domingo, 27 de março de 2022

Trieste, 1902


1) Falecidos ambos em 2021, Roberto Calasso e Daniele Del Giudice gravitaram durante alguns momentos de suas carreiras ao redor de uma mesma figura, Roberto Bazlen, Bobi Bazlen, falecido em 1965, aos 63 anos (em 1962 ele funda, com Luciano Foà e Roberto Olivetti, a editora Adelphi). Em 1976, sai postumamente o único romance escrito por Bazlen, Il capitano di lungo corso, escrito em alemão e traduzido para o italiano por Calasso (nascido em Trieste, Bazlen frequentou o colégio alemão, o Realgymnasium, por isso a escrita em alemão - de resto, foi também tradutor de Brecht, Freud e Jung). 

2) Além do romance dedicado à busca pelos rastros de Bazlen, Lo stadio di Wimbledon, de 1983, Del Giudice publicou também um livrinho, Nel museo di Reims, de 1988: o personagem Barnaba, que está perdendo a visão por conta de uma doença, decide aproveitar o tempo que resta no museu de Reims, entre as telas de Corot, Géricault e Delacroix (a trama evoca aquela de Thomas Bernhard em Mestres antigos, romance de 1985: conta a história de Reger, crítico de 82 anos que escreve sobre música para o The Times, que por mais de 30 anos senta no mesmo banco do mesmo museu em Viena para observar sempre a mesma pintura: Homem de barba branca, de Tintoretto). 

3) Tanto Bazlen quanto Del Giudice tiveram pais estrangeiros que morreram ainda durante suas infâncias: o pai de Bazlen era alemão, morreu quando Bobi tinha um ano de idade; o pai de Del Giudice era suíço, e antes de morrer deixou a ele de herança uma máquina de escrever. A partir de 1999, até 2003, Del Giudice se dedica a um projeto interdisciplinar intitulado Fondamenta - Venezia città dei lettori (fizeram parte do comitê científico Claudio Magris e José Saramago), que teve cinco edições: Futuro Necessario (1999), Globo Conteso (2000), Corpi (2001), Significati Condivisi (2002), Senza Più (2003). Ao longo desses anos, Del Giudice reúne vozes como as de Ian McEwan, Laurie Anderson, Jean-Luc Nancy, Orhan Pamuk, Lou Reed, entre outras.   

sexta-feira, 25 de março de 2022

Cruzeiro do Sul



1) Em 2020, Claudio Magris publica o livro Croce del Sud, no qual descreve e comenta três vidas "reais e improváveis" perdidas no fim do sul do mundo: o croata de ascendência eslovena Janez Benigar; o advogado francês Orélie-Antoine de Tounens; a freira italiana Angela Vallese. Essa "croce" do título é a Cruzeiro do Sul, constelação presente nas bandeiras de Brasil, Austrália e Nova Zelândia, marca cósmica da profundidade geográfica, senha que permite a Magris o deslocamento espaço-temporal em direção a esses "exploradores" do abismo sul-americano (o que faz pensar no esforço análogo de Coetzee ao falar, na Argentina, das "Literaturas del Sur": "Entre 2015 y 2018, la Cátedra Coetzee abrió espacios de intercambio entre autores, críticos literarios, investigadores y docentes de África, Australia y América Latina, así como de otras regiones del sur"). 

2) Benigar (1883-1950), Juan Benigar, "El cacique blanco", "El sabio que murió sentado", um dos maiores mitos da província de Neuquén, estudioso da cultura Mapuche, teve quinze filhos e produziu obras como a Gramática Araucana e o Vocabulario Histórico Araucano-Español. Orélie-Antoine (1825-1878) assinou dois decretos em 1860 nos quais se autodeclarava Rei de Araucânia e Patagônia; em 1862, é preso pelo governo chileno, julgado insano e extraditado para a França; em 1863 publica suas memórias, morrendo na pobreza em 1878, em solo francês. A freira Angela (1854-1914) faz parte de uma comitiva de evangelização que ruma em direção à Terra do Fogo em 1877, enfrentando gelo e ventania na travessia do Estreito de Magalhães, visitando a ilha Dawson e as Malvinas, de onde escreve uma série de cartas aos pais na Itália. 

