelece com a filosofia de seu tempo, como comentei em outra postagem - diz respeito às armadilhas da canonização: "o paraíso terrestre de Dante é a negação do paraíso dos teólogos", escreve Agamben, e continua: "e é ao menos singular que, apesar desta evidente e peremptória contrariedade, se continue a interpretar Dante através de Tomás e a teologia escolástica - mais uma prova, se houvesse necessidade, do fato que nada torna tão obscura e ilegível uma obra quanto sua canonização" (5.8). 

2) Como escreve Borges em seu ensaio "Sobre os clássicos", incluído em Outras inquisições (1952): "Não importa o método essencial das obras canonizadas; importam a nobreza e número de problemas que suscitam". E continua: "Finjamos que os detratores de Goethe têm razão, finjamos que o valor de suas obras é avaliável em zero. Um fato continua incólume: um goetheano é uma pessoa interessada pelo universo, interessada em Shakespeare e em Espinosa, em Macpherson-Ossian e em Lavater, na poesia dos persas e na conformação das nuvens, em hexâmetros, em arquitetura, em metais, no cravo cromático de Castel e em Denis Diderot, na anatomia, nos alquimistas, nas cores, nos graciosos labirintos da arte e na evolução dos seres em tudo, é lícito afirmar, salvo nas matemáticas. O mundo limitável ou consentido pela palavra de Goethe não é menos versátil que o mundo".

3) Por fim, Borges alcança Dante: "Quase o mesmo diremos do mundo de Dante Alighieri, que abrange os mitos helênicos, a poesia virgiliana, a órbita aristotélica e platônica, as especulações de Alberto Magno e de Tomás de Aquino, as profecias hebraicas e, (desde Asín Palacios) as tradições escatológicas do Islam. O de Shakespeare confina com o de Homero, com o de Montaigne, com o de Plutarco, e antecipa em seu âmbito as involuções de Dostoiévski ou de Conrad, a ansiedade verbal de um James Joyce ou de um Mallarmé".

sexta-feira, 18 de fevereiro de 2022

Literatura / Criatura


1) A literatura e os corpos, ou ainda, no caminho indicado por Auerbach em Mimesis, a literatura e seu contato com a dimensão criatural, a relação da linguagem com a "criatura" (em Rabelais e Montaigne, por exemplo). Tudo isso ressurge com força na Itália das décadas de 1960 e 1970, com grandes leitores de Auerbach em atividade (La Divina Mimesis, por exemplo, obra inacabada que Pasolini começa a escrever em 1963 - e que sairá de forma póstuma em 1975 - indica desde o título essa peculiar mescla de Dante com Auerbach, além de testemunhar a presença decisiva de Mimesis para a formação de Pasolini). 

2) Calvino e Sciascia, por exemplo, escrevem sobre o caso de Aldo Moro (comentei um pouco aqui), com ênfase na brutalidade criatural do surgimento de seus restos mortais, dentro do porta-malas de um carro em uma rua de Roma. O corpo morto de Moro em 1978 estabelece um paralelo com o corpo morto de Mussolini em 1945, o primeiro ligado à dissolução do poder da democracia cristã (um poder discreto, ramificado e insidioso), o segundo ligado à dissolução do contato entre o Duce e o povo (um poder feito de gestos exagerados e transmissões radiofônicas, de propaganda insistente e presença permanente).

3) O destino dos cadáveres tem sido um tema recorrente na literatura argentina: em 1998, Paola Cortés Rocca e Martín Kohan publicam Imágenes de vida, relatos de muerte: Eva Perón: cuerpo y política, um livro sobre o mais famoso desses cadáveres, comentando uma série de textos que dele se ocuparam - os dois romances de Tomás Eloy Martínez; a peça de Copi de 1969, Eva Perón; o conto de Borges, "El simulacro", publicado originalmente em 1956 (hoje no livro El hacedor); "Esa mujer", conto de Rodolfo Walsh (do livro Los oficios terrestres, de 1965); "Eva Perón en la hoguera", poema de Leónidas Lamborghini; "El cadáver de la Nación", poema de Néstor Perlongher; "La señora muerta", conto de David Viñas publicado no livro Las malas costumbres, de 1963, e assim por diante (um pouco mais sobre tudo isso aqui).  

sábado, 26 de junho de 2021

Multidões


1) Na introdução que escreve ao "Montaigne de Shakespeare" (a tradução de John Florio), Stephen Greenblatt comenta como os ensaios de Montaigne foram sendo "montados" com o passar do tempo, tendo sido publicados em 1580, modificados e ampliados em 1588 e mais uma vez modificados e ampliados depois da morte de Montaigne (a partir do trabalho de Marie de Gournay, que transcreveu o material inédito e publicou a primeira edição completa em 1595). Greenblatt registra ainda que só em 1919 surge uma edição dos Ensaios que separa as camadas do texto, identificando os acréscimos posteriores de Montaigne. 

