1) Pinturas sobrenaturais estavam presentes na literatura inglesa desde o romance de Horace Walpole O castelo de Otranto, de 1764. Mas na década de 1880 ocorreu uma inundação de contos e romances nos quais retratos mágicos tinham papel de relevo. Oscar Wilde não se baseou em nenhuma dessas histórias exclusivamente, porém incorporou em O retrato de Dorian Gray uma verdadeira coletânea de temas associados com a ficção de retratos mágicos. O romance de Wilde é o coroamento de uma tradição que inclui trabalhos consagrados, como "Prophetic Pictures", de Nathaniel Hawthorne (1837); "O retrato oval", de Edgar Allan Poe (1842); e "O retrato", de Gógol (1835) (texto retirado de uma das notas da "edição anotada e sem censura" do livro de Oscar Wilde).
2) Wilde foi, sem dúvida, fortemente influenciado pelo livro Melmoth the Wanderer (1820), escrito por seu tio-avô materno, Charles Maturin, no qual um retrato do malevolente Melmoth (que negociou com o demônio uma vida mais longa e uma aparência não modificada) fica escondido num armário e tem olhos que se movem. A pele de onagro (1831), de Balzac, também afetou Wilde - no romance, uma imagem de Cristo exerce sinistra influência e uma pele de asno se torna um registro objetivo e visível da degeneração de seu dono. Curiosamente, Balzac publica em 1835 seu Melmoth apaziguado, uma espécie de continuação para o romance de Maturin.
3) É curioso também que Hawthorne tenha publicado em 1828 um romance chamado Fanshawe, seu primeiro trabalho, e que o protagonista se chame justamente Dr. Melmoth - e "Fanshawe" é também o nome de um dos personagens da Trilogia de Nova York de Paul Auster. E Melmoth retorna também em Nabokov, em Lolita - "Melmoth" é o apelido que Humbert Humbert dá ao seu carro (claro, o errante, o desvirtuado). Até certo ponto, são histórias nas quais a vida é transmitida - geralmente com a ajuda do demônio - a um objeto, um talismã, que vai aos poucos absorvendo a carga vital do tempo que se encadeia (um quadro, um pedaço de pele, um carro). E também pode ser "Melmoth" o nome de Rousseau, errante em seus Devaneios do caminhante solitário (1782).
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Uma analogia possível está na história de Robert Walser e na história da escritura de seus microgramas - as longas tiras de papel recobertas, ao longo de anos e anos, por uma escritura minúscula e enigmática. Ali estava seu enigma para o futuro, na escritura que se desenvolvia em segredo (ele se recolhe ao sanatório para não escrever e é justamente isso tudo que ele faz). Além da materialidade dramática dos pedaços de papel improvisados (guardanapos, jornais, embalagens), está também a finitude inexorável do lápis - ele vai acabar, e acabará na exata proporção da velocidade de escritura de Walser. Talvez no dia em que percebeu que já não era mais possível escrever com o lápis, porque sua materialidade já era inacessível, talvez tenha sido esse o dia que Walser escolheu para sua última caminhada na neve (Walser the Wanderer, Walser, o errante).
Mas no caso do Auster não é "curioso": é proposital, é um artifício do Autor, ele quer que vc veja isso. Vc insinua acaso onde há desígnio - tudo pra defender o PA, aquele decadente :)
ResponderExcluirO comentário do Auster é só digressão, já saiu da dimensão do "curioso" usada pro Balzac e pro Hawthorne. E é engraçado vc falar em acaso, que é uma palavra que não uso em nenhum momento mas que, no entanto, é um termo extremamente "austeriano" - vc que está querendo acusar Auster e me colocando no meio! :-)
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