domingo, 31 de julho de 2011

Diante de Puig

1) Em 1986, Alan Pauls publica um livro sobre Manuel Puig: Manuel Puig. La traición de Rita Hayworth, simples assim. Ainda escreverá mais dois livros de crítica [por enquanto], um sobre o desenhista Lino Palacio e outro sobre Borges. E Puig continuará sendo sempre citado e lembrado, ainda que isso não repercute diretamente sobre o estilo de Pauls ou sobre suas prioridades estéticas. Há, contudo, uma infiltração subterrânea, enigmática, que faz com que alguns elementos de Puig sobrevivam nos textos de Pauls.
2) Puig publica The Buenos Aires affair em 1973, e sua história, em linhas gerais, é mais ou menos assim: trama noir, caso policial e história de amor são os eixos principais, em uma mistura de Hitchcock e Freud; uma mulher desaparece, uma artista plástica de vanguarda; essa artista, descobrimos em seguida, é masoquista, e mantém um relacionamento "doentio e perturbador" com um crítico de arte [a grande autoridade das artes plásticas portenhas], que é, por sua vez, um homossexual reprimido [e impotente] que extravasa sua angústia a partir do sadismo. De forma mais ou menos velada, Puig articula o rapto da artista com os raptos da ditadura militar, assim como relaciona a violência estúpida do crítico às práticas de tortura dos militares.
2a) Um extenso desvio, para não perder a oportunidade: lembrar daquela cena de violência sexual no banheiro do tradicional Colégio Nacional, de Buenos Aires, que encontramos em Ciências morais, de Martín Kohan: o supervisor, ex-militar e ex-torturador [ex?], finalmente avança sobre a professorinha, que aterroriza de forma insidiosa desde o começo da trama. O torturador de Kohan é tão sádico e impotente quando o crítico de arte de Puig, e ataca a professora com os dedos da mão. Podemos lembrar também da cena do espancamento do taxista pelos críticos literários, em 2666 [e já que entramos em Bolaño, podemos lembrar do excelente conto "Sabios de Sodoma", da coletânea El secreto del mal, que trata justamente da violência sexual dos "machos" latino-americanos].
3) Ao contrário da escrita de Puig, que é errática, salteada, convulsiva, cheia de interpolações e impurezas, a escrita de Pauls é detalhista, controlada, segue um fluxo extremamente rigoroso, apropriando-se progressivamente do espaço que almeja. No entanto, as melhores partes de El pasado, a obra-prima de Pauls, aquelas dedicadas ao artista plástico Riltse, talvez não tivessem sido realizadas sem Puig. Mesmo que camuflada pela mudança de estilo, a atmosfera é a mesma: performances desviantes, violência sexual e política, criação artística atravessada pelo sofrimento físico e pela loucura, etc [nessa linha, é também possível dizer que muito de Mario Bellatín não seria legível sem Puig].

sexta-feira, 29 de julho de 2011

Monsieur Pain

1) Na nota preliminar que inicia Monsieur Pain, Roberto Bolaño escreve que uma das características mais marcantes do Tempo é seu senso de humor - el tiempo es un humorista de ley, são as palavras de Bolaño ["um humorista de primeira", são as palavras do tradutor Eduardo Brandão, na recente edição da Companhia das Letras]. Não estaríamos, portanto, submetidos a um regime do acaso, mas sob a influência de uma entidade que aprecia observar as consequências de seus próprios jogos. Bolaño faz essa observação por conta da diferença abissal existente entre sua vida na época em que escreveu MP [início da década de 1980, quando trabalhava como vigia noturno e vendedor de bijuterias] e a época em que escreveu a nota preliminar [1999, logo depois de publicar Os detetives selvagens e receber o Rómulo Gallegos]. Mas o Tempo também mostra seu senso de humor na própria composição da novela, uma das melhores de Bolaño - e talvez a que tenha lhe dado mais trabalho, por fugir de certa "área de conforto" que ele mesmo construiu para si, ou seja, aquela área que abrange a América Latina na década de 1970 e os escritores esfomeados e ambiciosos que por ela circulavam.
2) A composição da novela mostra o senso de humor do Tempo por uma série de razões: 1) Bolaño desloca a ação para a Paris de fins da década de 1930 [esse é também o primeiro gesto de saída da área de conforto], focando as manifestações tardias de uma prática terapêutica conhecida como o "mesmerismo"; 2) A epígrafe do livro vem de um conto de Poe chamado "Revelação mesmérica", escrito quase 100 anos antes da época em que se passa Monsieur Pain; 3) Paris, em 1938, acumulava uma série de fluxos vanguardistas: os mesmeristas tardios estavam em contato com surrealistas tardios e dadaístas tardios, e todos esses também em contato com discípulos de Marie Bonaparte [a psicanalista formada e analisada por Freud, uma das difusoras da psicanálise na França], discípulos de Pétain, discípulos de Marcel Mauss [discípulo e sobrinho de Durkheim], discípulos de Marx, discípulos de Napoleão, entre outros; 4) Todas essas confluências se complicam quando Bolaño coloca o poeta peruano César Vallejo na história, que efetivamente morou em Paris, adoeceu, consultou mesmeristas e lá também morreu.
3) Monsieur Pain, dessa forma, aglomera uma porção de tempos: revisita a vida complicada de Vallejo no exílio e, de forma oblíqua, a própria poética vanguardista latino-americana da época [Vallejo, em Monsieur Pain, é também uma espécie de Lautréamont tardio, uma espécie de duplo daquele Lautréamont que Cortázar transformou em personagem no primoroso conto "O outro céu"], especialmente sua tensa e fecunda relação com a Europa. Outra sobreposição interessante: Bolaño arma sua história a partir de duas facetas de Poe, que em Monsieur Pain estão unidas: a preocupação com os estados "subterrâneos" da mente e suas histórias policiais [porque MP também é um romance noir]. Assunto para uma próxima vez: pensar Monsieur Pain como uma reescrita latino-americana de Monsieur Teste, de Paul Valéry [com todos os agravantes que a aproximação de Teste e Pierre Menard pode trazer (e Valéry traz também a aproximação entre Baudelaire e Poe)].