2) Montaigne, contudo, não tinha interesse em tornar visível essa estratificação, escreve Greenblatt, um efeito de homogeneidade que era intensificado pelo fato do livro ter sido impresso originalmente sem quebra de parágrafo. A segunda edição, de 1588, tem 13 novos capítulos no Livro I e cerca de 600 alterações nos livros Livros I e II, fazendo dos Ensaios um texto em aberto "no qual a passagem do tempo se faz presente", como escreve Greenblatt. Da mesma forma que não se preocupava em identificar o que veio antes e o que veio depois, Montaigne também não tinha interesse em demarcar com clareza o que era contradição e o que era desdobramento lógico de uma ideia anterior - os registros estão deliberadamente atravessados.

3) Os primeiros leitores de Montaigne (incluindo Shakespeare) entram em contato, portanto, com "um único eu que contém multidões", escreve Greenblatt, fazendo de Montaigne uma sorte de precursor de Walt Whitman. Greenblatt fala dos Ensaios como um espaço no qual "vozes muito diferentes" lutam por atenção, mais uma vez de forma estratificada e tensionada, antecipando com isso também a discussão de Bakhtin a partir de Dostoiévski (dialogismo, polifonia, distintos registros linguísticos compartilhando uma mesma página) e, até certo ponto, a dinâmica heteronímica de Fernando Pessoa (a leitura que Greenblatt propõe do Montaigne traduzido ao inglês na época de Shakespeare permite revisitar textos e autores posteriores por outra perspectiva, a partir de um conjunto alternativo de questões e coordenadas espaciais e temporais).

sexta-feira, 17 de abril de 2020

A dúvida

A dúvida como instrumento de investigação: essa poderia ser uma definição inicial da poética de Leonardo Sciascia, ao mesmo tempo um iluminista e um tradicionalista, ao mesmo tempo um europeu (um erudito interessado no atravessamento das fronteiras) e um siciliano (interessado nas minúcias e nos detalhes da irredutível experiência regional). Três figuras parecem se mesclar em Sciascia, no que diz respeito à dúvida como instrumento de investigação: o detetive que pergunta, escuta e observa; o erudito que viaja e que vasculha arquivos; o morador da cidade pequena sentado na praça (no bar, na varanda, na janela) que observa a vida social.

A dúvida leva Sciascia a rever, por exemplo, as histórias do físico Majorana (assassinado? suicida? fugitivo por conta do assombro moral diante do resultado das pesquisas atômicas?) e do escritor Raymond Roussel (que se suicida em 1933 em Palermo). Sciascia revisita a crônica jornalística dos dois casos em busca de detalhes perdidos, perspectivas deixadas de lado na pressa. Ao mesmo tempo, carrega consigo um conjunto de procedimentos retirados de seus autores prediletos, que relia constantemente (a curiosidade de Montaigne, a capacidade de observação de Stendhal, o jogo de espelhos de Pirandello).

No final de 1912+1, por exemplo (a novela que conta a história do julgamento da condessa Tiepolo, que matou o ordenança do marido militar por supostos motivos de honra), Sciascia declara abertamente aquilo que guiou o relato desde o início: ser uma homenagem a Pirandello. “Tudo era pirandelliano no caso Tiepolo”, anuncia ele, “as várias verdades, o jogo do parecer contra o ser” (algo que se aplica a um relato de Sciascia de alguns anos antes, Il teatro della memoria, lançado em 1981, sobre o caso Bruneri-Canella - o retorno de um homem que teria desaparecido durante a I Guerra Mundial (de resto, algo muito próximo do caso Martin Guerre e do caso do coronel Chabert, de Balzac, tão extensamente utilizado por Javier Marías em Os enamoramentos)).  

sexta-feira, 18 de janeiro de 2019

Rabelais, Montaigne

1) No capítulo 11 de Mimesis, Auerbach comenta a obra de Rabelais, alcançando quase ao final do texto um ponto de comparação com Montaigne (que será o foco do capítulo seguinte). Entre outros elementos envolvidos, o processo interpretativo de Auerbach abarca uma reflexão sobre o que acontece no período que vai de Dante a Rabelais/Montaigne - ou seja, o que acontece do ponto no qual a cultura medieval alcança seu clímax (a ligação estreita entre a vida terrenal e a vida metafísica, a organização metódica dos níveis, intensidades e qualidades dos sentidos, sentimentos e responsabilidades) até o ponto no qual essa cultura ainda é utilizada, mas de forma ambivalente, caótica e desregrada (a partir daquilo que Auerbach chama de realismo criatural).
2) Montaigne, 1533-1592; Rabelais, 1494-1553... No capítulo 10 de Mimesis, sobre Antoine de la Sale (1386-1462), Auerbach faz um juízo muito direto acerca das diferenças das literaturas da França e da Itália - a última já mostrando alto nível técnico-expressivo com Dante (1265-1321) e Boccaccio (1313-1375), enquanto a primeira ainda guarda certo ar medieval engessado. A própria ênfase que Auerbach dá a Rabelais e Montaigne já indica que ocorre uma mudança, tanto histórica quanto estilística, embora Auerbach não dê detalhes acerca dessa mudança de ênfase - no capítulo 13 de Mimesis, dedicado a Montaigne, Auerbach fala apenas que a Itália do período se dedicava cada vez mais a um retorno ao ideal clássico de separação dos estilos (algo completamente avesso a Rabelais/Montaigne e ao projeto do próprio Auerbach).
3) Bruno Migliorini, em sua Storia della lingua italiana (Sansoni, Firenze, 1971, p. 240), comenta esse período italiano vagamente referido por Auerbach falando de uma "crise quattrocentesca". A deriva em direção à língua vulgar é interrompida e surge um interesse renovado pelo latim clássico, com uma expansão inaudita da filologia a partir do resgate, leitura, interpretação e tradução de uma série de textos antigos (Coluccio Salutati (1332-1406) descobre as cartas de Cícero; Poggio Bracciolini (1380-1459) descobre Quintiliano e Lucrécio; é também a época de atuação de Lorenzo Valla).          

