segunda-feira, 7 de junho de 2010

Aira e o dinheiro falso

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1) A obra de César Aira nos ensina que os absolutos se tocam, tornando a escassez um correlato íntimo do excesso e a verborragia um suplemento do silêncio (talvez uma lição de Balzac). Essa noção está presente em um tema recorrente nos livros de Aira: o dinheiro falso. O procedimento já serve para a leitura imediata que desenvolvo agora: a recorrência vertiginosa do tema me impede de elencar os livros em que isso aparece, ao mesmo tempo em que a tentação do inventário é também vertiginosa – os absolutos se tocam. E a obra de Aira compreende isso também: eu sei que por mais exemplos que eu tenha recolhido, há outros, e eles são legião – a totalidade e a completude são saltos no vazio. Basta com isso, portanto: Aira utiliza o dinheiro falso em muitos de seus escritos.

2) O que isso pode querer dizer? Inúmeras coisas. A primeira delas e talvez a mais interessante: o questionamento de uma alucinação coletiva. O dinheiro é uma abstração compartilhada, pedaços pintados de papel aos quais atribuímos valor. O dinheiro falso é também uma abstração, algo que diz respeito diretamente àquilo que circula mas que guarda uma diferença monstruosa, pois, ao mesmo tempo em que compartilha da alucinação, desmente a sua efetividade. O dinheiro falso é um choque de realidade naquilo que se convencionou chamar realidade – ou ainda: o dinheiro falso é tão ficcional quanto o dinheiro verdadeiro, mas, em sua queda, em seu desvelamento, na descoberta de seu procedimento, o dinheiro falso expõe a sua construção e o absurdo da matriz da qual se origina, ela também uma ficção. Grosso modo, o dinheiro falso para Aira é uma oportunidade de confrontar a literatura com o real (como em Os moedeiros falsos, de André Gide).

3) E uma breve analogia com Piglia, porque ele é o monstro para Aira, e sempre que seus caminhos coincidem há uma fissura no discurso daquele que se constrói a partir das fissuras (Aira): Dinheiro queimado retoma Brecht: o que é roubar um banco comparado com fundá-lo; em Nome falso Piglia coloca em circulação um texto inédito (real? ficção? re-escritura de Arlt à maneira de Menard?) de Roberto Arlt, etc.
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Duchamp pagou seu dentista, em 1919, com o desenho de um cheque, uma obra de arte que ficou conhecida com o nome de Cheque Tzanck, um dinheiro falso posto em circulação que, ao invés de ter seu valor anulado por conta da exposição do mecanismo de circulação da alucinação, teve seu valor multiplicado por conta da inscrição do nome de Duchamp.

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