domingo, 30 de junho de 2013

Literatura burguesa até a medula

1) A linguagem é fascista porque obriga a dizer, afirma Barthes na Aula. O projeto ficcional de Thomas Bernhard parece tanto um questionamento quanto uma aplicação dessa máxima. Aquilo que obriga Bernhard a usar a linguagem de forma maníaca é precisamente seu desgosto diante de uma visão de mundo que se apresenta como imutável ou tradicional - aquilo que é herdado, que é estabelecido, o familiar, tudo de bom tom e de bom gosto, é esse conjunto de premissas sociais que desperta o ódio de Bernhard. Mas o caráter fascista da linguagem é, de certa forma, também um espelhamento do aberto fascismo comportamental (no passado e no presente) de tantos personagens de Bernhard (especialmente o pai em Extinção).
2) Nada de humanista em Thomas Bernhard - nesse ponto ele está com Heidegger e seu questionamento da necessidade de resgatar o valor do humanismo e de suas práticas. Em Bernhard, o humanismo é traduzido pelas convenções, pela opressão da casa paterna e pelo intenso e contínuo trabalho de recalcamento do estrangeiro, do atípico, do desvio. É por isso que em Extinção o narrador Murau se exila em Roma. Tudo que diz respeito à casa paterna está corrompido - é falso e postiço, ou, em última análise, "burguês": uma literatura pequeno-burguesa é o que temos diante de nós quando temos diante de nós a literatura alemã, mesmo os grandes exemplos dessa literatura alemã não são outra coisa, Thomas Mann, o próprio Musil. Essa literatura é burguesa até a medula (Extinção, tradução de J. M. Mariani de Macedo, p. 445).
3) O pai de Murau é apresentado como um "nazista forçado" e sua mãe como uma "nacional-socialista histérica". Eles saudaram Hitler com júbilo, e depois da guerra esconderam em sua imensa propriedade vários chefes sobreviventes do Führer. Murau recebe em Roma um telegrama de suas irmãs, informando da morte dos pais e do irmão em um acidente. No enterro, os nazistas estão presentes e saúdam o caixão do velho camarada. De forma surpreendente - e um pouco abrupta -, Murau, que agora é herdeiro e novo senhor da casa paterna, decide por uma espécie de reparação: presenteia toda a propriedade à comunidade judaica de Viena. 

sexta-feira, 28 de junho de 2013

Humanismo e comentário

1) O texto de Auerbach sobre Vico, no qual ele rapidamente estabelece uma filologia dos comentários envolvendo Vico, Herder e "o culto a Ossian", é de 1949 (Journal of Aesthetics and Art Criticism, vol. 8, n. 2). Três anos antes, em 1946, Martin Heidegger arma sua Carta sobre o humanismo sobre um comentário feito a partir de um questionamento de Jean Beaufret - o questionamento de Beaufret, admirador e divulgador da obra de Heidegger na França, era o seguinte: como devolver sentido à palavra 'humanismo'?
2) O comentário de Heidegger ao questionamento é por si só um questionamento das premissas utilizadas - qual a razão de sequer imaginar a necessidade de manutenção do humanismo, ou da palavra humanismo? "Eu me pergunto se isso é necessário", escreve Heidegger, "já não é suficientemente óbvio o desastre que todos os títulos desse tipo preparam?" Beaufret não apenas pressupõe que a palavra humanismo deve ser mantida, aponta Heidegger, como admite sub-repticiamente que "a palavra perdeu seu sentido". Segundo Peter Sloterdijk, em Regras para o parque humano, a "retificação da pergunta de Beaufret", empreendida por Heidegger em sua carta, "não está desprovida de uma malícia magistral, porque, à maneira socrática, ela defronta o estudante com a falsa resposta contida na questão".
3) Para que exaltar novamente o ser humano e seu autorretrato filosófico padrão como solução no humanismo, se a catástrofe do presente acaba de mostrar que o problema é o próprio ser humano, com seus sistemas metafísicos de auto-elevação e auto-explicação? Querido Beaufret, parece dizer Heidegger, é preciso começar do zero, ou talvez abandonar todo desejo de começar. Dois anos antes, Adorno e Horkheimer, na Dialética do esclarecimento, já indicavam o fim totalitário do projeto intelectual europeu. Nas palavras de Sloterdijk: "o humanismo se oferece como cúmplice natural de todos os possíveis horrores que podem ser cometidos em nome do bem humano. (...) Na visão de Heidegger, o fascismo foi a síntese do humanismo e do bestialismo; isto é, a paradoxal confluência de inibição e desinibição" (Regras para o parque humano, tradução de José Oscar Marques, Estação Liberdade, p. 31).   
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Lembrar também que Roland Barthes, em 7 de janeiro de 1977, em sua primeira fala no Collège de France, naquela que ficou conhecida como a Aula, Barthes diz que a língua não é nem reacionária nem progressista, "a língua como performance de toda a linguagem não é nem reacionária nem progressista", a língua é pura e simplesmente fascista, "porque o fascismo não consiste em impedir de dizer, mas em obrigar a dizer". 