quinta-feira, 6 de dezembro de 2018

Morte do inquisidor

1) Li recentemente mais um dos tantos livrinhos de Leonardo Sciascia - Morte dell'Inquisitore, de 1964. Mais um dos livrinho híbridos de Sciascia, "saggio romanzato", entre a crônica, o conto e a historiografia. Em muitos desses seus livrinhos, Sciascia parece fazer sempre a mesma coisa, sempre do mesmo jeito, mas é algo que funciona sempre. O narrador tem um estilo conciso e ao mesmo tempo opinativo, busca mostrar uma série de perspectivas de um mesmo evento ou biografia, e ainda assim encontra espaço para se manifestar, para estabelecer sua posição.
2) Em Morte dell'Inquisitore, Sciascia usa a história de Diego La Matina para abordar a Inquisição em sua atuação na Sicília. La Matina matou seu inquisidor com um golpe na cabeça, desferido com o auxílio de seus próprios grilhões. Sciascia, em sua narração, entra e sai de arquivos, documentos, ofícios e diários de personagens os mais diversos, desde o século XVII até o XX (no primeiro caso, personagens históricos envolvidos na dominação espanhola da Sicília; no segundo caso, historiadores da Inquisição de variadas nacionalidades - na nota que encerra o livro, Sciascia escreve: "já devo ter lido tudo que há para ler sobre a Inquisição na Sicília").
3) A partir de um destino individual muito preciso, de um acontecimento mínimo na vida já mínima de uma das tantas vítimas da Inquisição - algo que Carlo Ginzburg começa a fazer mais ou menos nos mesmos anos (seu primeiro livro, I benandanti, é de 1966), Sciascia apresenta um ensaio sobre a intolerância humana e também sua capacidade de resistência; um ensaio sobre os limites tanto do fanatismo quanto do desejo de liberdade. Sciascia sempre cita os iluministas em seus livros - Voltaire, Rousseau, D'Alembert -, um exercício de resgate que Sciascia opera também no nível das ideias e dos temas que escolhe (uma postura que vem de Montaigne, outro que é citado com frequência por Sciascia, seu continuador tanto na esfera de influência imediata do ensaio, saggio romanzato, mas também por conta de seu fascínio pelos extremos do humano, as situações de exceção - tanto aqueles de brutalidade quanto de elevação espiritual). 

quinta-feira, 29 de março de 2018

Eu, o monstro

1) Uma passagem de Montaigne, do ensaio "Sobre os coxos", diz o seguinte: "Até esta hora, todos os milagres e acontecimentos estranhos têm se escondido de mim. Não vi no mundo monstro e milagre mais manifesto do que eu mesmo. O costume e o tempo nos familiarizam com qualquer estranheza: quanto mais me examino e me conheço, mais minha deformidade me espanta e menos me compreendo". Toda uma cadeia de associações se apresenta aqui, antecipando tantos recursos e ferramentas do pensamento que ainda estavam por vir.
2) Descartes, no século seguinte ao de Montaigne, e operando nessa mesma zona limítrofe entre o francês e o latim, vai retornar à intuição do "eu como milagre", esquecendo, contudo, a dimensão monstruosa. O cogito de Descartes se arma a partir do "eu", da investigação contínua tal como posta por Montaigne - "quanto mais me examino e me conheço..." -, mas deixa de lado a "deformidade", a dimensão da dúvida, da falha. É digno de nota também a forma como Montaigne tanto incorpora quanto relativiza o religioso, a dimensão do humano como contraponto ao divino - o eu é, sim, um milagre, mas é ele necessariamente também um monstro.
3) Um ponto futuro dessa deriva poderia ser Freud, ou mesmo Chklóvski (o formalismo russo como contemporâneo da segunda tópica freudiana, por exemplo). A Interpretação dos sonhos, de Freud, guarda muitas semelhanças com os Ensaios de Montaigne, a primeira delas sendo precisamente a disposição de comentar extensamente o "eu" como "monstro" e "milagre" (a Interpretação de Freud é uma intensificação metódica do procedimento dos Ensaios, ou seja, tomar a si como ponto de partida e a partir daí confrontar todo o conhecimento disponível). No que diz respeito a Chklóvski e ao formalismo, a intuição do "estranhamento" e da "desfamiliarização" (também o V-Effekt de Brecht) também está anunciada por Montaigne: "o costume e o tempo nos familiarizam com qualquer estranheza", escreve ele, dizendo em seguida que sua auto-examinação (e consequentemente sua escrita, sua ficção de si) garante um "espanto" constante. 

