segunda-feira, 30 de novembro de 2015

Casanova em Bolzano

É curioso que Sebald não tenha dedicado mais do que uma página a Sciascia em Vertigem, pois em 1912+1 Sciascia toca em uma série de temas caros a Sebald - as notícias de jornal, o relato atravessado pelo ensaístico, o crime, as ironias da história, os encontros ao acaso no tempo e no espaço -, além de citar dois outros autores que estão em Vertigem, citados e transformados em personagens por Sebald: Stendhal e Giacomo Casanova (Stendhal está na primeira parte de Vertigem, "Beyleou o amor", e Casanova na segunda, "All'Estero", retomado especialmente por conta de sua fuga da prisão em Veneza - na página 78 de Vertigem, Sebald inclui a imagem de um recorte de jornal: trata-se da notícia de uma peça a ser apresentada no dia seguinte em Bolzano, cujo título é Casanova al castello di Dux - o que nos lembra do romance de Sandor Márai de 1940, Casanova em Bolzano).
*
1) Stendhal e Casanova surgem no texto de Sciascia por conta da beleza da condessa Tiepolo - seu sorriso à Monalisa mobilizou não apenas a compaixão da imprensa, mas também a raiva de uma série de mulheres anônimas que enviaram cartas ao tribunal. As cartas defendiam que "a beleza da acusada estimulava os homens a juízos duvidosos, menos implacáveis", escreve Sciascia, e continua: "'O que é a beleza', exclama com atroz estupor Gioacchino Belli: em um soneto onde, dando como exemplo a opção feita entre os gatinhos recém-nascidos em só criar os mais bonitinhos, jogando os demais no lixo, nos mostra, em toda a sua atrocidade, justamente, um fato que de hábito se pratica ou do qual se ouve falar sem espanto, sem horripilação. Mas a beleza... De uma mulher, a beleza, dizia Stendhal, é uma promessa de felicidade: seja ela reservada a nós ou aos outros" (1912+1, trad. Tizziana Giorgini, Rocco, 1987, p. 52). 
2) Na página seguinte, Sciascia comenta o depoimento "do professor Pompeo Molmenti", "senador do Reino" e "estudioso de história veneziana, dando especial atenção à vida libertina da cidade no século XVIII e a seu cidadão mais ilustre nesse sentido", ou seja, Casanova. "Estava publicando justamente naquele ano os Epistolari veneziani del secolo XVIII, volumoso e ainda utilíssimo livro; e dentre outros tantos trabalhos, já em 1910 dera uma primeira mostra dos Carteggi casanoviani". Polimanti, o homem assassinado pela condessa, é ligado sutilmente a Casanova no texto de Sciascia - Polimanti teria retirado dos escritos de Casanova algumas táticas de conquista, escritos esses tornados populares na Itália justamente por conta do trabalho do professor Pompeo Molmenti. É, enfim, a figura do professor Molmenti que permite a Sciascia uma digressão (mais uma) que o afasta da condessa Tiepolo e do julgamento e permite a Sciascia um comentário acerca de suas preferências narrativas:
O professor Molmenti: que é um daqueles personagens do mundo da erudição, da cultura, que sumamente me interessam, me fascinam: personagens que dedicam quase a vida inteira a seguir as pegadas, quase que a perseguir personagens que são deles, de sua vida, de seus entendimentos, exatamente o contrário. E me veio a expressão "seguir as pegadas" pensando naquele que é o exemplo mais considerável: o católico e quase (ou simplesmente) jansenista Pietro Paolo Trompeo, austero, caseiro, de sempre casta locução, que, começando ainda jovem a seguir as pegadas do ateu e libertino Stendhal na Itália romântica, seguiu-o por toda a vida mesmo em outras partes e conjunturas: com um amor e uma sensibilidade que quase diria inigualáveis. E seu primeiro livro intitula-se justamente Nell'Italia romantica sulle orme di Stendhal. (p. 54).
3) Sciascia revela nessa passagem sua preferência por "personagens" do "mundo da erudição" que perseguem outros "personagens" que são seus opostos. Sebald e Sciascia se aproximam por via dessa predileção por figuras esquecidas, soterradas na história, que por vezes realizam trabalhos metódicos e silenciosos em seus escritórios, ateliês ou laboratórios. "E me veio a expressão", escreve Sciascia, levando a digressão adiante, em direção ao crítico literário Trompeo, especialista em Stendhal, o que permite a Sciascia, finalmente, amarrar aquela breve menção a Stendhal duas páginas antes. "Seguir as pegadas": não podemos deixar de lembrar do método deambulatório e errático de Sebald e, ainda mais especificamente, sua relação com Walser e a aproximação que faz do escritor com seu avô, ambos mortos em 1956 (não se pode dizer, como faz Sciascia acerca da relação de Trompeo com Stendhal, que Sebald lidou com Walser "com um amor e uma sensibilidade que quase diria inigualáveis"?).     