terça-feira, 25 de junho de 2013

Imaginação e estilo

1) Quando um estudioso dinamarquês, Tom Kristensen, pediu ajuda a James Joyce na tarefa de decifrar Finnegans wake, ele respondeu: "Tom, leia Vico". "Mas você acredita na Scienza Nuova?", perguntou o dinamarquês. "Não creio em nenhuma ciência", respondeu Joyce, "mas minha imaginação cresce quando leio Vico, como não aconteceu quando li Freud ou Jung" (Ellmann, James Joyce, tradução de Lya Luft, Globo, 1989, p. 853). Não há qualquer indicação complementar acerca desse crescimento imaginativo por parte de Joyce. Ellmann também não diz nada sobre a comparação - por que justamente Jung e Freud contra Vico? Mais do que as ideias, seria a forma? Seria a "atmosfera barroca", a "nuvem de impenetrabilidade", as "dificuldades de estilo" em Vico, conforme o diagnóstico de Auerbach?
2) O problema levanta a questão do estilo, da tonalidade própria que um pensador pode imprimir em sua escritura - e talvez o traço barroco de Vico seja justamente o que tenha despertado a imaginação de Joyce. A questão do estilo no pensamento filosófico ocupou boa parte das energias de Jacques Derrida. Sua leitura de Rousseau, por exemplo, em Gramatologia, é uma leitura do posicionamento pessoal de Rousseau diante da tradição filosófica, um posicionamento que é filtrado pela dinâmica textual das Confissões (que já em seu tempo reivindicava a possibilidade do estilo).
3) A crítica que Paul de Man direciona a Derrida é também sobre Rousseau e sobre o estilo - no prefácio a Allegories of Reading, de Man escreve: I began to read Rousseau seriously in preparation for a historical reflection on Romanticism and found myself unable to progress beyond local difficulties of interpretation. Para de Man, as estratégias retóricas de Derrida em Gramatologia estão a serviço da construção do estilo de Derrida, e não a serviço da dissecação do estilo de Rousseau. Novos avatares da "nuvem de impenetrabilidade".        

sexta-feira, 21 de junho de 2013

Joyce lendo Vico

1) Auerbach, ao comentar Vico, fala das "dificuldades de seu estilo" e da "atmosfera barroca de seu livro", Scienza Nuova. Isso é importante na argumentação de Auerbach porque, segundo ele, foi esse aspecto "barroco" de Vico que atrapalhou a potencial percepção de Goethe ou Herder das ideias de Vico. Como se Vico tivesse perdido a oportunidade de chegar ao romantismo alemão, que antecipava em tantos aspectos, por um triz. Mas não, por conta da "nuvem de impenetrabilidade" a Scienza Nuova terá que esperar até Croce e Nicolini, terá de esperar até o século XX, terá que esperar até James Joyce.
2) É o próprio Auerbach quem escreve: algumas das ideias básicas de Vico "parecem ter adquirido sua força integral apenas para nossa época e geração; tanto quanto sei, nenhum grande autor ficou tão impressionado com sua obra quanto James Joyce". O texto de Auerbach é de 1949. Talvez o estilo barroco que não atingiu Goethe tenha conseguido finalmente atingir alguém, atingindo James Joyce - pois é inegável que os termos utilizados por Auerbach para Vico, "dificuldades de estilo", "atmosfera barroca" e "nuvem de impenetrabilidade", podem servir também para Joyce. Richard Ellmann escreve que, "para dar forma" ao seu novo projeto - o Finnegans wake -, Joyce "reestudou Giambattista Vico". Joyce "era particularmente atraído para um emprego 'napolitano puritano' da etimologia e mitologia para revelar o significado dos acontecimentos" (James Joyce, tradução de Lya Luft, Globo, 1989, p. 683).
3) Joyce estava ligado a Vico também e evidentemente pela leitura de Homero - para Vico, Homero não era um poeta individual, mas um mito que condensava inúmeros poetas espalhados pelo tempo. E nas palavras de Auerbach, Vico "não acreditava no progresso, mas num movimento cíclico da história". Eis o Ulisses: um único dia que dá acesso a um ciclo inteiro da história, sem que ele seja imediatamente reconhecível (para que ele seja repetição mas também diferença - nas palavras de outro barroco, Deleuze). 

