No dia 14 de junho de 2010 Alan Pauls falou na Universidade Federal de Santa Catarina, uma conferência que faz parte das comemorações aos cinquenta anos da instituição. No início estava Raul Antelo relembrando o primeiro encontro com Alan Pauls: Buenos Aires, 1981, a parte externa de uma casa em San Telmo. O encontro inaugural da revista Lecturas críticas, publicação que durou apenas dois números. Raul lembra também o encontro dez anos depois, um congresso de literatura latino-americana em Saint-Nazaire, 1991. Estavam lá Saer, Aira. Pauls começava. A crítica francesa saudava a chegada de O pudor do pornógrafo.
O primeiro nome do livro O passado foi A mulher zumbi – e Raul Antelo afirma que esse estado de suspensão do sujeito que comunga, simultaneamente, da morte e da vida é a chave para a experiência de Pauls com a abjeção, “aquilo que te enoja mas cuja convivência é incontornável”. Na literatura de Pauls, uma sociedade se reconhece por seus crimes – e sua ficção, como potência do falso, do pseudônimo e da referência equivocada, suplementa o real, rasura o real.
O título da intervenção de Pauls foi “Elogio do sotaque” - um extenso arrazoado acerca das lembranças de Pauls das músicas e shows musicais televisivos que viu na infância. Elogio del acento. Pauls investe sobre cantores estrangeiros, cultura de massa incipiente, fantasmas na TV, programas de auditório em busca de uma língua que estava e permanece não registrada. Pauls sofria de uma síndrome de estranheza, reconhecendo e não reconhecendo aquela língua capenga utilizada por cantores italianos e brasileiros (ele cita Roberto Carlos) para cantar em espanhol. O sotaque não era uma assinatura pessoal e sim uma expressão impessoal, uma adequação, um procedimento.
A trilogia de Pauls, A história do pranto em primeiro lugar e, agora, A história do cabelo, vem se mostrando pautada por essa arqueologia das imagens da infância – como a sobrecarga simbólica dos primeiros anos gera trabalho mental e neurose para o resto da vida. Pauls investiga o cenário de forma bastante detida. Sua dicção é pausada. Ele escande bem as palavras, olhando o papel, olhando a audiência. Vai, aos poucos, questionando a identidade adquirida, problematizando a sobrevivência desses elementos da infância. E encontra as três manifestações mais comuns da identidade argentina, ou as ferramentas para a busca cega da identidade plena: o mantra, o wishful thinking e o grito de guerra.
A identidade busca capturar e reduzir o matiz, a especificidade, a monstruosidade. O sotaque, diz Pauls, é o ready made da argentinidade, a evidência da utilização corrente da língua e sua irremediável arbitrariedade. O sotaque é o resto da língua – imaterialidade aguda, intransigente e sempre em movimento.
Elogiar o sotaque, no fim das contas, é celebrar as múltiplas temporalidades envolvidas no uso da língua, sobretudo no momento em que ela falha – a língua não falha, quem falha é o usuário –, porque a falha ilumina a apreensão de quem pronuncia e de quem escuta, em uma aglutinação da memória. O que interessa na história do cotidiano é o invisível, justamente porque não há passado em estado puro – o tempo atravessa os corpos.
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