quarta-feira, 27 de julho de 2011

Deus e o Tempo

1) O que é "Deus"?
Ao ler Shahrastani, um comentador da tradição escatológica islâmica, Giorgio Agamben especula que Deus é o lugar no qual os homens pensam seus problemas decisivos. Logo, pensar Deus é pensar o terreno criado pelos homens para receber suas maiores inquietações. Isso poderia significar também que o pensamento sobre o Antigo, o Insondável e suas infindáveis manifestações é também um pensamento sobre o presente, sobre a forma com que utilizamos e processamos as imagens e metáforas do presente.
2) Deus é um lugar para pensar problemas decisivos: Agamben e Shahrastani não dão qualquer nome [ao menos não diretamente] a esses problemas, mas, quando o primeiro afirma, ainda no raciocínio da tradição escatológica islâmica, que toda criação deve levar em conta sua salvação [e, consequentemente, sua destruição], está levantando o problema do Tempo. E mais: o problema da instabilidade do Tempo, o problema da incongruência do Tempo. Il compito della salvezza precede quello della creazione, quasi che la sola legittimazione per fare e produrre fosse la capacità di redimere ciò che si è fatto e prodotto, escreve Agamben. Ou seja, o projeto da salvação está antes da criação - a destruição virtual, portanto, ou ainda, a ficção da destruição projetada, é o principal ingrediente da criação que sequer começou. Todos os tempos estão sobrepostos e acessíveis.
3) Esse é o tema de Borges: certamente o Tempo, mas também a Divindade [em seus distintos avatares] como plataforma privilegiada de especulação. Vai desde "Nova refutação do tempo" até as conferências de "Borges, oral" [especialmente aquela sobre a imortalidade], passando pelo livro sobre a Eternidade. Em 1951, um Borges conceitual inventou uma máquina de ler na qual partes heterogêneas da literatura universal funcionavam como profecias da obra de Kafka. A obra de Kafka, além do mais, desviaria nossa leitura desses textos até transformá-los em estranhas peças kafkianas. O mecanismo está regido por uma ideia que desdenha a identidade ou a pluralidade dos homens: cada escritor cria seus percursores e seu trabalho modifica nossa concepção do passado e do futuro. Todos os tempos estão sobrepostos e acessíveis.
4) Não é gratuito, portanto, que a argumentação de Agamben [o texto em questão é "Creazione e salvezza", que está em Nudità (2009)] comece justamente com as condições de emergência da palavra profética e as possibilidades de surgimento da figura do Profeta. O presente parece pouco propício para a emergência tanto da palavra quanto de seu portador, talvez por conta de um arraigado sentimento de exaustão, que percorre todas as esferas da experiência contemporânea [como um pornógrafo idoso que já não encontra serventia para seu desejo]. A chave está na destruição: pensar o gesto do movimento seguinte como se ele já estivesse [e está] fadado ao fracasso, ao insucesso [como fez, por exemplo, Duchamp, ao longo de toda sua vida].