quarta-feira, 19 de junho de 2013

Auerbach lendo Vico

Manuscrito de Scienza Nuova
1) Um bom exemplo dessa filologia dos comentários está no ensaio de Erich Auerbach sobre Giambattista Vico, "Vico e o historicismo estético" (Ensaios de literatura ocidental, p. 341-356). O que está em jogo na argumentação de Auerbach é o assombro diante daquilo que Vico alcançou em termos metodológicos e, principalmente, em termos de audácia e inventividade de ideias. Segundo Auerbach, Vico antecipou uma série de procedimentos que só viriam à tona historicamente com os românticos alemães - o principal desses procedimentos é justamente o tal "historicismo estético", que estabelece uma espécie de mobilidade do juízo, ou seja, "uma investigação das formas históricas e estéticas particulares", uma "tentativa de compreendê-las a partir de suas próprias condições de crescimento e desenvolvimento" e "uma rejeição dos sistemas estéticos baseados em padrões absolutos e racionalistas".
2) Sem qualquer tipo de contato com os elementos que, segundo Auerbach, tornaram tal cenário possível (Shaftesbury e Rousseau, "a tendência vitalista de certos biólogos do século XVIII", a poesia sentimental francesa e inglesa, "o culto de Ossian e o pietismo alemão"), Vico antecipou em pelo menos cinquenta anos a revolução historicista. "Ele nem sequer conhecia Shakespeare", escreve Auerbach. Vico era "um velho professor solitário da Universidade de Nápoles", que durante toda a vida "ensinara figuras de retórica latina e escrevera louvações hiperbólicas para vários vice-reis napolitanos e outras personalidades importantes". E quando finalmente decide escrever suas ideias tão inovadoras, o faz em um estilo difícil, com uma "atmosfera barroca" que cobria o livro "com uma nuvem de impenetrabilidade". 
3) Os poucos alemães que, na segunda metade do século XVIII (Vico morreu em 1744), chegaram a encostar na Scienza nuova, "não conseguiram reconhecer sua importância" (Goethe entre eles). E é aqui que entra a filologia dos comentários, quando Auerbach escreve que "esforços contínuos de estudiosos modernos para estabelecer um elo entre Vico e Herder revelaram-se bem-sucedidos depois de Robert T. Clark mostrou a probabilidade de que Herder tenha encontrado inspiração, para algumas de suas ideias sobre a língua e a poesia, nas notas de Denis à tradução alemã de Macpherson. Denis apropriara-se das notas de Cesarotti, um tradutor italiano de Ossian que estava familiarizado com as ideias correspondentes de Vico". Ou seja, Herder poderia ter tido contato com as ideias de Vico através das notas de Denis aos escritos de um terceiro que, esse sim, teria lido Vico diretamente. No parágrafo seguinte, Auerbach descarta a hipótese como excessivamente especulativa.  