terça-feira, 27 de fevereiro de 2018

A cidade natal

"A cidade natal não é torre de igreja e não é praça com fonte, nem comércio florescente ou ofício; a cidade natal é um portão onde tivemos um pensamento pela primeira vez, um banco em que estivemos sentados e não compreendemos alguma coisa, um instante sob a água corrente quando numa vertigem a lembrança nos leva a uma existência antiga; um pedregulho liso lapidado que encontramos na velha gaveta da escrivaninha e com o qual já não sabemos o que pretendíamos; o chapéu do professor de religião pontilhado por uma macha marrom, a ansiedade antes de uma aula de história, certas brincadeiras que ninguém entende e relutamos em explicar, uma mentira com consequências sonhadas durante a vida inteira, um objeto nas mãos de alguém, um som inesquecível que ouvimos de noite pela janela aberta, a luz de um quarto, duas franjas na barra de uma cortina" (Sándor Márai, Rebeldes, trad. Paulo Schiller, Cia das Letras, 2004, p. 56).
*
"O mundo não passa de um perene balanço: todas as coisas se movimentam incessantemente, a Terra, os rochedos do Cáucaso, as pirâmides do Egito; tanto com o movimento geral como com o seu. A própria constância não é outra coisa além de um movimento mais lânguido. Não posso ter certeza de meu objeto: ele segue confuso e cambaleante, com uma embriaguez natural. Pego-o neste ponto, como ele é, no instante em que me interesso por ele. Não pinto o ser, pinto a passagem: não a passagem de uma idade à outra, ou como diz o povo, de sete em sete anos, mas de dia em dia, de minuto em minuto. Devo adaptar minha história ao momento" (Montaigne, "Sobre o arrependimento", Os ensaios: uma seleção, trad. Rosa Freire d'Aguiar, Penguin-Companhia, 2010, p. 346). 

quinta-feira, 21 de dezembro de 2017

Coçar a perna

"Montaigne, no ensaio Sobre a crueldade, escrevendo sobre os últimos minutos da vida de Sócrates, conta como dizem que ele coçou a perna. 'Aquele arrepio de prazer que ele sente ao coçar a perna depois que os ferros foram retirados não indica uma semelhante doçura e alegria em sua alma, por estar livre dos incômodos passados e até mesmo por enfrentar o conhecimento das coisas por vir?'. Mas enquanto Montaigne é essencialmente pré-romanesco, porque tem uma tendência a moralizar tais detalhes, e vê esse momento como um exemplo não de acidente, mas de vigor moral, um escritor posterior como Tolstói considerará esse gesto acidental ou automático - a vida apenas desejando instintivamente prolongar-se para além da morte. Penso no momento testemunhado por Pierre em Guerra e paz, quando ele vê um jovem russo, vendado e prestes a ser executado por um esquadrão de fuzilamento, remexer nervoso sua venda, talvez para se sentir um pouco mais confortável" (James Wood, A coisa mais próxima da vida, trad. Célia Euvaldo, Sesi-SP editora, 2017, p. 62-63).
*
"A única razão que se pode apresentar é que ler os clássicos é melhor do que não ler os clássicos. E se alguém objetar que não vale a pena tanto esforço, citarei Cioran (não um clássico, pelo menos por enquanto, mas um pensador contemporâneo que só agora [1981] começa a ser traduzido na Itália): 'Enquanto era preparada a cicuta, Sócrates estava aprendendo uma ária com a flauta. 'Para que lhe servirá?', perguntaram-lhe. 'Para aprender esta ária antes de morrer''" (Italo Calvino, Por que ler os clássicos, Cia das Letras, 1993, p. 16).

domingo, 23 de abril de 2017

O juiz e o acusado

Recentemente, retomei a frase com que Elias Canetti define Karl Kraus: Ele próprio era o acusador, ele próprio era o juiz. Não havia advogado de defesa, isto era supérfluo, pois ninguém era acusado sem que o merecesse. 

Essa oscilação de posições, tão típica de Kafka e sua noção de processo (que Agamben analisa em O que resta de Auschwitz a partir de Salvatore Satta, até chegar em Primo Levi e a noção de zona cinzenta entre o carrasco e a vítima), já estava em Montaigne e sua "retórica da declamação" (na declamação, as duas noções essenciais, interligadas, são a de exercício e a de ficção).

Frank Lestringant fala de dois ensaios de Montaigne, "Dos Canibais" e "Dos coches", como "duas declamações em eco". Toda uma cosmogonia se arma no percurso entre um ensaio e outro; início e fim se tocam. Escreve Lestringant: "'Dos Canibais' tratava da idade de ouro dos livres Brasileiros do litoral atlântico. 'Dos coches' denuncia a destruição do Novo Mundo pelos Espanhóis, em particular a ruína total dos impérios asteca e inca. O encadeamento entre um capítulo e o outro torna mais evidente o contraste entre a gênese e o apocalipse, entre os primórdios serenos da História e seus tumultos e acidentes brutais".
Lestringant também retoma o comentário de Roger Caillois às Cartas persas, de Montesquieu - Caillois fala de uma "revolução sociológica" na qual "a palavra passa do observador para o observado, e o suposto bárbaro torna-se juiz do europeu". Mas, no caso de Montaigne, escreve Lestringant, !esse refluxo da palavra para o emissor se opera segundo modalidades ligeiramente diferentes em cada caso. A reversão do ponto de vista é ilustrada, em "Dos Canibais", pela inversão oral, e, em "Dos coches", é apresentada no encontro entre os índios da terra firme e os conquistadores". 

