sexta-feira, 30 de outubro de 2009

Filiações

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Li por aí, no blog de algum jovem pesquisador, a menção a um rol seleto de maiores amores de leitura: Agamben e Lacan. Ou seja, essa pessoa cultiva, como preferência extrema de leitura (tudo incluído, pelo que eu entendi: ficção, teoria, listas de supermercado), Agamben e Lacan. Estranhei, achei falso. Aí pensei: "Espera um pouquinho: por que não? - cada um com seu cada qual". Comecei a questionar, evidentemente, minhas próprias escolhas - voláteis, volúveis, viscosas ("Estou mudando de opinião com relação à vida", diz um sábio baiano ao agonizar, virtualmente, no leito de morte). Isso ficou na minha cabeça, nos últimos dias. Por conta da contingência imposta pela falta de tempo, tenho operado da seguinte forma: ao invés de atacar problemas distintos a cada brecha de tempo que surge, ataco o mesmo problema diversas vezes, escandindo, desta forma, a reflexão no tempo. Ou seja, bobagem. O fato é que: Agamben efetivamente possui belas páginas sobre teologia, digamos, mas o meu percurso atravessa muito mais as memórias do Jonathan Franzen ou da Karen Armstrong, ou ainda o recente Retalhos, do Craig Thompson. Outra coisa: me dei conta (isso faz tempo) que, quando visito os sebos, olho as estantes de literatura brasileira somente contando com o fato de que, às vezes, os funcionários fazem a catalogação de forma equivocada, botando, sei lá, Italo Calvino ao lado de, sei lá, Antonio Caloni.

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Essa é uma falsa polêmica, claro. Não se trata de escolher entre crítica e ficção, principalmente pelo fato de que eu escrevi uma dissertação sobre Enrique Vila-Matas - e, diante disso, estabelecer uma barreira ou uma divisória seria absurdo. Enfim, o fato é que o texto ficcional me faz mais _______, justamente por conta de certa _________ que a teoria deixa de lado. Nisso estou com James Wood - comecei hoje de manhã a ler How fiction works, que é iluminador em sua simplicidade. No prefácio explicativo, Wood faz referência a dois críticos, Victor Sklovski e Roland Barthes, que estariam por trás de sua concepção dos mecanismos da ficção, mas que logo são abandonados. Wood quer explicar ficção com ficção, e vai ao básico: imagens, como usar aspas, discurso indireto, narrador, dando exemplos de Henry James, Sebald, Ishiguro, zilhões. Às vezes o óbvio tem um fascínio inesperado.

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História sucinta para terminar e ilustrar: uma passeata de jovens, todos carregando cartazes onde vai escrito: "253" - e todos gritam, enquanto passam pelas ruas: "253!, 253!". Um velhinho pára e olha, curioso. Puxa um dos manifestantes e pergunta: "que diabo de número é isso?". O jovem responde: "Essa é uma passeata pelo amor livre. 253 é o número de posições sexuais que nossa comunidade conhece e pratica." O senhor curioso arregala os olhos, surpreso. "Veja você... eu que passei a vida toda achando que era só uma...", o jovem pergunta, também curioso: "E qual é a posição que o senhor conhece?". O velho: "Ora, meu jovem, aquela normal, a mulher deitada, o homem por cima... papai-mamãe..." - o jovem, agora ele de olhos arregalados, mal espera o homem terminar de falar e sai gritando em direção aos outros: "254!, 254!!, 254!!!"

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quinta-feira, 22 de outubro de 2009

O corte vertical

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Muitos anos atrás, encontrei um pequeno livro de capa preta que sobreviveu quieto e hoje volta à tona. Me chamou a atenção o autor, conhecido, e o desenho na capa: uma cobra dobrada sobre si, com uma segunda cabeça no lugar do rabo. Levei para casa e li em dois toques – minhas aulas (geralmente superficiais e insípidas) eram de manhã, o que me deixava o resto do dia livre para fazer coisas como debulhar um livro de antropologia e depois ir comer uma tigela de açaí na esquina. A quantidade de pessoas tão desocupadas quanto eu pelas ruas era assombrosa. O livro era Mito e significado, de Claude Lévi-Strauss, em uma edição já esgotada, de uma coleção célebre, das Edições 70, de Portugal.
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O livro é a compilação de algumas palestras que Lévi-Strauss transmitiu por rádio em 1977. A terceira palestra foi intitulada Lábios rachados e Gêmeos: a análise de um mito, é dela que eu melhor me lembro, que mais me ficou na cabeça. Grosso modo, informa que a ferida do lábio rachado (o lábio leporino) é o indício de uma separação que não foi completa, ou seja, nasceriam gêmeos e o processo ficou incompleto. O sujeito que carrega essa marca é perigoso, habita um entre-lugar: nem sagrado, nem profano, bem e mal, simultaneamente. Uma metamorfose perpétua, de certa forma. Além de ser anatomicamente diferente, e já por isso separado, há um parentesco assustador, para o grupo, com a divindade maior dessas tribos: a lebre.