segunda-feira, 17 de junho de 2013

Retornos à filologia

W. J. Bate, 1918-1999
1) Poucos anos depois da publicação de Orientalismo, em 1978, livro no qual Said procura oferecer um relatório dos aspectos traumáticos da formação da filologia como disciplina moderna, poucos anos depois, portanto, no início da década de 1980, Paul de Man escreve o ensaio "The Return to Philology", publicado em 10 de dezembro de 1982 no Times Literary Supplement. Apesar do teor programático do título, o ensaio nasceu como uma resposta pontual de Paul de Man às considerações de Walter Jackson Bate, professor em Harvard, sobre o ensino de literatura nos Estados Unidos ("The Crisis in English Studies", Harvard Magazine, set-out. 1982). 
2) Parte do trabalho da filologia está no estudo dos comentários, ou seja, o estudo da natureza e das funções dos comentários e a história das práticas de leitura revelada pelos comentários. Um texto como o Pierre Menard de Borges diz mais sobre um contexto histórico específico de comentário do que sobre o Dom Quixote em si - embora o conto de Borges seja também uma leitura de Cervantes. Os retornos de Paul de Man e Edward Said à filologia são, portanto, comentários ao campo da filologia e aos seus instrumentos, e carregam a dinâmica própria dessa "história das práticas de leitura". 
3) O que Said tem mente, ao menos em parte, no andamento de Orientalismo, é a filologia das "línguas históricas" e o complexo relacionamento disso com as políticas imperialistas durante uma diacronia bastante extensa. De Man, por outro lado, reivindica domínios mais restritos - sua insistência retórica ganha ares mais concretos quando se pensa no posicionamento institucional que se buscava para o pensamento da desconstrução na época de publicação do ensaio. Jacques Derrida, em O olho da universidade, resgata o ensaio de Paul de Man e também o texto inicial de W. J. Bate, que Derrida qualifica de "ignorante" e "irracional". Já são ao menos três retornos: o retorno da filologia ao passado, seu gesto definidor; o retorno de Paul de Man à filologia; e, finalmente, o retorno de Derrida ao retorno de Paul de Man - um "retorno" que é traduzido por Derrida como "disputa", confronto entre aqueles que leem e aqueles que não leem o suficiente.   

domingo, 16 de junho de 2013

Filologia e orientalismo

1) Para o Foucault de As palavras e as coisas (no capítulo "Trabalho, vida, linguagem"), a invenção da moderna filologia como um campo de estudo histórico e gramatical deve-se a um sujeito chamado Franz Bopp (1791-1867). Enquanto Napoleão virava do avesso a geografia europeia, Bopp passava doze horas por dia nas bibliotecas de Paris, lendo manuscritos em sânscrito. Foucault insiste na mudança de paradigma que aconteceu com Bopp: pela primeira vez um estudo sistemático relacionava o grego, o latim, o sânscrito, o persa, o alemão, não por suas características morfológicas comuns, e sim por suas estruturas gramaticais, flexões e composições comuns. "A linguagem tornada objeto", escreve Foucault (desnaturalizada, "profanada", como diria Agamben).  
2) A ideia de profanação pode servir também para ler os comentários que Edward Said faz sobre Bopp, Foucault e a filologia. Em Orientalismo, Said aponta que essa "descoberta da linguagem" enunciada por Foucault, ou seja, a descoberta da linguagem como objeto, é desdobramento de uma situação maior - uma situação que diz respeito justamente ao caráter religioso, sobrenatural, metafísico da linguagem e de sua origem. Orientalismo está cheio de referências a Cuvier, Franz Bopp e sir William Jones, figuras mobilizadas por Foucault no capítulo de As palavras e as coisas dedicado à delimitação histórica da emergência da filologia. 
3) Uma dicotomia cristã e europeia é abalada nessa "descoberta da linguagem", uma vez que fica exposto um substrato comum, um sistema arcaico de relações entre Ocidente e Oriente que se dão na esfera da linguagem, da comunicação. Mas a hipótese de Said é que esse contato é seletivo e que esse sistema de relações será filtrado por um rigoroso desejo de controle - por isso a menção a Napoleão não é gratuita, pois é com ele que esse desejo de controle, aliado a um desejo de contato seletivo, ganha corpo histórico. A filologia inovadora de Bopp só pôde acontecer por meio da vasta quantidade de materiais recolhidos pelo orientalista William Jones no Oriente e levados ao Ocidente - um dos pilares da construção moderna da Europa, portanto, depende desse fluxo estrangeiro.      