O círculo de certa forma se fecha em Massa e poder, o monumental trabalho de Canetti, publicado em 1960 mas iniciado já na década de 1920, no qual Canetti recorre a traços de inúmeras culturas "primitivas", dentre elas as dos índios sul-americanos. Segundo Lestringant, foram cinco as principais fontes de Montaigne para seus ensaios, André Thevet, Jean de Léry, Francisco Lopez de Gomara, Gonzalo Fernandes de Oviedo e Bartolomé de las Casas; ainda que apenas um deles apareça na bibliografia de Massa e poder (Jean de Léry, de onde Canetti retira uma longa citação descrevendo uma festa tupinambá), outros nomes contemporâneos estão presentes: Cabeza de Vaca (Naufragios y comentarios), Pedro Cieza de León (Crónica del Perú) e Hernán Cortés (que Canetti grafa Hernando Cortes, seguindo a tradução britânica que usou). 

segunda-feira, 11 de abril de 2016

Poloneses, 5.1

Witold e Rita
1) Uma constante que se nota é o uso da língua francesa: Caillois frisando que não apenas o Manuscrito, mas que toda obra de Potocki foi escrita em francês; Sebald citando trechos das cartas de Conrad à família escritas em francês; a leitura de Montaigne da História dos reis e príncipes da Polônia na tradução francesa. Condiz com a série, portanto, o Curso de filosofia em seis horas e quinze minutos, que Witold Gombrowicz ditou em francês (o curso foi dado de 27 de abril a 25 de maio de 1969, tendo como audiência sua mulher, Marie Rita Labrosse, que anotou as lições, e seu colaborador dos últimos anos, Dominique de Roux). 
2) Na penúltima sessão, dedicada a Nietzsche, Gombrowicz escreve já na primeira linha: "Nietzsche, como Kant e Schopenhauer, era polonês!", e uma nota de rodapé desenvolve o conteúdo da exclamação: "A cidade natal de Kant, Königsberg (hoje Caliningrado ou Kaliningrado, na Rússia), era reivindicada pelos poloneses, que a chamavam de Królewiec. Schopenhauer era de Danzig, também reivindicada pelos poloneses com o nome de Gdánsk. Nietzsche, mesmo tendo nascido em Röcken, na Saxônia prussiana, cultivou a ideia, que parece sem fundamento, segundo a qual seus ancestrais eram nobres poloneses ('Eu sou um cavalheiro polonês puro-sangue', Ecce Homo, 1888)".
3) (Witold Gombrowicz, Curso de filosofia em seis horas e quinze minutos, José Olympio, 2011, p. 142. A tradução é complicada: Teresa Bulhões Carvalho da Fonseca (tradutora de Kundera) traduziu o Curso do francês ao português; o prefácio de Francesco Cataluccio - tradutor italiano de algumas obras de Gombrowicz e de Bruno Schulz -, valioso e bem informado, acompanha a edição francesa usada como base para a brasileira, tendo sido traduzido do italiano ao francês por Danièle Valin, e do francês ao português por T. B. C. da F. Houve uma edição francesa do Curso anterior à italiana, que foi preparada e prefaciada por Cataluccio - a reedição francesa, portanto, fonte da brasileira, incorpora o prefácio de Cataluccio e muito provavelmente suas notas (não fica claro na edição brasileira quem responde pelas notas - como essa que explica como Nietzsche, Kant e Schopenhauer podem ser poloneses -, mas o tom de algumas delas acompanha de perto aquele que Cataluccio usa no prefácio).
A "árvore da filosofia" de Gombrowicz, desenhada no verso de uma folha do Banco Polaco, de Buenos Aires