quinta-feira, 26 de novembro de 2015

As condessas

1) O sorriso da Condessa Tiepolo se mistura ao sorriso de Monalisa, escreve Sciascia em 1912+1 - Parecia-se com o sorriso da Gioconda o sorriso da condessa Tiepolo?, pergunta Sciascia retoricamente, e cita extensamente a descrição de um jornalista em 1913, durante o processo: Mas quando, diante de uma engenhosa argumentação da parte cível, a condessa, após um átimo quase imperceptível de recolhimento, volta o belo rosto e da efígie puríssima seus olhos glaucos e ardentes lampejam, e suas respostas se revelam meditadas, prontas, diretas, vocês passam a sentir que a alma dessa mulher não é assim tão simples como poderia parecer à primeira vista (Sciascia, 1912+1, p. 31). Sorriso, olhos glaucos, o enigma de uma mulher-esfinge (e a condessa Tiepolo mata, como faz a Esfinge), o enigma de duas mulheres-esfinge, Monalisa e a condessa Tiepolo, aglutinadas nesse ano de 1913, tornadas simultâneas naquilo que Barthes chamou de a estrutura do fait divers. É justamente a partir do assassinato, do detetivesco, que Barthes inicia:
Eis um assassinato: se é político, é uma informação, se não o é, é uma notícia. (...) O fait divers nos diz que o homem está sempre ligado a outra coisa, que a natureza é cheia de ecos, de relações e de movimentos; mas, por outro lado, essa mesma causalidade é constantemente minada por forças que lhe escapam (...). No fait divers, a dialética do sentido e da significação tem uma função histórica bem mais clara do que na literatura, porque o fait divers é uma arte de massa: seu papel é, ao que parece, preservar no seio da sociedade contemporânea a ambiguidade do racional e do irracional, do inteligível e do insondável. (Barthes, "Estrutura da notícia", Crítica e verdade, trad. Leyla Perrone-Moisés, Perspectiva, 2007, p. 57, 63 e 67).
2) Como escreve Sebald em Vertigem, esse breve romance de Sciascia se desenrola muito mais como ensaio do que como relato, um ensaio sobre essa estrutura da notícia, do fait divers como ligação a uma natureza "cheia de ecos, de relações e de movimentos". Matéria-prima do próprio Sebald, cujo narrador encontra Salvatore, o jornalista que está lendo 1912+1 dentro de Vertigem, para saber mais detalhes sobre uma série de assassinatos ocorridos na Itália (cometidos por uma tal Organização Ludwig, como o narrador descobre em uma notícia do Gazzettino, de Veneza - p. 64). De novo o assassinato, e a fixação do narrador de Sebald com os fait divers ecoa numa passagem posterior, quando ele responde a Luciana sobre o que está escrevendo, "eu próprio não sabia direito, mas que tinha a crescente sensação de que se tratava de um romance policial" (Vertigem, p. 77).
3) O sorriso da condessa Tiepolo e da Monalisa voltam a se encontrar no sorriso da Condessa descalça, a condessa Torlato-Fravrini de Ava Gardner no filme de Mankiewicz: também aqui um assassinato e a imagem de uma mulher-esfinge, um desvio fetichista como aquele que Freud encontra na Gradiva, de Jensen (o romance é de 1902, o ensaio de Freud de 1907). O filme de Mankiewicz é sobre o cinema e sobre as estratégias de criação de celebridades - tanto a condessa Torlato-Favrini de Mankiewicz quanto a condessa Tiepolo de Sciascia adquirem seus títulos por conta de suas transformações em fait divers, foram extraídas de seus contextos e transformadas em figuras tautológicas, que aparecem para justificar o próprio aparecimento. Não a mulher real, mas o fetiche, a prótese - não é um acaso que Ava Gardner tenha sido transformada em imagem/estátua em pelo menos três filmes: One Touch of Venus, de 1948, Pandora and the Flying Dutchman, de 1951, e The Barefoot Contessa, de 1954, e feita estátua também como homenagem póstuma, em 1998, na cidade de Tossa de Mar.   