terça-feira, 11 de junho de 2013

Quando a sombra descola do chão

1) Um belo título: quando a sombra descola do chão, ou no original italiano: staccando l'ombra da terra. Mas esse staccare aí escondido dá uma ideia de força, de quase violência, a ideia de um estado "natural" que é rompido, uma inércia que é abruptamente abandonada. E há muito mais por trás das histórias que Daniele Del Giudice apresenta em seu livro de 1994: a incredulidade com relação ao fato de voar e, principalmente, certa noção um pouco mística, um pouco metafísica, de que todo voo é um pacto com o além e uma aposta com a morte (Del Giudice fala de Kafka vendo D'Annunzio voar, fala de Ícaro, de tapetes voadores, e se em O estádio de Wimbledon ele perseguiu o fantasma de Bobi Bazlen, neste aqui ele persegue, ainda que brevemente, o fantasma de Saint-Exupéry).
2) Se parte da história da literatura pode ser a história da transformação do olhar do narrador em direção ao mundo (como Stephen Dedalus que vê a mãe morta no mar esverdeado, conforme a análise de Didi-Huberman no início de O que vemos, o que nos olha), o registro dessa história deve levar em consideração a recente conquista do olhar aéreo. Pode ser em parte essa sensação de onipotência (e de onipresença que se resolve metonimicamente no olhar) que desviou o aviador Carlos Wieder de seu caminho, no Estrela distante de Bolaño. E é somente esse olhar estranhado que pode explicar todo o "fantástico" que emerge de um conto como "A ilha ao meio-dia", de Julio Cortázar. E Andrei Makine, em A terra e o céu de Jacques Dorme, precisa fazer do soldado um aviador para alcançar a medida de solidão, melancolia e isolamento tão fundamental para sua ficção.
3) Uma parte dessa história já foi contada por Sebald em Guerra aérea e literatura - a onipotência do olhar aéreo como procedimento da destruição. A distância, a precisão, as mãos limpas. "Em um artigo dedicado ao diário do dr. Hachiya de Hiroshima", escreve Sebald, "Elias Canetti coloca a questão do que significa sobreviver a uma catástrofe de tal dimensão, para então responder que isso pode ser deduzido de um texto que, a exemplo das anotações de Hachiya, se caracterize por sua precisão e responsabilidade. 'Se fizesse sentido indagar', escreve Canetti, 'pela forma de literatura indispensável atualmente - indispensável aos homens capazes de saber e de observar - então essa é a forma'" (p. 52). Para Sebald, a sombra que descola do chão se transforma em ruína.   

segunda-feira, 10 de junho de 2013

O lápis do avô de Sebald

Poucas páginas depois do prefácio que escreveu para seu livro de ensaios Logis in einem Landhaus, o prefácio no qual fala do enfermeiro de Robert Walser e do lápis que Robert Walser levava sempre no bolso de seu colete, Sebald passa a escrever sobre Johann Peter Hebel (1760-1826), escreve sobre o texto que Walter Benjamin publicou em 1926 em homenagem a Hebel e, principalmente, fala de suas recordações de infância e de seu avô. Sebald lembra da leitura do curioso projeto literário de Hebel, O amigo da família renana, um almanaque, uma espécie de compêndio de histórias breves, lendas, receitas, curiosidades. Sebald escreve: "Não obstante sua inclinação profissional pela didática, Hebel nunca se coloca como o centro de sua narrativa, mas sempre um pouco à margem, parecido com os fantasmas, que com frequência aparecem em suas histórias". A sensação é a de que, para Sebald, as histórias de Hebel são como histórias de fantasmas para adultos, para usar a expressão de Aby Warburg. "Lembro de meu avô", escreve Sebald, "cuja linguagem era muito semelhante àquela do amigo da família renana (...) e lembro como meu avô sempre comprava o almanaque de Kempten, escrevendo com seu lápis nas folhas em branco informações como os aniversários de parentes e amigos, o primeiro gelo, a chegada do föhn, e tomava notas sobre como destilar o vermute ou o licor de gentiana".    

sábado, 8 de junho de 2013

O lápis de Walser

Dias atrás, falando de Balzac e Oscar Wilde, sugeri a analogia entre três cenas de Robert Walser: a) a escritura que resiste mesmo no local escolhido para eliminá-la (o sanatório, a loucura); b) a angustiante materialidade do lápis, que se consome paralelamente à própria vida; c) a última caminhada de Walser como uma decorrência da extinção da materialidade desse mesmo lápis. Talvez no dia em que percebeu que já não era mais possível escrever com o lápis, porque sua materialidade já era inacessível, talvez tenha sido esse o dia que Walser escolheu para sua última caminhada na neve. Até certo ponto, a sugestão já havia sido dada por Sebald em seu livro de ensaios Logis in einem Landhaus (que além do ensaio sobre Walser, conta com textos sobre Rousseau, Gottfried Keller, Jan Peter Tripp, Johann Peter Hebel e Eduard Mörike). No prefácio do livro, Sebald fala de um documentário francês que por acaso descobriu uma noite na televisão - e nele está o depoimento de Josef Wehrle, enfermeiro em Herisau, enfermeiro de Walser quando estava no sanatório (a especulação ficcional em torno desse espaço: está em Pasavento, de Vila-Matas, em I beati anni del castigo, de Fleur Jaeggy). O enfermeiro Wehrle conta ao documentarista, e Sebald conta por sua vez em seu prefácio, que Walser costumava levar sempre "no bolso do colete um toco de lápis e pedaços de papel já cortados para o uso, nos quais regularmente tomava notas". Quando achava que estava sendo observado, continua Wehrle, continua Sebald, Walser "rapidamente escondia os papeis", como se estivesse em meio a "um ato ilícito ou mesmo vergonhoso". Um toco de lápis e os microgramas.    
 