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Há uma categoria que se anuncia e que monta essas imagens: simetria. Dentro disso, uma diferenciação que se impõe: verticalidade e horizontalidade. Se lembrarmos a crítica que Silviano Santiago faz, em “A ameaça do lobisomem”, ao Manual de zoologia fantástica de Borges, aparece bem claro a omissão para com as metamorfoses que invadem o homem – sobretudo aquelas que envolvem a cisão sobre a carne, sobretudo aquelas que não estão apaziguadas, que não foram intensamente buriladas pela tradição, pela biblioteca. O monstro mitológico é sempre cortado na horizontal: do pescoço para cima é touro, da cintura para baixo é bode, da cintura para cima é homem etc. O corte vertical marca a bestialidade produtiva, assustadora, estranha, do mesmo que se torna outro.
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Vida e época de Michael K., de J.M. Coetzee, é sobre um negro pobre, com um desvio mental que nunca fica bem claro (não sabemos se ele é esquizofrênico, autista ou se sofre de alguma espécie de retardo mental) vivendo em uma África do Sul deslocada no tempo, transportando o cadáver de sua mãe em um carrinho de mão, rumando para um lugar que nunca chega. A cena de abertura do livro é forte como poucas: a parteira retira Michael pela vagina de sua mãe e observa o lábio fendido; sem hesitar, coloca um dos dedos dentro da boca da criança e pensa, aliviada, “dos males, o menor”: a criança nasceu com o palato fechado.
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Michael K. é uma batalha contra K., o Agrimensor, o Tuberculoso, quem quer que seja, Kafka. Coetzee oscila permanentemente entre Beckett e Kafka. Quais são os livros que a amante encontra na estante de John, lá na década de 70, lá nos interstícios mais escondidos de Summertime, ali onde o autor imaginou que estaríamos distraídos, para então colocar, sub-repticiamente, algumas balizas de influência? Ela encontra, além de alguns dicionários, Kafka e Beckett, é evidente. Michael K. está marcado de infâmia, como Joseph K., e nunca chega na cidade onde sua mãe quer ser enterrada, nunca chega ao Castelo.
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Em seu último livro, Nudità, de 2009, Giorgio Agamben publica um ensaio sobre Kafka intitulado justamente K. – Roberto Calasso tem um livro sobre Kafka com o mesmo título. Agamben revisa O processo e Na colônia penal sob a ótica do Direito Romano clássico – que prescrevia como pena àqueles culpados de calúnia uma marca no rosto, uma letra K a ferro quente, K de Kalumniator. Marcado na fronte, separado, monstruoso como também o é Michael K. com seu lábio fendido.
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Essas marcas levam a uma história, silenciada, mas presente. Diante dessas imagens armam-se relatos. Para fechar o percurso, trago as manchas de tinta simétricas de Rorschach, aquelas do Teste de Rorschach – borrões cortados na vertical, imagens dobradas sobre si, que solicitam leitura e intervenção, manchas na história, como Joseph K., Michael K., carnes feridas, alteridades radicais, oscilando na vertigem, na elipse crepuscular do presente.
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terça-feira, 20 de outubro de 2009

Outro dia de poesia

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Explicação


A epifania, hoje, é
um pouco de ruído branco
misturado com um ensaio
de Gilda, Mello e Franco

Explora a vida e a matéria
como na primeira peça
de Beckett:
Eleotéria

Que quer dizer liberdade,
em grego,
sem pretender,
com isso,
desgastar a boutade

Do verbo bouter, empurrar.
No seu Lattes não tem francês:
É por isso que eu preciso
explicar

Mas não leve a mal:
no meu não tem italiano,
ainda que eu seja fã
do velho Mastroiano

Não o ator, não:
me refiro ao livreiro,
dono daquele sebo na Liberdade.
Um pardieiro.

Lugar de gente encurvada,
cinza e manchada,
mas todos conscientes
de que ler
é maçada.