sábado, 26 de março de 2016

Poloneses, 2

Jan Potocki
Poloneses e suas partidas, seus deslocamentos (um dos livros de cabeceira de Montaigne foi História dos reis e príncipes da Polônia, de Herburt de Fulstin). Roger Caillois, no prefácio da edição francesa de 1958 do Manuscrito encontrado em Saragoça (reformulado e expandido em 1966), comenta vida e obra do autor, Jean/Jan Potocki (1761-1815), e sua "reputação singular de ser um excêntrico e um erudito". O Manuscrito foi escrito em francês, nos informa Caillois, como tudo que escreveu Potocki, membro de "ilustre família polonesa". Em julho de 1788, Potocki voa de balão com o aeronauta francês Blanchard. "A Europa inteira vibra com estas primeiras tentativas de conquistar o céu", escreve Caillois, e continua: "Blanchard acrescentou à barquinha de seu aeróstato um velame móvel e uma hélice vertical. Potocki sobe nela juntamente com um criado turco que faz questão de acompanhá-lo e um poodle. O balão permanece no ar por aproximadamente uma hora, depois aterrissa em Wola, não longe de Varsóvia. Uns cavalheiros vieram buscar os aeronautas para escoltá-los em triunfo de volta à capital. O rei mandou cunhar na Casa da Moeda uma medalha comemorativa. Potocki é o herói do dia". Para o Manuscrito, Potocki parte de Boccaccio (a divisão das histórias em jornadas), recorrendo a elementos do romance gótico, do orientalismo de William Beckford e à "magia de Cazotte". Caillois defende que "sob a máscara da ficção, Potocki esboça na realidade um curso de história comparada das religiões" (lembrando que Caillois publica O homem e o sagrado em 1939), e completa: "Potocki não renegou seus mestres. Ele é seguramente Enciclopedista, mas é antes de tudo enciclopédico" (Manuscrito encontrado em Saragoça. Trad. Lília Ledon da Silva. Brasiliense, 1988, p. 35 - a tradução mais recente do Manuscrito de Potocki ao espanhol foi feita por César Aira).

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Poloneses e suas partidas, seus deslocamentos - esse é o cerne de Badenheim 1939, a novela que Aharon Appelfeld publica em 1978. A cidade do título é uma pequena cidade no interior da Áustria que vive da alta temporada de veraneio e dos gastos dos turistas. De repente, o "Departamento Sanitário" começa a se anunciar cada vez mais presente na vida dos habitantes, até o aviso de que todos os habitantes judeus deveriam passar em seus escritórios para cadastro. É então que surge a "Polônia", que sabemos ser a Polônia ocupada pelos nazistas, a Polônia dos campos, anunciada pelo Departamento como futuro ponto de realocação desses habitantes. Appelfeld vai pouco a pouco desenvolvendo a trama a partir da incredulidade, da confiança desses habitantes de Badenheim na profundidade de sua assimilação à identidade austríaca - a visita do Departamento "transtornou Martin", um dos personagens, escreve Appelfeld, "ele acreditava nas autoridades e, por isso, culpava-se a si mesmo". A novela termina antes da chegada à Polônia, a Polônia nunca está de fato presente, ela paira e oscila entre essas fantasias - as promessas do Departamento, a negação dos que acreditam na assimilação ("Eu sou, como você, austríaco. Meus antepassados? Não sei. Talvez, quem sabe? O que importa quem foram meus antepassados?"), a celebração daqueles que ainda lembram da Polônia, que celebram o retorno, que retomam a língua, que falam da música na Polônia, tão superior, até o abandono coletivo ao final ("Os campos verdes e úmidos espalhavam-se ao redor. Uma delicada cerração matutina subia lânguida nos ares. Como era fácil a transição, eles mal a sentiam. O dono do hotel empurrava a cadeira de rodas do rabino como se tivesse nascido para essa tarefa").

(Aharon Appelfeld. Badenheim 1939 / Tzili: novelas. trad. Rifka Berezin e Nora Rosenfeld. São Paulo: Summus, 1986 - Philip Roth fala de Badenheim 1939 nos seguintes termos: "pede-se ao leitor - de modo enfático, ao meu ver - que veja a transformação de uma agradável estação de águas austríaca frequentada por judeus no sinistro palco da 'relocalização' dos judeus para a Polônia como um processo de algum modo análogo aos eventos que precedem o Holocausto de Hitler", Entre nós, trad. Paulo Henriques Britto, Cia das Letras, 2008, p. 37).

terça-feira, 2 de fevereiro de 2016

Markson, Sócrates

Markson começa Wittgenstein's Mistress com três epígrafes: a primeira de Kierkegaard, a segunda de Bertrand Russell e a última do próprio Wittgenstein (a única delas que não é técnica, é quase já uma anedota, um biografema, dizendo: Entendo muito bem a razão das crianças adorarem areia). A frase de Russell, no entanto, também não chega a ser técnica, embora envolva certo juízo e prepare o caminho para o enigma da frase seguinte de Wittgenstein - Russell relata que pediu referências de Wittgenstein a G. E. Moore, que teve uma impressão positiva porque Wittgenstein se mostrava puzzled durante suas aulas (perplexo? reflexivo? incrédulo? impressionado?). Wittgenstein é introduzido como portador de uma qualidade de fazer-se ver, de uma espécie de ligação entre semblante e pensamento (o que é importante em um romance que faz contínuas referências ao "autorretrato"; a narradora de WM inclusive retorna algumas vezes à declaração biográfica de que era possível ver Wittgenstein pensando, seu esforço, suas feições transtornadas).
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Kierkegaard é mencionado por Lukács em seu ensaio sobre o ensaio - sobre a essência e a forma do ensaio -, posto lado a lado com Montaigne e Platão como um dos três maiores realizadores do gênero. Markson propõe a ligação entre Kierkegaard e Wittgenstein, sublinhando a eloquência gestual deste último. Lukács aproxima Kierkegaard e Platão por conta do estilo e da vastidão de seus imaginações, o que me faz recordar mais uma vez o ensaio de George Steiner:
Com uma arte perfeitamente comparável à de Shakespeare ou Dickens, os diálogos de Platão realizam a mediação corporal de todo discurso articulado. A bem conhecida feiura de Sócrates, sua incrível resistência física nas batalhas ou bebedeiras, sua retórica gestual e sua gestão dos tempos de repouso, a alternância dos passeios e das pausas, encarnam o advento do argumento e do sentido. A brusca mudança de atitude de Sócrates, de repente absorto em profunda reflexão, num momento despropositado e num local inapropriado, é tão essencial à aplicação de seu ensinamento quanto as palavras efetivamente pronunciadas (p. 78-79).
Em outras palavras, era possível ver Sócrates pensando. O Wittgenstein de Markson é bastante semelhante a esse Sócrates que Steiner vê em Platão, ensinando de forma gestual, com atitudes e posturas por vezes absurdas, relembrado por sua intransigência, por sua autenticidade de comportamento (como Italo Calvino escreve no ensaio "Por que ler os clássicos?", citando Cioran e sua anedota sobre Sócrates, que decidiu aprender uma ária na flauta antes de morrer - por quê?, perguntam; ora, para aprender uma ária na flauta antes de morrer). Essa carga gestual de Sócrates, tão enfatizada por Steiner, também foi enfatizada no neoplatonismo do Renascimento italiano, tão profundamente atento à sobrevivência dessas formas que permitem a ligação entre semblante e pensamento (as fórmulas de pathos de Warburg).  

