segunda-feira, 30 de janeiro de 2023

Clauriaudição



1) Na linha daquilo que faz Ernst Jünger durante sua visita ao Brasil em 1936 - analisando o céu dos trópicos e comparando ao céu conhecido, familiar, da Europa -, o protagonista do romance de Samuel Beckett de 1938, Murphy, é fascinado pela astrologia, pela capacidade de interferência dos astros na vida, na subjetividade: "O mapa celeste de Murphy, traçado por Suk", escreve Beckett, "acompanhava o infeliz nativo por onde fosse. Conhecia-o de cor e salteado e recitava-o em voz baixa enquanto caminhava" (trad. Fábio Andrade, Cia das Letras, 2022, p. 71).

2) Isso ocorre em grande medida porque, como escreve o narrador do romance, Murphy "fazia parte da classe dos eleitos que exigem que todas as coisas lhes lembrem outras" (p. 62), ou seja, um sujeito permanentemente compenetrado na decifração de signos, no entrecruzamento de analogias, referências, "assinaturas" (um elo perdido e modernista na arqueologia que faz Agamben em Signatura rerum (trad. Andrea Santurbano e Patricia Peterle, Boitempo, 2019): "Segundo Paracelso, são três os assinadores: o homem, o arqueu e as estrelas. Os sinais dos astros, que tornam possíveis as profecias e os presságios, manifestam 'a força e a virtude sobrenatural' das coisas: deles tratam as ciências divinatórias como a geomancia, a quiromancia, a fisiognomia, a hidromancia, a piromancia, a necromancia e a astronomia" (p. 46)). 

3) O mapa astral de Murphy é elaborado pelo "professor Suk" e indica, entre outros elementos, que seus "principais Atributos" são "Alma, Emoção, Clauriaudição e Silêncio"; deve "evitar a exaustão pela Palavra"; no que concerne à "Carreira", o "Nativo deve Inspirar e Liderar, como Intermediário, Promotor, Detetive, Zelador"; pedras da sorte: "Ametista e Diamante"; cores da sorte: "Amarelo-Limão": "para evitar as Calamidades, o Nativo deve incorporar um Toque na Indumentária e Doses Generosas na sua Decoração Doméstica"; anos da sorte: "1936 e 1990" (p. 37-38).

quinta-feira, 26 de janeiro de 2023

Aventura



1) No sexto capítulo de Mimesis, "A saída do cavaleiro cortês", Auerbach - com um único gesto - aproxima e distancia as canções de gesta e os romances de cavalaria utilizando dois significantes: para as primeiras, a palavra é vasselage; para os segundos, a palavra é corteisie. Essa primeira palavra, intensamente utilizada nas canções de gesta (é a cristalização de todo um contexto social), vai aos poucos desaparecendo: Chrétien de Troyes a utiliza no Erec três vezes, em Cligès e Lancelote uma única vez e depois "não mais aparece", como indica Auerbach. A segunda palavra não é mais a cristalização de um contexto social, mas de uma propriedade idealizada (fantasmática) que é perseguida, desejada - a "cortesia" é um processo em permanente desenvolvimento.

2) O ideal da "cortesia" é pessoal e absoluto, escreve Auerbach; a vasselage estava ligada ao nascimento, a corteisie está ligada a uma "educação", uma "provação constante", um sistema de "verificação" que é mantido pela "forma peculiar e estranha de acontecimento" criada pela cultura cortesã, a "aventura": a aventura é a "genuína vocação" daqueles envolvidos no ideal cortês. É esse distanciamento do mundo real que permite a sobrevivência histórica de seus elementos: alcançará, 300 anos depois, Cervantes e o Dom Quixote, "que interpretou o problema da maneira mais perfeita", escreve Auerbach  (no sexto capítulo Auerbach antecipa um personagem e um texto que só reaparecerão no capítulo 14, "A Dulcinéia Encantada").

3) Um ponto sutil e muito importante levantado por Auerbach, em poucas palavras: a "evasão para o fantástico" apresentada por Cervantes com o Quixote é uma intensificação de algo que já se notava no próprio romance de cavalaria 300 anos antes (ou seja, nem tudo se resolve pela chave da paródia quando se trata da relação do Quixote com os romances de cavalaria). A diferença é que o Quixote encontra ao seu redor uma série de obstáculos à idealização; o mundo ficcional de Chrétien de Troyes, por sua vez, é deliberadamente purificado dos obstáculos, uma "criação estética absoluta", nas palavras de Auerbach (sintoma de uma "crise funcional da classe feudal", que começa a ver despontar no horizonte a burguesia). 

quinta-feira, 19 de janeiro de 2023

Steigerwald


 