quinta-feira, 6 de junho de 2013

Evolução literária formalista

Charles Maturin, 1819
1) Tinianov dedica um ensaio inteiro ao problema da "evolução literária" e Ricardo Piglia realmente dá a ele os créditos da filiação "tio-sobrinho", em Respiração artificial: Alguien, un crítico ruso, el crítico ruso Iuri Tinianov, afirma que la literatura evoluciona de tío a sobrino (y no de padres a hijos) (p. 21 da edição Seix Barral). Mas Victor Erlich parece resolver a questão em seu livro Russian Formalism: History, Doctrine (Mouton, Haia, 1955, p. 260), citando o texto de Chklóvski no qual o crítico russo afirma: according to the law which, as far as I know, I was the first to formulate, in the history of art the legacy is transmitted not from father to son, but from uncle to nephew (Erlich cita de um livrinho publicado por Chklóvski em 1923, Literatura i kinematograf, já traduzido ao inglês).
2) Não há razão, contudo, para restringir a produtividade desse método somente a Chklóvski. Pois Tinianov, em seu texto sobre a evolução literária, amplia muitíssimo a questão - naquilo que pode ser considerado como uma sorte de trabalho em grupo ou criação coletiva, dado o contexto de intensa troca intelectual que lugar nas reuniões da OPOJAZ a partir e sobretudo em 1916. 
3) Oscar Wilde antecipa esse procedimento formalista de filiação alternativa com seu Retrato de Dorian Gray, que nasce em parte do fluxo que ele absorve de seu tio Charles Maturin. Nada mais adequado à poética de Wilde, que estabelece não apenas um exercício de confusão entre vida e arte, mas uma complexa estrutura de filiações alternativas e monstruosas. Nesse sentido, observa-se que em Wilde tudo corre em direção contrária ao estabelecido, ao convencional, ao moralmente determinado - desde o desejo sexual até o referencial mimético (em Dorian Gray, por exemplo, a "arte" (o quadro) ganha independência da "vida" de modo perverso e parasitário e trágico).

segunda-feira, 3 de junho de 2013

Ainda os errantes

Nathaniel Hone, The Pictorial Conjuror, displaying the Whole Art of Optical Deception
1) O mesmo Horace Walpole que em 1764 publica O castelo de Otranto será responsável, alguns anos antes, por uma defesa de Sir Joshua Reynolds, pintor e teórico da arte que pregava a imitatio dos Antigos. Trata-se do Walpole de Anecdotes of Painting in England (que são baseadas nas notas de um amigo seu mais velho, George Vertue). Em 1775, o pintor Nathaniel Hone apresenta "O mago pictórico revelando toda a arte da impostura ótica", um ataque direto ao seu grande rival, que era justamente Reynolds. No ano anterior, numa badalada conferência na Academia, Reynolds reforçou a importância de imitar não só a natureza, mas também a obra dos Grandes Mestres. Hone, em seu quadro, mostra Reynolds numa confusão de trajes anacrônicos e reproduções que flutuam pelo ar.
2) Num texto sobre Reynolds de 1942, E. H. Gombrich faz referência a esse contexto turbulento e cita a defesa de Walpole, que escreveu: "uma citação com um novo emprego do sentido sempre foi admitida como um exemplo de talento e gosto" (Gombrich, Norma e forma, tradução de Jefferson Luiz Camargo, Martins Fontes, 1990, p. 202, nota 12). E o ponto de Gombrich está justamente nessa articulação entre "criação espontânea" e "manobras de resgate", que para ele, para o ponto de vista do historiador, funciona como uma espécie de dialética, mas que para os artistas em questão - Walpole, Reynolds, Nathaniel Hone - parece apontar para uma solução entre opostos fixos (aquele que imita não cria e vice-versa).
3) Sem o saber, Walpole marcava o ponto de partida de uma série de obras que levariam ao Retrato de Dorian Gray, de Oscar Wilde, passando também pelo Melmoth de Balzac. E é importante observar que a linha de parentesco reivindicada por Oscar Wilde não é a tradicional "PAI - FILHO", e sim aquela alternativa, apresentada muitas décadas depois por Chklóvski, do "TIO - SOBRINHO". Sim, porque foi o Melmoth do tio-avô Charles Maturin a inspiração de Wilde (e também de Balzac - mas a teoria do legado "tio-sobrinho" é de origem incerta: Ricardo Piglia, por exemplo, afirma que o criador foi Tinianov). E a postura de Walpole, ao valorizar os procedimentos de imitatio de Sir Joshua Reynolds, lança luzes anacrônicas à série de ficções (Hawthorne, Gógol, Poe, Wilde, Auster) que seu Castelo de Otranto vai irrigar.   

