1) Um belo título: quando a sombra descola do chão, ou no original italiano: staccando l'ombra da terra. Mas esse staccare aí escondido dá uma ideia de força, de quase violência, a ideia de um estado "natural" que é rompido, uma inércia que é abruptamente abandonada. E há muito mais por trás das histórias que Daniele Del Giudice apresenta em seu livro de 1994: a incredulidade com relação ao fato de voar e, principalmente, certa noção um pouco mística, um pouco metafísica, de que todo voo é um pacto com o além e uma aposta com a morte (Del Giudice fala de Kafka vendo D'Annunzio voar, fala de Ícaro, de tapetes voadores, e se em O estádio de Wimbledon ele perseguiu o fantasma de Bobi Bazlen, neste aqui ele persegue, ainda que brevemente, o fantasma de Saint-Exupéry).
2) Se parte da história da literatura pode ser a história da transformação do olhar do narrador em direção ao mundo (como Stephen Dedalus que vê a mãe morta no mar esverdeado, conforme a análise de Didi-Huberman no início de O que vemos, o que nos olha), o registro dessa história deve levar em consideração a recente conquista do olhar aéreo. Pode ser em parte essa sensação de onipotência (e de onipresença que se resolve metonimicamente no olhar) que desviou o aviador Carlos Wieder de seu caminho, no Estrela distante de Bolaño. E é somente esse olhar estranhado que pode explicar todo o "fantástico" que emerge de um conto como "A ilha ao meio-dia", de Julio Cortázar. E Andrei Makine, em A terra e o céu de Jacques Dorme, precisa fazer do soldado um aviador para alcançar a medida de solidão, melancolia e isolamento tão fundamental para sua ficção.
3) Uma parte dessa história já foi contada por Sebald em Guerra aérea e literatura - a onipotência do olhar aéreo como procedimento da destruição. A distância, a precisão, as mãos limpas. "Em um artigo dedicado ao diário do dr. Hachiya de Hiroshima", escreve Sebald, "Elias Canetti coloca a questão do que significa sobreviver a uma catástrofe de tal dimensão, para então responder que isso pode ser deduzido de um texto que, a exemplo das anotações de Hachiya, se caracterize por sua precisão e responsabilidade. 'Se fizesse sentido indagar', escreve Canetti, 'pela forma de literatura indispensável atualmente - indispensável aos homens capazes de saber e de observar - então essa é a forma'" (p. 52). Para Sebald, a sombra que descola do chão se transforma em ruína.
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