sexta-feira, 18 de dezembro de 2015

Portas abertas, 3

1) Em Portas abertas, Sciascia apresenta uma sala de tribunal da década de 1930 que ainda carrega, por baixo das pinturas das paredes, as mensagens dos condenados pela Inquisição. Sem necessariamente colocar em questão a "tragédia" ou a "farsa" (não me parece importar a Sciascia tal categorização, tendo em vista o fascismo e a Inquisição), essa imagem do palimpsesto em Sciascia lembra a abertura do 18 de brumário de Marx:
Em alguma passagem de suas obras, Hegel comenta que todos os grandes fatos e todos os grandes personagens da história mundial são encenados, por assim dizer, duas vezes. (Marx, O 18 de brumário de Luís Bonaparte, trad. Nélio Schneider, Boitempo, 2011, p. 25).
E linhas depois Marx fala dos "espíritos do passado" que emprestam seus nomes aos revolucionários, fala das "ressurreições de mortos" protagonizadas pelas revoluções, fala do "fantasma da antiga revolução" e da "máscara mortuária de Napoleão". O próprio Napoleão já havia surgido no relato de Sciascia - quando o juiz fala de sua percepção anedótica da história - e é precisamente na continuação desse diálogo que um dos procuradores fala ao juiz, já muito tempo depois do caso encerrado:
Dentro de alguns meses vou-me embora; deixo este escritório, esta profissão. Mas estou me acostumando: estou começando a pensar coisas nas quais nunca pensei antes. Por exemplo: que sempre fui um morto que sepultava outros mortos. E aliás: todos nós somos, neste nosso ofício de acusar e julgar. E mais: me pergunto se, na função de mortos que sepultam mortos, temos realmente o direito de sepultar mortos por pena capital. (Sciascia, Portas abertas, trad. Mário Fondelli, Rocco, p. 83).
(Nesse ponto específico tratado por Sciascia - a questão da pena capital -, vale mencionar que em um de seus últimos seminários, Jacques Derrida estava se ocupando desse debate e usando como referência de trabalho aquele mesmo autor-base de Sciascia, Montaigne (é possível relembrar também a discussão de Derrida a respeito da pena capital contra Blanchot, o "instante de sua morte")).
2) Essa articulação entre a literatura e a "ressurreição dos mortos" leva em direção a outro livro escrito sob o signo napoleônico, O coronel Chabert, de Balzac. Apesar de vivo, já em sua primeira aparição surge "a sensação desbotada dessa fisionomia cadavérica", como escreve Balzac. O próprio Chabert exclama, ironicamente:
Estive enterrado sob os mortos, mas agora estou enterrado sob os vivos, sob certidões, sob fatos, sob a sociedade inteira, que quer me fazer voltar para debaixo da terra! (Balzac, O coronel Chabert, trad. Eduardo Brandão, Cia das Letras, 2012, p. 28).
3) São três elementos que ligam a novela de Sciascia, Portas abertas, à novela de Balzac, O coronel Chabert: em primeiro lugar, a escrita infame da Inquisição que brota das paredes da "casa da Justiça"; em segundo lugar, Napoleão como exemplo da história anedótica e menor; em terceiro, o trabalho do advogado ligado à morte, à manutenção daquilo que deve ser limpo e mantido distante da sociedade (uma espécie de sobrevivência do antigo mito dos "devoradores de pecados"). O advogado que tentou garantir os direitos de Chabert reflete de forma semelhante àquele advogado de Sciascia, já na última página da novela de Balzac, muitos anos depois:
Sabe, meu caro, que em nossa sociedade existem três homens, o padre, o médico e o homem de lei, que não podem ter estima pelo mundo? Eles usam trajes negros, talvez por guardarem o luto de todas as virtudes, de todas as ilusões. (O coronel Chabert, p. 82).
Poucas linhas adiante ele completa: "nossos escritórios são esgotos que não se podem limpar". Talvez isso possa aprofundar a visão do leitor em direção ao universo de Sciascia, tão ligado à lei, ao processo e à justiça dúbia, sempre maleável, suscetível aos desvios da história. Para Sciascia, no entanto, ao contrário de Balzac, não são o padre, o médico e o homem de lei que guardam o luto "de todas as ilusões" - talvez o filósofo, talvez o romancista.  