3) Magris faz uso da forma breve para apreender um conjunto de vidas - o que permite a inclusão de seu projeto naquela linha associativa que abarca Vidas dos artistas de Vasari, Vidas imaginárias, de Marcel Schwob, História universal da infâmia, de Borges, a Sinagoga dos iconoclastas, de Wilcock, a Literatura nazi na América, de Bolaño, as Vidas minúsculas, de Pierre Michon, e assim por diante (sendo possível relembrar também o comentário de Deleuze sobre as "vidas infames" de Foucault: ele “concebe uma infâmia de raridade ou escassez, a de homens insignificantes, obscuros e simples, que devem apenas a processos, a relatórios policiais, o fato de aparecerem por um instante à luz. É uma concepção próxima de Tchékhov"). 

segunda-feira, 21 de março de 2022

Romance do coletivo



1) Recentemente, na London Review of Books, Fredric Jameson publicou uma resenha sobre o gigantesco romance de Olga Tokarczuk, The Books of Jacob (sobre Jacob Frank, líder religioso polonês do século XVIII que se dizia reencarnação do Messias), que ele interessantemente coloca "alongside the great postmodern meganovels", dando como exemplos os livros de Thomas Pynchon, 2666 de Bolaño e Vida, modo de usar, de Perec. É uma resenha entusiasta que, ironicamente, fala da "esperteza" do comitê responsável pelo Prêmio Nobel, que o ofereceu a Tokarczuk antes que o mundo pudesse perceber com clareza a quem o prêmio estava sendo dado (o prêmio, de certa forma, se entendo bem o comentário de Jameson, tornou os humores mais "maleáveis", tornando a circulação de um romance tão exigente possível - tornando possível, de resto, a própria resenha de Jameson em um periódico tão célebre).

2) São vários os temas caros a Jameson que ele encontra no romance de Tokarczuk e que, consequentemente, aparecem na resenha: a) as metamorfoses do romance como gênero na literatura do século XX e, agora, do século XXI; b) a dinâmica de transmissão de conceitos dentro dos vários discursos das ciências humanas (ele fala de Weber e de "carisma", de Freud e de "populismo"); c) as descontinuidades entre tempo "natural" e tempo "histórico", entre o tempo pensado como sucessão de estações e o tempo pensado como acúmulo de fatos e eventos (a discussão adorniana da "História natural"); d) a relação entre o pensamento "utópico" e o "racional", ou ainda, a relação entre o "tempo do mundo" e a dimensão messiânica, fundamental para Walter Benjamin (mencionado na resenha) e central no romance.   

3) O grande mistério do romance, e sobre o qual se detém Jameson em sua resenha, é o mistério da crença religiosa e de suas ligações com o messianismo - dentro dessa questão, o modo como a transformação do discurso religioso acarreta mudanças também na paisagem política (como a heresia se aproxima da traição, da sedição e assim por diante). Tokarczuk has learned to do the impossible: to write the novel of the collective, escreve Jameson na última frase: o "romance do coletivo" porque não está centrado em um único personagem - apesar de ser sobre um Messias -, mas na "energia messiânica" que liga o indivíduo ao coletivo, a energia que dá liga às comunidades, às conjuras e às sociedades secretas (o Messias "is something that flows in your blood", escreve Tokarczuk, cita Jameson). 

sexta-feira, 18 de março de 2022

Por que escrever?


Philip Roth, Por que escrever? Conversas e ensaios sobre literatura (1960-2013), trad. Jorio Dauster, Companhia das Letras, 2022:

1) "Ao escrever sobre Kafka, contemplo sua fotografia aos quarenta anos (minha idade) — estamos em 1924, um ano tão doce e cheio de esperança quanto ele possa ter vivido como adulto, e também o ano em que morreu. O rosto é afilado e esquelético, como o de um animal escavador; maçãs do rosto proeminentes, evidenciadas ainda mais pela falta de costeletas; orelhas com o formato e o ângulo de asas de anjo; um olhar intenso, quase desumano, de uma serenidade assustada" (p. 14).

2) "Henderson, o rei da chuva, de Saul Bellow, é um livro dedicado a celebrar a regeneração do coração, do sangue e da saúde em geral de seu protagonista. Entretanto, considero de alguma importância que a regeneração de Henderson ocorra num mundo que é totalmente imaginado, que não existe na realidade. A África que Henderson visita não é a África tumultuada dos jornais e dos debates das Nações Unidas. Lá não há nada que lembre os distúrbios de rua, os levantes nacionalistas, o apartheid. Mas por que haveria? Há o mundo, e também há o ser individual. E o ser individual, quando o escritor lhe devota toda sua atenção e talento, revela ser uma coisa notável" (p. 55).