sábado, 1 de junho de 2013

Errantes

1) Pinturas sobrenaturais estavam presentes na literatura inglesa desde o romance de Horace Walpole O castelo de Otranto, de 1764. Mas na década de 1880 ocorreu uma inundação de contos e romances nos quais retratos mágicos tinham papel de relevo. Oscar Wilde não se baseou em nenhuma dessas histórias exclusivamente, porém incorporou em O retrato de Dorian Gray uma verdadeira coletânea de temas associados com a ficção de retratos mágicos. O romance de Wilde é o coroamento de uma tradição que inclui trabalhos consagrados, como "Prophetic Pictures", de Nathaniel Hawthorne (1837); "O retrato oval", de Edgar Allan Poe (1842); e "O retrato", de Gógol (1835) (texto retirado de uma das notas da "edição anotada e sem censura" do livro de Oscar Wilde). 
2) Wilde foi, sem dúvida, fortemente influenciado pelo livro Melmoth the Wanderer (1820), escrito por seu tio-avô materno, Charles Maturin, no qual um retrato do malevolente Melmoth (que negociou com o demônio uma vida mais longa e uma aparência não modificada) fica escondido num armário e tem olhos que se movem. A pele de onagro (1831), de Balzac, também afetou Wilde - no romance, uma imagem de Cristo exerce sinistra influência e uma pele de asno se torna um registro objetivo e visível da degeneração de seu dono. Curiosamente, Balzac publica em 1835 seu Melmoth apaziguado, uma espécie de continuação para o romance de Maturin.
3) É curioso também que Hawthorne tenha publicado em 1828 um romance chamado Fanshawe, seu primeiro trabalho, e que o protagonista se chame justamente Dr. Melmoth - e "Fanshawe" é também o nome de um dos personagens da Trilogia de Nova York de Paul Auster. E Melmoth retorna também em Nabokov, em Lolita - "Melmoth" é o apelido que Humbert Humbert dá ao seu carro (claro, o errante, o desvirtuado). Até certo ponto, são histórias nas quais a vida é transmitida - geralmente com a ajuda do demônio - a um objeto, um talismã, que vai aos poucos absorvendo a carga vital do tempo que se encadeia (um quadro, um pedaço de pele, um carro). E também pode ser "Melmoth" o nome de Rousseau, errante em seus Devaneios do caminhante solitário (1782).
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Uma analogia possível está na história de Robert Walser e na história da escritura de seus microgramas - as longas tiras de papel recobertas, ao longo de anos e anos, por uma escritura minúscula e enigmática. Ali estava seu enigma para o futuro, na escritura que se desenvolvia em segredo (ele se recolhe ao sanatório para não escrever e é justamente isso tudo que ele faz). Além da materialidade dramática dos pedaços de papel improvisados (guardanapos, jornais, embalagens), está também a finitude inexorável do lápis - ele vai acabar, e acabará na exata proporção da velocidade de escritura de Walser. Talvez no dia em que percebeu que já não era mais possível escrever com o lápis, porque sua materialidade já era inacessível, talvez tenha sido esse o dia que Walser escolheu para sua última caminhada na neve (Walser the Wanderer, Walser, o errante).