quarta-feira, 25 de novembro de 2015

Sebald, Sciascia

*
"...Salvatore já estava sentado diante do bar de toldo verde e lia (...). O livro que estava lendo tinha uma sobrecapa cor-de-rosa com o retrato de uma mulher em cores escuras. Em vez do título, havia embaixo do retrato a combinação de números 1912+1. (...) Depois do serviço, disse Salvatore, eu me refugio na prosa como numa ilha. (...) sua miopia e o fato de estar absorto na história contada por Sciascia o tinham isolado quase completamente de tudo que se passava ao redor. (...) No centro da narrativa de Sciascia, que se desenrolava mais na forma de ensaio, estava uma certa Maria Oggioni, nata Tiepolo, esposa de um capitano Ferrucio Oggioni, que em 8 de novembro de 1912 fuzilou o ordenança do marido, um bersagliere chamado Quintilio Polimanti (...). 
Os jornais da época, obviamente, se fartaram com a história, e o julgamento, que empolgou a fantasia da nação durante semanas - afinal a acusada, como a imprensa não se cansava de frisar, era da família do famoso pintor veneziano -, (...) não revelou por fim outra coisa a não ser a verdade que no fundo todos já conheciam, que a lei não é igual para todos e a justiça não é justa. Como Polimanti não era mais capaz de defender sua causa, ficou um pouquinho mais fácil para os juízes se deixarem conquistar totalmente pelo misterioso sorriso da signora Oggioni, que todo mundo em breve só chamava de contessa Tiepolo, um sorriso que de pronto lembrou aos jornalistas o da Gioconda, tanto mais que a Gioconda então, em 1913, povoava também as manchetes, depois que foi descoberta debaixo da cama de um operário de Florença que a libertara do exílio no Louvre dois anos antes e a levara de volta para a pátria dela" (Sebald, Vertigem, trad. José Marcos Macedo, Cia das Letras, 2008, p. 100-102).
*
"Em pouco mais de uma semana, o caso Tiepolo some dos jornais. Outros fatos fazem notícia: o tango que chega de Paris; o Parsifal que é levado no Scala com um intervalo que permite ir jantar folgadamente (e surge a polêmica entre aqueles que aceitam, em caráter excepcional, a novidade, e aqueles que, em nome da tradição itálica, a rejeitam); e dá-se também o ressurgimento, em Florença, da Gioconda de Leonardo que fora roubada no Louvre dois anos antes." (Leonardo Sciascia, 1912+1, trad. Tizziana Giorgini, Rocco, 1987, p. 22).
"1913 é o ano do sufrágio universal, do pacto Gentiloni, da guerrilha na Líbia (que, terminada a guerra, mais que a guerra dá à maioria dos italianos o sentido da posse colonial, o orgulho do 'teneo te, Africa' e da equiparação às nações europeias de mais antigo, longo e sabido alcance em matérias de terras de além-mar); e era também o ano em que o nacionalismo conheceu comoções e sobressaltos que vão em direção totalmente contrária à política externa que o governo conduz." (p. 66).  