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quinta-feira, 15 de outubro de 2009

Imaginários bélicos

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Tomemos La Literatura Nazi en América, de Roberto Bolaño. Um inventário, uma enciclopédia manca, um almanaque do absurdo. A premissa é a seguinte: proliferaram nas Américas escritores de feições estéticas nazi-fascistas. Não que tenham efetivamente matado pessoas e/ou incinerado seus corpos (ainda que alguns tenham cometido, sim, coisas semelhantes). Não: cultivam posicionamentos ideológicos nazi-fascistas, que aparecem, junto com temas rascistas e/ou eugenistas, por exemplo, em suas ficções. Um delicado arranjo entre ética e estética.
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Em 2666, há uma cena na qual os críticos literários, retratados na primeira parte do romance (que são, os quatro, especialistas em Arcimboldi, o escritor alemão que motiva as 1.200 páginas do romance), estão em um táxi, que é dirigido por um paquistanês. O motorista, em determinado momento, é ríspido ou não entende o que eles querem. O táxi pára e os críticos literários começam a espancar violentamente o motorista (que usava um turbante, inclusive). Uma cena cômica e brutal, da mesma forma que certas figuras da Literatura Nazi. Indecidibilidade entre ironia e denúncia. Ser um esteta não salva você de ser um monstro. Uma coisa não anula a outra. Em certos momentos da história, parece anunciar Bolaño, uma coisa pressupõe a outra.
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O tom é outro, por exemplo, na cena do Noturno do Chile que mostra um sujeito torturado em um quartinho subterrâneo, enquanto, no andar de cima, o casal dono da casa organiza encontros literários (para identificar os subversivos de maneira mais cirúrgica). A ironia não toma parte nesse contexto, mas o debate e o anúncio persistem: para cada tertúlia no andar de cima, há uma tortura no andar de baixo. Ética e estética estão irremediavelmente ligadas, não se pensa a possibilidade de dizer sem pensar a obrigatoriedade de calar, em algum ponto. Walter Benjamin: todo documento de cultura é também um documento de barbárie. Isso condensa todo o percurso.
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Na frase final de 2666, Bolaño une (se já não estava claro o suficiente) definitivamente o imaginário bélico nazi-fascista com a América Latina. Esse é o projeto da Literatura Nazi, que atinge o ápice em 2666. A parte dos crimes em Ciudad Juarez, centenas e centenas de mulheres mortas ao longo de 10, 15 anos, é a versão latino-americana dos campos de concentração. O deslocamento de Arcimboldi para o México (que não acompanhamos, porque o romance acabou) é o nó final de uma trama minuciosamente arquitetada para mostrar que o Extermínio ainda está acontecendo, ainda está passando, reconfigurado em uma matriz hispano-hablante. Este é o local ideal, Bolaño segue anunciando, para que a barbárie floresça - amalgamada com a cultura, com o beletrismo, com a ignorância cultivada, com o senso comum travestido de europeísmos.
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Estrella distante, novela que amplia justamente uma das biografias de La Literatura Nazi, é a reescritura ficcional dos livros de Hannah Arendt, por exemplo. Especialmente a reportagem que ela faz para a New Yorker sobre o julgamento de Eichmann, que tornou-se, entre nós, Eichmann em Jerusalém. Bolaño conta a busca, anos a fio, por um assassino que nasceu nas letras chilenas e ascendeu ao poder junto com Pinochet. Foge, e seu rastro é seguido, ao longo dos anos, em revistas de literatura e filmes pornográficos. É o relato de uma busca detetivesca, que se desenrola a partir dos detalhes da mescla que Carlos Wieder faz de cultura e barbárie, ficção e psicopatia. Porém, na psicopatia latino-americana não há um Estado por trás, como ocorre na execução de Eichmann. Somente um investigador velho e enfastiado e um escritor obscuro atrás de uma história que, um dia, tocou sua juventude.
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sexta-feira, 9 de outubro de 2009