"No fim do jantar, Steigerwald, resmungando, ajeitou um canto para dormirem; mudo, ameaçou com os punhos o aparelho morto e se dirigiu para a porta. 'Não tem uma Bíblia?', chamou-o Petrina. Steigerwald reduziu o passo, parou e se voltou para ele: 'Bíblia? Para que você precisa disso?'. 'Pensei em dar uma lida nela antes de dormir. Sabe, sempre me acalmo depois.' 'Que cara de pau!', grunhiu Irimiás. 'A última vez que você pegou num livro foi na infância, e nele você só olhava as figuras...' 'Não ouça o que ele diz!', negou Petrina com ar ofendido. 'Está com inveja simplesmente.' Steigerwald coçou o cacho na testa: 'Aqui só temos bons livros de detetive. Quer um?'. 'Deus me livre!', contestou Petrina. 'Não prestam!' Steigerwald assumiu um ar azedo e desapareceu pela porta que dava para o quintal. 'Que sujeito das trevas, esse Steigerwald...', resmungou Petrina. 'Juro que no pior dos pesadelos um urso faminto seria mais amistoso que ele.' Irimiás deitou-se em seu lugar e puxou o cobertor: 'Pode ser. Mas vai sobreviver a nós todos'. O 'menino' apagou a luz, fizeram silêncio. Por algum tempo, ouviu-se somente o murmúrio de Petrina, enquanto lutava para relembrar a reza que um dia aprendera com a avó: 

Pai nosso... bem, Pai nosso,

que estás no céu, coisa,

no paraíso, glória

ao Nosso Senhor Jesus Cristo,

não... santificado seja o Teu nome,

e seja... ou melhor,

que tudo seja como for melhor

para Você... no céu, e

também na Terra, em todo lugar onde

alcançais... enquanto na Terra

na Terra... no paraíso...

ou no inferno, amém."

(László Krasznahorkai, Sátántangó, trad. Paulo Schiller, Cia das Letras, 2022, p. 188-189)

*

A cena de leitura em Krasznahorkai faz pensar naquela que Ricardo Piglia - em seu romance O caminho de Ida - encontra no filme Johnny Guitar.  Os personagens de Krasznahorkai evocam traços muito tênues de experiências de leitura, construindo essa percepção compartilhada a partir de dois polos antagônicos: de um lado, a Bíblia; de outro, as histórias de detetive (polos que são condensados por Rodolfo Walsh quando publica um artigo no La Nación, em 14 de fevereiro de 1954, intitulado Dos mil quinientos años de literatura policial, articulando Poe e a Bíblia, escrevendo que "Daniel foi o primeiro detetive da história" - Daniel que, ao interpretar os sonhos de Nabucodonosor, é identificado como um precursor também por Freud). 

terça-feira, 10 de janeiro de 2023

Castelos



1) Na argumentação de Maria Negroni sobre a "zona de sombra" da obra de Alejandra Pizarnik (El testigo lúcido), fica clara a tentativa de estabelecer uma sorte de triangulação: Pizarnik - Penrose - Sade; uma primeira triangulação que é complementada por uma segunda, usada por Negroni como ponto de apoio teórico: Freud - Bataille - Kristeva (é, sem dúvida, a referência bibliográfica mais citada em El testigo lúcido). Para se destacar do contexto literário argentino imediato (Borges), Pizarnik faz uso de uma obra francesa recente e menor (no sentido do Deleuze e Guattari de Kafka, por uma literatura menor), a de Penrose, que arrasta consigo a atualização de uma obra prévia, a de Sade.

2) "Sade explicou bem", escreve Negroni (p. 41): "os castelos são por definição lugares arcaicos. Contudo, também por conta disso, guardam em sua arquitetura de excesso sonhos suturados, ossuários de sombras que iluminam as zonas mais afastadas, mais catastróficas da experiência humana, permitindo o acesso a um saber alucinatório, sustentado pela incerteza. Deles deriva um novo olhar, um pathos que levanta o inatual como estandarte e faz da errância imaginária um baluarte contra a cena iluminada da História" (o castelo é utilizado tanto por Penrose quanto por Pizarnik; uma antecipação daquilo que Barthes denomina o "viver-junto" no curso de 1976-1977). 