3) "Sob o domínio do comunismo soviético, alguns dos escritores mais originais da Europa Oriental que li em inglês se posicionaram de modo similar - Tadeusz Konwicki, Danilo Kiš e Kundera, por exemplo, para mencionar apenas três que têm nomes com K - rastejaram de baixo da barata de Kafka para nos dizer que não há anjos não contaminados, que o mal está tanto dentro como fora. Não obstante, esse tipo de autoflagelação, malgrado suas ironias e nuances, não pode estar livre de certo elemento de culpa, do hábito moral de localizar a fonte do mal no sistema, mesmo ao examinar como esse sistema nos contamina" (p. 304)

segunda-feira, 14 de março de 2022

Calle Venezuela



1) Em seu romance de 2004, La straduzione (Milão: Rizzoli), dedicado à reconstrução da vida de Gombrowicz na Argentina, Laura Pariani comenta extensamente as dificuldades econômicas do escritor polonês no Novo Mundo (os 96 dólares que tinha consigo quando chegou duraram seis meses). De forma mais ampla, reflete também sobre a relação sempre tensa entre escritura e dinheiro (no contexto argentino, é possível pensar em Aira e no dinheiro falso; um pouco mais lateralmente, nas reflexões de Freud sobre as relações entre a merda e o dinheiro).

2) Pariani descreve o quarto de pensão de Gombrowicz (p. 60), com móveis que foram aparecendo pouco a pouco, dados por conhecidos quando se mudavam: um sofá, duas poltronas pequenas, uma mesinha para a máquina de escrever, restos de vidas e casas alheias. O quarto fica uma pensão da calle Venezuela, onde Gombrowicz chegou em 1945 e ficou até 1963, quando voltou para a Europa (onde morre em 1969). A autora faz um paralelo com Onetti, que vivia de forma semelhante na avenida Independencia: com a mulher, usavam uma Olivetti para os dois: ele escrevia à noite, até as sete da manhã, quando a mulher acordava e posicionava a máquina de escrever no banheiro, onde, sentada no chão, trabalhava datilografando traduções (Pariani não especifica, mas está fazendo referência à terceira mulher de Onetti - foram quatro no total -, Elizabeth María Pekelharing, sua colega na Agência Reuters, com quem se casa em 1945).

3) Outro exemplo evocado por Pariani é Roberto Arlt - que já havia aparecido páginas antes, na evocação do primeiro encontro com Gombrowicz, depois de um jantar do qual os dois saíram mais cedo (e foram juntos à estação esperar o trem). E ela cita uma frase de Arlt (p. 61): "Faremos nossa literatura não falando, mas escrevendo, em orgulhosa solidão, livros que carreguem a violência de um cruzado na mandíbula" (o original está no prólogo de Arlt a Los LanzallamasHay que escribir páginas que tengan la fuerza de un cross a la mandíbula y que los eunucos bufen). 

sábado, 5 de março de 2022

A escola do mundo


Em seu livro Ritratti di opere e di artisti (uma coletânea de artigos de jornal organizada por Augusto Roca de Amicis), surpreende a quantidade de momentos em que Giulio Carlo Argan recorre às palavras de Giorgio Vasari para localizar obras e artistas no tempo e no espaço: falando de Francesco Francia, comenta que Vasari, sendo "louco" por "coincidências de eventos fatais", relaciona a morte de Francia em 1517 ao aparecimento de uma obra de Rafael Sanzio, Êxtase de Santa Cecília (levada para Bolonha, a cidade de Francia, o que teria causado sua morte, por conta da competição); ao falar da atuação de Michelangelo como "colorista", Argan denuncia que Vasari teria escamoteado essa característica do artista para dar aos toscanos "o primado do desenho" e aos venezianos "o primado do tom"; ainda falando de Michelangelo, especificamente dos desenhos preparatórios da Batalha de Cascina, nunca realizada, Argan retoma o juízo de Vasari, que afirmou que os desenhos foram "a escola do mundo".

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Escrevendo sobre o design (um tópico que, de resto, já estava em Vasari), Argan retoma as ideias de Claude Lévi-Strauss acerca de uma "divisão da humanidade" em "duas grandes categorias", os bricoleurs e os construtores: os primeiros estão ligados à época da intencionalidade e do gesto espontâneo; os segundos à época do projeto e do produto. O mundo pós-guerra, escreve Argan, já não sustenta essa dicotomia simples (em outro texto da coletânea, Argan traz Adorno e suas reflexões sobre o cenário pós-atômico, sobre uma sociedade que inscreveu na própria estrutura as condições de sua própria destruição), e o projeto dos "construtores" já não precisa ter um escopo final definido ou definitivo; da mesma forma, o trabalho do bricoleur já não precisa ser mais tanto "da mão para a boca", para usar as palavras de Paul Auster (Hand to Mouth: A Chronicle of Early Failure, 1997). Sonho com um design que sirva às massas como serviu à elite, escreve Argan na última frase do texto.