domingo, 22 de novembro de 2015

1912+1

1) É difícil estabelecer com segurança uma cadeia de eventos interligados nas narrativas de Sebald e dizer: pronto, é isso. No caso específico que aqui me interessa, estou lidando com a breve menção que Sebald faz a Leonardo Sciascia em Vertigem. Tudo poderia começar com a insistência de Sebald (e não apenas neste livro inicial de sua carreira) de puxar histórias dos jornais, algo que também acontece em Sciascia (e não apenas em seu livro de 1986, 1912+1, que é citado por Sebald em Vertigem, mas em toda sua obra, sempre alimentando-se dos absurdos cotidianos encontrados nos jornais). 
2) Sim, poderia começar com essa proximidade constante de Sebald e Sciascia das histórias verídicas dos jornais. Mas notei que muito antes, ainda em Vertigem mas em um capítulo anterior, Sebald cita o pintor Tiepolo (todas essas remissões à visão e à imagem, sempre tão recorrentes). É o segundo trecho de Vertigem, aquele intitulado "All'Estero", e Sebald escreve: "As nuvens baixas que vinham dos vales alongados sobre a paisagem desoladora ligaram-se em minha imaginação ao quadro de Tiepolo que eu costumava contemplar durante horas" (trad. José Marcos Macedo, Cia das Letras, 2008, p. 45). O narrador faz referência à sua primeira viagem a Verona, em 1980; em 1987, ele retorna, vasculha os jornais do dia (02 de agosto de 1987) e, mais tarde, por conta da viagem que Kafka fez até a mesma cidade em 1913, o narrador vai à Biblioteca Civica e vasculha também os jornais locais de agosto e setembro de 1913.
3) Depois da visita à Biblioteca, o narrador encontra em uma praça um jornalista chamado Salvatore - ele está lendo 1912+1. "A história contada por Sciascia", diz Salvatore, escreve Sebald, "era uma sinopse fascinante dos anos imediatamente anteriores à Primeira Guerra Mundial. No centro da narrativa, que se desenrolava mais na forma de ensaio, estava uma certa Maria Oggioni, nata Tiepolo" (p. 101). O narrador sequer menciona a coincidência de sua leitura dos jornais de 1913 na Biblioteca Civica e o encontro com Salvatore se dar justamente a partir do livro de Sciascia, 1912+1 (menciona o parentesco da protagonista de Sciascia com o pintor Tiepolo, mas não resgata a imagem de Tiepolo que havia lhe ocorrido no início do livro). O que permanece também não-dito, mas bastante presente, é uma dupla semelhança que aproxima Sebald e Sciascia: o apego escrupuloso ao factual, ao verídico, ao jornalístico; e, por fim, essa narrativa que se desenrola "mais na forma de ensaio". 

terça-feira, 17 de novembro de 2015

Escrita, prisão

1) No prólogo que escreve a sua coletânea de ensaios Logis in einem Landhaus, Sebald avisa que são textos sobre seus autores prediletos, aqueles que colocou na mala "nos primeiros dias do outono de 1966", quando estava prestes a deixar a Suíça em direção a Manchester: uma cópia de O verde Henrique, de Gottfried Keller, outra de O amigo da família renana, de Johann Peter Hebel, e "uma cópia já meio desbeiçada" de Jakob von Gunten, de Robert Walser. Mesmo tendo lido milhares e milhares de páginas depois do encontro com esses livros, escreve Sebald, eles permanecem centrais, incontornáveis, "e se hoje tivesse que me transferir para outra ilha, eles certamente encontrariam lugar na minha bagagem".
2) Tais livros forçam sua presença na vida e na imaginação de Sebald, segundo o próprio. Ainda no prólogo, essa ideia de uma presença forçada é ampliada em direção à atividade da escrita e a posição de tal atividade na vida dos escritores em questão. "Contra o vício da escrita não parece haver remédio", escreve Sebald, acrescentando o exemplo de Rousseau, a quem também dedica um ensaio, que exilado na ilha de Saint-Pierre expressou o desejo de abandonar a escrita, "mas que continua a escrever até morrer". Esses escritores, escreve Sebald, são "prisioneiros em seus próprios mundos de palavras". E assim como Sebald aponta a ironia do fato de Rousseau procurar retirar forças de uma prisão para se livrar de outra (sem sucesso), não deixa de apontar a situação análoga em Keller - que abandona o emprego público para dedicar-se à escrita - e sobretudo em Walser - que se faz interno de um sanatório como medida contra a prisão da escrita.
3) De certa forma, é como se a prisão autoimposta desses escritores levasse Sebald a uma fidelidade inexorável de leitor, uma fidelidade imune a qualquer texto que o futuro pudesse oferecer. Ao mesmo tempo, a prisão se materializa nessa mala de viagem do jovem estudante, que seria rigorosamente a mesma se surgisse a necessidade de uma nova mudança. No ensaio sobre Walser, que faz parte dessa coletânea, Sebald escreve que "na metade de sua vida, escrever tornou-se realmente uma tarefa penosa para Walser", "É uma espécie de corveia que ele presta na mansarda do Hotel Blaues Kreuz, onde, segundo declaração dele, passa de dez a 13 horas seguidas sentado à escrivaninha todos os dias, no inverno com o capote militar e pantufas que ele próprio fez com retalhos. Fala de uma prisão da escrita, um cárcere e uma câmara de chumbo, e do perigo de perder a razão devido ao esforço ininterrupto" (tradução de José Marcos Macedo, Serrote, nº 5, p. 98).