sábado, 23 de julho de 2011

Fatos inquietantes

Wilcock começou a juntar material para seu livro Fatti inquietanti durante a década de 1950. Foi a época que marcou sua saída definitiva de Buenos Aires. Abandonou a Argentina e foi para a Itália, entre muitos outros motivos, porque não simpatizava com o peronismo [especialmente com sua política de recepção de assassinos nazistas depois da II Guerra]. É possível dizer que essa movimentação de nazistas para a Argentina ofereceu a Wilcock algumas boas ideias para sua Sinagoga dos iconoclastas - e, a partir disso, chegamos facilmente à Literatura nazi en América, de Bolaño. De qualquer forma, Fatti inquietanti apareceu bem antes: a primeira edição é de 1960. Barthes ainda passaria por toda uma década estruturalista, toda feita de esquemas e rigidez, antes de conceber a possibilidade de uma literatura pós-autoral, comprometida com um esforço de apagamento [ou de confusão deliberada] das fronteiras entre fonte e citação, transparência e opacidade, arquivo e discurso. Wilcock já manipulava o procedimento em 1958, 1959. Fatti inquietanti é a compilação de uma série de fragmentos esparsos de notícias absurdas veiculadas na imprensa italiana da época. Entre eles, o relato de uma máquina da IBM que contou todas as palavras do Ulisses, separando-as pelo critério da repetição [uma piada que alguns teimosos continuam levando a sério], ou selos eletrônicos dos Correios da Inglaterra, ou ainda pesquisas sobre a relação entre a construção de labirintos e a movimentação do sol. Wilcock recorta alguns momentos de uma massa imensa de informações corriqueiras e realiza uma montagem dinâmica, na qual cada parte dura o tempo necessário para motivar inúmeras perguntas e nenhuma resposta. Não se sabe qual a razão, a função ou a utilidade dessa junção disparatada de dados. Só sabemos que está ali, como um remendo que insiste em descolar; como uma promessa que nunca é cumprida.

quarta-feira, 20 de julho de 2011

Wilcock e a dispersão

Um dos elementos que garantem a estranheza (logo, a qualidade) das histórias de Juan Rodolfo Wilcock [1919-1978] é justamente a dispersão. Wilcock começou a escrever poesia em espanhol e, a partir da década de 1950, com sua mudança para a Itália, começou a escrever prosa em italiano. Como tradutor, sempre viveu espalhado entre línguas: traduzia do alemão, francês e inglês, transformando-as tanto para o italiano quando para o espanhol. Cursou Engenharia, trabalhou com ferrovias e estava sempre perversamente interessado nas últimas modas científicas. Suas ficções estão cheias de máquinas mirabolantes executando ações banais, estéreis, estúpidas. Frequentemente há um copista, um bibliotecário ou um arquivista. O interesse filológico de Wilcock atravessa continuamente o caminho de seu interesse técnico-científico, o que resulta em um hibridismo estilístico extremamente irônico. A junção de uma intrincada explicação do funcionamento de uma máquina com a isenta descrição do imbecil que a comanda (inventa ou manipula) gera um fortíssimo efeito estético, que Wilcock manejava como ninguém. Seria preciso inventar uma máquina para contar quantos leitores Wilcock ainda tem espalhados pelo mundo.

sábado, 16 de julho de 2011

Elogio da dispersão

Cioran desprezava os especialistas. Para ele, somente os obcecados eram suficientemente "limitados" para oferecerem um "verdadeiro eu"; um assunto, uma carreira ou um interesse imediatamente identificáveis. Em seu breve texto sobre Roger Caillois (Exercícios de admiração), Cioran faz questão de frisar a importância de um pensamento que tenda mais para o fragmento do que para o sistema - e na obra de Caillois ele percebe um crescente "horror às construções compactas", que soterram o risco do pensamento sob a placidez do conhecimento positivo. Em Caillois, escreve Cioran, a singularidade emerge através da variedade de temas (poesia, jogo, dança, psicanálise, mito), pois cada elemento da montagem leva consigo o desejo que o configurou.

domingo, 3 de julho de 2011

A morte de Akáki

De que morreu Akáki Akákievitch?
Gógol escreve que "num abrir e fechar de olhos apanhou uma angina e chegou em casa aos trancos e barrancos" - será que foi o frio? Akáki está exposto, seu capote foi roubado. Ele acaba de sair da sala do "figurão", um estúpido funcionário público do alto escalão que se recusa a ajudar Akáki no caso do roubo do capote. As palavras do figurão são tão duras que Akáki quase desmaia - "Que força tem às vezes uma reprimenda devidamente passada!", escreve Gógol, logo depois da angina. Já de cama, Akáki ouve "as palavras fatais" do médico à senhoria [uma palavra feita especialmente para as histórias russas], recomendando a compra imediata de um caixão.
De que mais pode morrer um personagem da estatura de Akáki, se não de palavras? Feito da mais forte linguagem, ele só pode perecer assim, através dela.