terça-feira, 15 de dezembro de 2015

Portas abertas, 2

1) Portas abertas, a novela que Sciascia publica em 1987, faz uma espécie de contraponto em direção a A bruxa e o capitão, que Sciascia publica no ano anterior, 1986. Na nota que encerra este último livro, Sciascia escreve que seus temas foram "a injustiça, a intolerância, o fanatismo", que em A bruxa e o capitão se revelam por meio da Inquisição (e do processo factual contra Caterina Medici, uma empregada de casa do século XVII) e em Portas abertas por meio do fascismo de Mussolini (e da tentativa de resgate da pena de morte na Palermo da década de 1930). Duas pontas distantes da história italiana, portanto, se unem ao compartilhar esse tema triplo, "injustiça, intolerância, fanatismo".
2) Em Portas abertas, já no fim do relato e do processo, Sciascia escreve que acusado, jurados e juiz "estavam agora na câmara do conselho, que como local não era menos desagradável do que a sala das sessões. Das paredes que haviam sido caiadas antes que as repartições judiciárias para lá se transferissem, por baixo do véu de cal transpareciam, ou apareciam claramente nas rachaduras, os desenhos e as escritas que os prisioneiros da Inquisição ali tinham deixado ao longo de dois séculos" (Sciascia, Portas abertas, trad. Mário Fondelli, Rocco, 1990, p. 70). A história é um pentimento que a "aguarrás do tempo" vai aos poucos revelando.
3) Na "nota" que encerra A bruxa e o capitão, Sciascia dá o nome do principal responsável por seu esforço continuado de denúncia da injustiça, intolerância e fanatismo em variados tempos e espaços: Montaigne (que aparece não apenas em A bruxa e o capitão, mas em uma série de outros ensaios e novelas de Sciascia). ""Nada faço sem alegria", dizia Montaigne: e os seus Essais são o livro mais feliz jamais foi escrito", escreve Sciascia em A bruxa e o capitão. E em Portas abertas, Sciascia incorpora a célebre frase do ensaio sobre o coxos - Apres tout, c’est mettre ses conjectures à bien haut pris que d’en faire cuire un homme tout vif - no contexto da pena de morte na Itália fascista: ""Afinal de contas, significa atribuir um peso e tanto às próprias opiniões, se por elas manda-se grelhar vivo um homem". Belas palavras: tudo não passa de opinião, merecedora de relativo e risível valor: menos aquela de não mandar grelhar vivo um homem somente porque não compartilha certas opiniões. E menos aquela, aqui, hoje, no ano de 1937 (no ano de 1987), de não permitir que a humanidade, o direito, a lei - e afinal o Estado que a filosofia idealista e a doutrina fascista então chamavam de ético - respondesse ao assassinato com o assassinato" (Portas abertas, p. 20).    

domingo, 6 de setembro de 2015

Para cada história, uma linguagem

1) Em Infância e história, Giorgio Agamben procura relacionar linguagem, história e experiência, numa trajetória que vai de Montaigne a Benjamin com o objetivo de pensar os inúmeros pontos de contato entre a constituição do sujeito (e de comunidades, logo, da política) e o domínio ou não-domínio da linguagem ("o problema, na realidade, não é o de saber se a língua é uma menschliche Erfindung ou uma gottliche Gabe, pois ambas as hipóteses se interpenetram - do ponto de vista das ciências humanas - no mito: mas o de tomar consciência de que a origem da linguagem deve necessariamente situar-se em um ponto de fratura da oposição contínua de diacrônico e sincrônico, histórico e estrutural, no qual se possa captar a unidade-diferença de invenção e dom, humano e não humano, palavra e infância" - Infância e história, trad. Henrique Burigo, UFMG, 2008, p. 61).
2) O bárbaro é aquele que está de fora da linguagem (o bar-bar-bar dos persas, essa mímese derrisória do discurso do outro), a linguagem que inaugura uma história possível entre outras (Montaigne reconhece a possibilidade de uma história e uma linguagem nos "selvagens" e faz isso com o simples gesto de estranhar aquilo que era mais cotidiano aos europeus - mendigos nas ruas, guerras, por exemplo).
3) Assim como Lacan fala do inconsciente como uma linguagem, essa inauguração da história está ligada sempre a uma linguagem, não à linguagem, simplesmente (é da ordem do suplemento, da fuga da centralidade e da essência, para dizê-lo com Derrida - que, assim como Agamben, também faz uso da reflexão de Montaigne acerca do etnocentrismo da concepção de linguagem vigente na história do pensamento ocidental em seu ensaio sobre o jogo e o discurso das ciências humanas).