segunda-feira, 9 de novembro de 2015

Roberto Arlt, 1929

1) Em 1929, o ano de O som e a fúria, de Faulkner, e de Berlin Alexanderplatz, de Alfred Döblin, Roberto Arlt publica Los siete locos, a história do encontro de Erdosain com O Astrólogo, espécie de reencarnação do demônio, de Aleister Crowley proletário e portenho. Erdosain, como Arlt, é um inventor fracassado; não consegue transpor para o mundo material aquilo que sonha, e essa impossibilidade lhe frustra imensamente — é essa dimensão da obra e da personalidade de Arlt que mais vai fascinar Ricardo Piglia, em obras como Nombre falso (1975), La ciudad ausente (1992) ou Blanco nocturno (2010). Los siete locos fala do desejo do Astrológo de realizar uma revolução social, financiada pelos lucros de sua rede de bordéis espalhados pela Argentina. Essa sensibilidade do complô, da conspiração e da anarquia, que já está em El juguete rabioso, é fundamental na poética de Arlt e repercutirá, por exemplo, na conspiração dos cegos no romance de Ernesto Sabato, Sobre héroes y tumbas, de 1961. 
2) O dilema fundamental da obra de Arlt está em toda parte: técnica e subjetividade, sentimento e produção, invenção e brutalidade, sutileza e mecânica, todos em confronto dentro de uma percepção atormentada e fragmentada do mundo. Daí a leitura insistente que Arlt fazia de Dostoiévski, chegando ao ponto de reescrever Crime e castigo em um conto, “El jorobadito” (publicado em uma coletânea de contos de mesmo nome lançada em 1933), em que um homem narra como estrangulou Rigoletto, o corcunda do título. “Fiz um imenso favor à sociedade, pois livrei todos os corações sensíveis como o meu de um espetáculo pavoroso e repugnante”, escreve o assassino sobre seu crime, como Raskolnikóv, ou como aquele narrador das Memórias do subsolo: “Sou um homem doente, um homem mau, um homem desagradável”.
3) Para Arlt, o vício, a doença e a maldade dos seres são elementos que os ligam ao espaço que os circunda — cidades, quartos, subterrâneos, bordéis, bibliotecas, daí seu olhar tão treinado para as minúcias do cotidiano, como encontramos nas Águas-fortes. “Sem dúvida não se encontra em toda Buenos Aires um cínico da tua estampa e do teu calibre”, diz o assassino ao corcunda. Esse é o campo de ação de Döblin e também de Hermann Broch (em Os sonâmbulos sobretudo) — as prostitutas, os rufiões, os ex-presidiários — mas sobretudo de Elias Canetti e de seu Auto de fé. É impressionante notar como Roberto Arlt movimenta peças semelhantes àquelas de Canetti, e num estilo afim: violento, desencantado, por vezes brutal, frequentemente irônico e escarnecedor. Mas há um elemento perturbador em tudo isso, porque Arlt retoma os motivos de Canetti — o corcunda, a violência, a misoginia, até a tentativa de queimar uma biblioteca em El juguete rabioso— antes de Canetti publicar Auto de fé, em 1935. Algo que casa bem com a obra de Arlt, cheia de eventos mágicos, delírios e preocupações metafísicas, mas também envolvida numa deliberada reflexão artística sobre a potência do falso e da ficção.

