terça-feira, 28 de junho de 2022

Ano zero


1) Ainda no mesmo ensaio dedicado a Ernesto de Martino ("Verso 'La fine del mondo'. Sull'ultimo progetto di De Martino", La lettera uccide, Adelphi, 2021), Carlo Ginzburg recupera parte de uma intervenção sua feita em uma mesa-redonda em 1979. Tudo começa, explica Ginzburg, com a introdução escrita por Renato Solmi para a edição italiana de Minima Moralia, de Adorno; nesse texto, Solmi propõe uma convergência entre Il mondo magico (de Ernesto de Martino) e Dialética do Esclarecimento, de Adorno e Horkheimer. Aproveitando a sugestão de Solmi, Ginzburg propõe, na referida mesa-redonda (depois publicada no número 40 da revista Quaderni storici), uma categoria chamada "livros do ano zero" (p. 202).

2) A categoria faz homenagem ao filme de Roberto Rossellini, Germania anno zero, de 1948. Além dos livros de Ernesto de Martino e de Adorno/Horkheimer, Ginzburg faz referência às teses sobre o conceito de história, de Walter Benjamin, Apologia da história, de Marc Bloch, Une histoire modèle, de Raymond Queneau, Paura della libertà, de Carlo Levi, "todos escritos nos anos 40", escreve Ginzburg, e continua: "A ameaça de uma possível vitória do nazismo gerou o impulso para repensar a história desde as raízes, ou - no caso de Bloch - a repensar desde as raízes os objetivos e limites do conhecimento histórico" (p. 202).

3) Queneau escreve seu livro durante a ocupação nazista da França ("C'est en juillet 1942 que j'ai commencé d'écrire..."), mescla de diário íntimo e ensaio historiográfico que rumina os modelos de "eterno retorno" de Vico, Hegel e Nietzsche; Carlo Levi começa a escrever Paura della libertà entre 1939 e 1940, sorte de ensaio-romance, reflexão histórico-filosófica-antropológica sobre o fascismo e a guerra (na década de 1970, quando comenta o livro de Levi em Quaderni storici, Ginzburg faz referência à segunda edição, de 1975, que sai logo após a morte do autor; em 2018, que é também o ano que indica Ginzburg como aquele da última revisão de seu ensaio sobre Ernesto di Martino, a editora Neri Pozza lança uma terceira edição do livro de Carlo Levi, agora com uma introdução de Giorgio Agamben). 

quarta-feira, 15 de junho de 2022

Fantasmas da minha vida


1) Em ensaio dedicado a Ernesto de Martino (publicado em seu livro La lettera uccide, Adelphi, 2021), Carlo Ginzburg aproxima as pesquisas do antropólogo italiano àquelas de Aby Warburg, especialmente no que diz respeito à relação entre "esquizofrenia" e "magia". Ginzburg cita um trecho de um ensaio de Giorgio Pasquali sobre Warburg, publicado em 1930, um ano após a morte do autor de O ritual da serpente: "A doença foi, em certo sentido, a continuação de sua pesquisa científica", escreve Pasquali sobre Warburg, cita Ginzburg, e continua: "Warburg nunca parou de observar a si próprio, e de descobrir em si próprio o homem primitivo que, em sua magia, encontra sua lógica" (p. 207).

2) Observar em si próprio a "doença", a ciência e o percurso que costura uma coisa na outra: uma estratégia de trabalho que condensa subjetividade e coletividade, um arco que leva da Interpretação dos sonhos de Freud (publicado em novembro de 1899, mas com data de 1900) ao livro de Mark Fisher, Ghosts of my life: writings on depression, hauntology and lost futures, de 2014 (disponível no Brasil pela editora Autonomia Literária, traduzido como Fantasmas da minha vida: escritos sobre depressão, assombrologia e futuros perdidos), passando por livros como Minima Moralia, de Adorno, Tristes trópicos, de Lévi-Strauss, Fragmentos de um discurso amoroso, de Barthes, Diario de la hepatitis, de César Aira, e assim por diante.

3) Ginzburg acrescenta ainda que um livro foi decisivo para as ideias de Ernesto de Martino sobre as relações entre esquizofrenia e magia: Das Archaisch-Primitive Erleben und Denken der Schizophrenen, publicado por Alfred Storch em 1922. O livro consta na Biblioteca Warburg, embora não exista indício de que tenha sido lido por Warburg. Ginzburg levanta a hipótese de que Warburg possa ter lido o livro de Storch durante seu internamento na clínica de Ludwig Binswanger (onde apresentou a conferência sobre o ritual da serpente em 21 de abril de 1923), uma vez que Storch e Binswanger se conheciam e trabalhavam no mesmo campo (Ginzburg acrescenta ainda que a correspondência entre Storch e Binswanger é vasta).   

sábado, 11 de junho de 2022

Alguma lei mais antiga


"Homero foi tão implacável com Helena quanto Tolstói foi com Anna. Elas fugiram na esperança de revogar o passado para construir um amor que fosse só amor. Acordam no exílio e não sentem nada além de um desgosto profundo por aquilo que parecia sonho, êxtase, o ápice da existência: a promessa de libertação que virou escravidão, o amor que não obedeceu mais ao amor, mas a alguma lei mais antiga e mais severa. Estão aqui em um reino onde a beleza e a morte, estranhamente próximas, criam uma necessidade comparável àquela da força, mais imperiosa ainda, pois oposta apenas ao simulacro de uma resistência. Helena, em seu palácio de Troia, Anna, na estação onde se jogará debaixo do trem, encontram-se diante de um sonho deteriorado e não se podem acusar de outra coisa senão de terem sido enganadas pela bruta Afrodite"

(Rachel Bespaloff, Da Ilíada, trad. Giovani Kurz, Ayiné, 2022, p. 30)