3) O castelo não é só o espaço físico, o ambiente ou cenário da ficção, mas também um espaço imaginativo no qual circulam certas energias narrativas sem hiearquização temporal. "Outro Télos (paradigma banal): Eros. Texto: Sade: (...) o castelo de 120 dias de Sodoma. Exemplo excêntrico, pois há exclusão da idiorritmia. Nada de rhythmós, nem para as vítimas (claro), nem para os libertinos: horários minuciosos, ritos obsessivos, ritmo implacável (...) Ora, os libertinos sadianos (é seu paradoxo) transformam a fantasia em Lei, em Fé. Desde então, não há mais rhythmós, a liberdade não é ligada ao sexo, mas ao indireto de seu investimento" (Barthes, Como viver junto, trad. Leyla Perrone-Moisés, Martins Fontes, 2003, p. 88-89)

sábado, 7 de janeiro de 2023

Penrose, Podolski



1) Existe um fio subterrâneo na obra de Alejandra Pizarnik, analisado minuciosamente por Maria Negroni em seu livro El testigo lúcido, que permite aproximar sua poética daquela de Roberto Bolaño: o apreço por figuras menores dos movimentos de vanguarda, especialmente aqueles de matriz francesa, tendendo em direção ao surrealismo (as conjuras literárias atravessam toda a obra de Bolaño, assim como o interesse pelas figuras menores dos movimentos; no conto "Fotos", de Putas assassinas, Arturo Belano - "perdido na África" - está lendo o livro La poésie contemporaine de langue française depuis 1945, de Serge Brindeau).

2) Negroni singulariza a importância de Valentine Penrose (1898-1978) para a obra de Pizarnik, especialmente a partir de 1962, quando Penrose - ligada ao surrealismo desde 1925 (ela aparece como figurante no filme L'Âge d'or, de Buñuel e Dalí, de 1930) - publica o romance La Comtesse sanglante, sobre Erzsébet Báthory, que torturou e matou centenas de jovens mulheres em seu castelo no século XVI (Penrose segue uma dica dada por Bataille em seu livro Les larmes d'Eros). Em 1966, Pizarnik publica na revista Testigo um texto intitulado "La condesa sangrienta", mescla de prosa poética, ensaio e narrativa que inaugurava uma nova fase na sua obra - espécie de glosa do trabalho de Penrose.

3) Hubo una vez una poeta belga llamada Sophie Podolski. Nació en 1953 y se suicidó en 1974. Sólo publicó un libro, llamado Le Pays où tout est permis (Montfaucon Research Center, 1972, 280 páginas facsímiles), escreve Bolaño em "Carnet de baile", um dos contos de Putas asesinas (Podolski também é mencionada em Detetives selvagens e em Amberes). No conto "Vagabundo en Francia y Bélgica", do mesmo livro, folheando o número 2 da revista Luna Park e repassando os nomes dos participantes, o narrador escreve: Sophie Podolski fue una poeta a la que él y su amigo L apreciaron (e incluso se podría decir que amaron) ya desde México, cuando B y L vivían en México y tenían apenas algo más de veinte años.

terça-feira, 3 de janeiro de 2023

Alejandra


1) Em seu livro sobre Alejandra Pizarnik, El testigo lúcido (Beatriz Viterbo, 2003), Maria Negroni cita um breve poema escrito antes de 1956, intitulado "Sólo un nombre" e publicado em La última inocencia:

alejandra alejandra

debajo estoy yo

alejandra

Negroni comenta que se trata de uma miniatura que contém e antecipa tudo, a inscrição de um "paradigma vertical" dentro do qual competem "escritura e corpo", "realidade e representação"; um aleph, em suma, que condensa todo o projeto de Pizarnik de "corrosão" da relação "entre palavra e coisa" (p. 59).

2) Debaixo de tudo está o nome próprio, a "identidade" estranhada, Das Unheimliche primordial (o verdadeiro nome de Alejandra Pizarnik era Flora; Alejandra foi uma criação da adolescência: quando César Aira escreve sobre a obra de Pizarnik enfatiza o corte do nome próprio como estratégia de "auto-modelagem", um abandono que funda a sua presença artística na "tradição"). Negroni comenta ainda que a repetição do nome "inventado" é o eco da impossibilidade inerente à linguagem e à literatura, que circulam ao redor de um vazio que se anuncia, se percebe, mas que nunca se faz totalmente presente (ou mesmo possível).

3) Para Negroni, o breve poema de Pizarnik mostra uma "dança fatídica" entre "o reprimido e o possível", "condição de toda palavra humana". Cita o Agamben de A linguagem e a morte, o momento no qual ele escreve acerca da "negatividade inerente" à linguagem: "Como o animal conserva a verdade das coisas sensíveis devorando-as, ou seja, reconhecendo-as como nada, assim a linguagem custodia o indizível dizendo-o" (p. 60). Não há narração que não edifique uma "muralha", complementa Negroni; dentro, no "espaço verbal", há sempre um "interior inacessível" (a "Arte", com seu "Minotauro" particular).