quinta-feira, 5 de novembro de 2015

Estratégias austríacas

Para Sebald, interesses pessoais e profissionais o encaminhavam à Áustria (foco de atenção também do autor que mais impacto teve sobre Sebald, Thomas Bernhard). Trata-se de uma "tradição literária que muito me interessa", ele escreve no prólogo de Pátria apátrida, mencionando que, cinco anos antes (em 1985, portanto), havia publicado outro conjunto de ensaios, Die Beschreibung des Unglücks (a descrição da infelicidade), no qual "ocupavam o primeiro plano as determinantes psíquicas da escrita". Agora, escreve Sebald sobre Pátria apátrida, "trata-se antes das condicionantes sociais de uma visão literária do mundo". Quando escreve sobre Jean Améry, resume muito daquilo que o interessa no contexto austríaco: "Para Améry, não foi a entrada das tropas de Hitler o que destruiu a sua pátria, mas a solicitude com que o país se abriu à invasão: já deviam ter as bandeiras preparadas há muito tempo".
*
"Outro dia desses falei com Jean Wahl, justo quando voltava de um encontro com Bergson. Este já vê os chineses às portas de Paris - e isso enquanto os japoneses ainda levavam a melhor na guerra. Wahl também me disse que, segundo Bergson, as estradas de ferro eram culpadas de tudo. (Outra questão é saber o que se poderá arrancar de Jean Wahl quando estiver com oitenta anos) Grete de Francesco passou por Paris. Falei com ela só por telefone. Está assustadoramente abatida. Os pais dela caíram na armadilha austríaca junto com um considerável patrimônio" (Carta de Walter Benjamin a Theodor Adorno, de Paris, em 16 de abril de 1938 - Correspondência, 1928-1940. Trad. José Marcos Macedo. Editora UNESP, 2012, p. 358).
*
Em me lembro, disse Vera, disse Austerlitz, de um desses mascates, um tal de Saly Bleyberg, que nos contou as histórias mais aterradoras sobre o comportamento infame dos vienenses: os métodos com que o obrigaram a transferir o seu negócio a um certo senhor Haselberger, o modo como foi trapaceado no preço da venda, que de toda forma já era ridículo, como se viu privado da sua conta bancária e dos seus títulos, como todos os seus móveis e o seu carro Steyr foram confiscados e, finalmente, como ele, Saly Bleyberg e os seus, sentados sobre as malas no pátio de casa, foram obrigados a ouvir o zelador bêbado negociando com o jovem casal, obviamente recém-casado, que viera dar uma olhada no apartamento agora vago. (Austerlitz, trad. José Marcos Macedo, Cia das Letras, 2008, p. 169).

segunda-feira, 2 de novembro de 2015

Relógios

Ingmar Bergman, Smultronstället (1957)
1) Já no início de Austerlitz, quando o narrador e Jacques Austerlitz se encontram no restaurante da estação de trens de Antuérpia, surge "um poderoso relógio, peça que dominava a sala do bufê, no qual um ponteiro com cerca de dois metros fazia sua ronda em torno de um mostrador antes dourado, mas agora enegrecido pela fuligem da estação e pela fumaça do tabaco" (p. 12). E Austerlitz declara, algumas páginas mais adiante: "eu nunca tive nenhum tipo de relógio, nem um relógio de pêndulo, nem um despertador, nem um relógio de bolso, muito menos um relógio de pulso. Um relógio sempre me pareceu algo ridículo, algo absolutamente mendaz, talvez porque sempre resisti ao poder do tempo em virtude de um impulso interno que eu mesmo nunca entendi, excluindo-me dos chamados acontecimentos atuais, na esperança, como penso hoje, disse Austerlitz, de que o tempo não passasse" (Sebald, Austerlitz, trad. José Marcos Macedo, Cia das Letras, 2008, p. 103-104).
2) O tempo como relógio e calendário - um tema que Walter Benjamin elabora a partir de Marx e Baudelaire. A XV tese sobre o conceito de história fala da destruição dos relógios no início da Revolução Francesa; no Livro das Passagens Benjamin inclui uma série de citações e comentários sobre a uniformização do tempo que ocorre com o capitalismo (que desemboca no "paradigma 24/7" desenvolvido por Jonathan Crary), especialmente o trecho de uma carta a Engels na qual Marx fala que "toda a teoria da produção em larga escala" foi desenvolvida a partir da invenção e aperfeiçoamento do relógio (Z2); na poesia de Baudelaire, escreve Benjamin no mesmo Livro das Passagens, o relógio grita que é a vida, a vida implacável (J49,5), ocupando um lugar central em sua "hierarquia de emblemas" (J69,6), além disso, o próprio Baudelaire teria removido os ponteiros de seu relógio e escrito no mostrador: É mais tarde do que você imagina! (J90a,1).
3) No próprio conjunto de escritos de Sebald encontramos o exemplo oposto - um personagem que colecionava relógios de forma maníaca, ninguém menos que Joseph Roth. "Mostradores e relógios de todos os tipos têm particular significado na obra de Roth", escreve Sebald no ensaio "Um kaddisch pela Áustria: sobre Joseph Roth", e continua: "Há demasiados ditos irrefutáveis sobre o tempo e o fim. Ultima multis, última para muitos. Ultima necat, a última é fatal, entre outros. Bronsen conta que Roth colecionava relógios sem critério algum e que cuidar dos relógios se tornou uma mania sua nos últimos anos" (Sebald, Pátria apátrida (Unheimliche Heimat), trad. Telma Costa, Lisboa: Teorema, 2010, p. 101). Um dos últimos textos de Roth publicados em vida - em abril de 1939 no Pariser Tageszeitung - chamava-se justamente "No relojoeiro".