Conficção

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Sua apresentação estava marcada para as 17h10. Quando chegou, atrasado, um anônimo ainda falava sobre o lunfardo, o galego e palavras emprestadas. O trabalho sobre Wilcock, que levava debaixo do braço, teria de esperar: adiantaram uma das palestras (quando ele ainda não estava lá) porque o avião não podia esperar. O que estava marcado para 17h10 aconteceria uma hora depois. Depois do lunfardo, surgiu um professor macilento (nunca a palavra se aplicou tão bem, ele pensa, o sujeito era inteiro da mesma cor, pele, cabelos, roupas, um aspecto tísico, se possível) para falar de Benítez Rojo. Após, uma mulher insegura, de unhas roídas e cabelo lustroso, viajou de Belo Horizonte até Florianópolis para repetir conceitos de trinta anos atrás sobre o romance histórico. Chega, finalmente, a vez dele. A audiência é composta de quatro pessoas. O trabalho é cuspido, simplesmente. O único trecho que o satisfaz, durante a leitura, é a referência feita ao Evangelho segundo São Mateus, filme de Pasolini, do qual participaram, como figurantes, Giorgio Agamben, Natalia Ginzburg e Juan Rodolfo Wilcock. São Filipe, Maria de Betânia (irmã de Lázaro, o ressuscitado) e Caifás, o Sumo Sacerdote, respectivamente. Fora isso, tudo foi lido de um chofre, insensivelmente.

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A surpresa ficou para depois, na entrega dos certificados de apresentação. A moça sorridente e um pouco acima do peso, que entregava os papéis, disse a ele que a professora Denise, que finalizava uma palestra na sala ao lado, pediu que fossem apresentados. Havia uma espécie de presente para ele. Entrando na sala, desconfia do que lê projetado na parede: um trecho narrativo que fala sobre a guerra do Vietnã (no ônibus, atrasado, ele lia justamente a passagem de Summertime que menciona a fuga de Coetzee do serviço militar na África do Sul e sua expulsão dos Estados Unidos por participar de uma manifestação contra a guerra no Vietnã). "A narrativa é cindida", diz a palestrante. "A voz da personagem oitocentista é dúbia, oscilante", ela continua. O tema da apresentação é J. M. Coetzee e seu primeiro livro, Dusklands. Termina em seguida.

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Segue a rotina ridícula de praxe: leitura dramática de poemas no palco. Sem titubear (esperam por ele em casa), vai falar com a palestrante, já sentada nas cadeiras da platéia. Ele precisa mostrar a ela o trecho do livro (Summertime) no qual Coetzee afirma que o prefácio de Dusklands, assinado pelo pai do autor, é pura invenção. A cópia que ele tem do livro (e que agradece, sem palavras, cada vez que a manipula), diante de tal novidade, gera outra cópia, que seguirá viajando. Contudo, é a palestrante a responsável pelas novidades principais: Coetzee perdeu um filho, em um desastre de carro (e, depois disso, escreve O Mestre de Petesburgo, sobre Dostoievski perdendo um filho); foi casado durante muitos anos, teve dois filhos, e agora vive com uma mulher, que chama, quando a apresenta, de partner. O presente era uma sacola de papel com algumas revistas acadêmicas, oferecimento da Universidade que a professora representa a um de seus colaboradores. "Preciso reler Dusklands", ele pensa, no caminho para casa.

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quarta-feira, 7 de outubro de 2009

Vestimenta

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"Duchamp, que certa vez dissera a William Copley 'ter conseguido desenvolver seu parasitismo à perfeição', continuou vivendo com pouquíssimos recursos. O aluguel de seu estúdio na rua 14 custava ainda 35 dólares por mês. Tinha um único terno, que ele mesmo escovava e limpava. Quando ia passar o fim de semana com Teeny em Lebanon ou em Gardie Helm, na casa de uma amiga de infância de Teeny, em Easthampton, aonde eram frequentemente convidados durante os meses de verão, ele nunca levava uma valise. Costumava usar duas camisas, uma em cima da outra, e carregar uma escova de dentes no bolso do paletó."

Calvin Tomkins. Duchamp: uma biografia. p. 426.
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"Encontrar-se com Beckett é só um pouco menos difícil do que se encontrar com Godot, que, na peça, não aparece, ainda que todos esperem por ele. O endereço de Beckett em Paris é um segredo bem guardado e não mais do que uma dúzia de pessoas conhecem a localização de sua casa de campo. O dramaturgo é uma figura esguia, impressinante, que lembra um apóstolo inflamado. Mas ele não se importa com a aparência e, se parece que dormiu com as roupas que está vestindo (como, de fato, parece), não dá mostras de prestar maior atenção ao caso."

Israel Shenker. Entrevista com Samuel Beckett, New York Times, 1956.

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"John wasn't exactly a snappy dresser himself. One pair of good trousers, three plain white shirts, one pair of shoes: a real child of the Depression. But let me get back to the story."

Julia Kis
. In: Coetzee, Summertime, p. 34.
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"Otra persona sobria es mi amigo Juan Rodolfo Wilcock, que lleva años viviendo en el campo, en una casita sencilla, con pocos muebles, escasos cacharros y un estante de libros. Creo que en su guardarropa sólo hay dos viejas chaquetas, tres o cuatro camisas desgastadas, algún pullover agujereado y unos cuantos pantalones de pana: todo ello ropa comprada en mercados de segunda mano."

Ruggero Guarini. In: Wilcock, La sinagoga de los iconoclastas, p. 7.

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segunda-feira, 5 de outubro de 2009

Coetzee

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Leio o último livro de J.M. Coetzee, Summertime: um biógrafo vai atrás de figuras importantes na vida de um escritor chamado John Coetzee, que está morto. O que primeiro me assombra: a vastidão da consciência de Coetzee, que até de sua morte, e os desdobramentos ficcionais possíveis, cuida em vida (e obra). O jogo com as informações que foram dadas ao longo de anos e anos em outros livros, a reconstrução póstuma da obra, operada em vida e pelo autor, sem metaficção preguiçosa ou ironia pós-moderna. Uma verdadeira reflexão sobre o legado. Escrevendo sobre ele mesmo, no passado: why then does he persist in inscribing marks on paper, in the faint hope that people not yet born will take trouble decipher them?. A anotação data de 1972. Eu não era nascido em 1972.
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Vou precisar de muitas vidas dentro dessa que eu vivo para decifrar essa obra. O que intriga é o jogo suplementar entre forma e conteúdo que o Coetzee opera como ninguém mais faz. Diário de um ano ruim e agora Summertime: capítulos fragmentados, continuidade comprometida, sem afetação, com foco no relato, sem excesso, sem dispêndio gratuito de energia. A vida dos animais e Elizabeth Costello, mesma coisa: problematização das formas visuais de se organizar um relato, de se organizar os significantes, que, no fim das contas, potencializam o que ele efetivamente escreve. Não há dialética ou resolução possível dentro desse horizonte de contato entre forma e conteúdo.

quinta-feira, 1 de outubro de 2009

Dublinesca


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E não é que Beckett também está no próximo livro de Enrique Vila-Matas? Como se adivinhasse minhas atuais preocupações, o catalão, muito gentilmente, resolve escrever um romance que se passa em Dublin e articula a amizade de James Joyce e Beckett. O livro, Dublinesca, sai em março de 2010.


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Não posso pensar em outra coisa que não a amizade, ou ainda, a amizade mesclada de admiração: Joyce e Beckett ("nunca fui seu secretário; o ajudava por conta de sua vista, mas nunca escrevi suas cartas, por exemplo"), Vila-Matas e Paul Auster (Siri Hustvedt, esposa e escritora, também está na foto), e seus criativos contatos com Sophie Calle, a artista plástica, seja em Leviatã (dedicado a outro Amigo, Don DeLillo), seja em Exploradores del abismo - artista que englobou outros escritores em suas "ficções de parede": Ray Loriga, Jean Echenoz (que atualiza Perec de forma tão interessante em L'occupation des sols) - Vila-Matas e Sergio Pitol, essa amizade sim, mais parecida com a de Joyce e Beckett: Pitol mais velho, recebendo a visita de um Vila-Matas muito jovem em sua casa de Varsóvia - Pitol que é um grande Tio mais velho dos escritores mexicanos, seja Juan Villoro ou Ignacio Padilla (poucos livros são tão inteligentes quando Amphitryon), ou o melhor deles (que era, também, chileno): Roberto Bolaño. Os laços se multiplicam e não resta alternativa: é preciso embarcar na vertigem das filiações: Mario Bellatin leva a Joseph Roth; Edgardo Cozarinsky leva a Juan Rodolfo Wilcock; Ricardo Piglia leva a Luis Gusman; César Aira leva a David Toscana.

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São outros tempos, definitivamente: observe as lâmpadas de camarim, atrás de Vila-Matas, as cores vivas, a nitidez. Agora observe o casaco puído de Beckett, lá em cima, a granulação da imagem no sobretudo de Nathalie Sarraute ou os sapatos desbotados de Claude Simon. Dois futuros Nobel de Literatura em uma editora tão pequena: Editions de Minuit. Trata-se, como se houvesse qualquer dúvida, do tempo da montagem, da edulcoração, do espetáculo, da pose, da maquiagem, dos bastidores de talk-show, das transações milionárias - não que eu tenha qualquer coisa a dizer contra isso, só é curioso o abismo semiótico que se abre quando confrontamos duas imagens que teriam muito em comum (a amizade literária), mas cuja aproximação se detém, desconfiada, quase com repulsa.

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