sexta-feira, 28 de maio de 2021

Mobilização, desarmamento


"A verdade da investigação não é a investigação da verdade. Não queremos investigar o mundo como é, mas inventá-lo como não é. O termo 'inventar' não deve ser entendido em sentido tecnológico; não significa juntar positivo com positivo, som com som, peça com peça como se invenção fosse uma fabricação entre outras. Inventar significa antes: estar presente na quebra da casca positiva do existente; participar da introdução do real no jogo das contas de vidro, experimentar como o ainda-não emana do desde-sempre, como o inaudito se desprende do sempre ouvido para surgir como se fosse da primeira vez.

(...)

Enquanto a investigação positivista, extremamente ignorante e bisbilhoteira, se baseia na hipótese de que o mundo não está suficientemente conhecido, a consciência-composição sabe que o mundo não está suficientemente desconhecido. Apresenta-se aos nossos olhos e ouvidos demasiadamente revelado e, na verdade, não se trata de decifrar enigmas, mas de protegê-los de seus decifradores"


Peter Sloterdijk, Mobilização copernicana e desarmamento ptolomaico, trad. Heidrun Krieger Olinto, Tempo Brasileiro, 1992, p. 108-109

quarta-feira, 26 de maio de 2021

Temperamentos


1) Em seu livro Temperamentos filosóficos (identificado como um "breviário" no subtítulo da edição portuguesa, embora a palavra não conste do original), Sloterdijk faz uso da forma breve para apreender um conjunto de vidas - o que permite a inclusão de seu projeto naquela linha associativa que abarca Vidas dos artistas de Vasari, Vidas imaginárias, de Marcel Schwob, História universal da infâmia, de Borges, a Sinagoga dos iconoclastas, de Wilcock, a Literatura nazi na América, de Bolaño, as Vidas minúsculas, de Pierre Michon, e assim por diante. A atenção à forma como veículo específico do pensamento não é estranha a Sloterdijk: ao falar de Hegel, nesse livro sobre os "temperamentos", ele escreve que sua figura de pensamento preferida é a conclusão (que corresponde a um ritmo e a um encadeamento de ideias, assim como a forma breve da "vida"). 

2) O que busca Sloterdijk é estabelecer uma sorte de modulação instável entre sujeito e época, entre o posicionamento específico de um pensamento individual no fluxo do tempo e a inscrição generalizada desse mesmo tempo/época na capacidade de escrita do sujeito. Se algo funciona de fio condutor para os comentários de Sloterdijk sobre figuras tão diversas, é a tentativa de descrever criticamente o modo como os sujeitos estão e não estão em sintonia com suas épocas (o modo como Wittgenstein, por exemplo, solicita o recurso à figura medieval do eremita, ao mesmo tempo em que recusa a forma textual completa em prol do aforismo; ou como Schelling surpreende seus contemporâneos em ao menos dois momentos: na juventude, com seu brilho inesperado; na maturidade, com seu estilo tardio que leva ao incompleto e ao melancólico).

3) As posições ocupadas pelos filósofos comentados por Sloterdijk nunca se resolvem em um puro pertencimento ao passado ou um puro envio em direção ao futuro (quando a obra será finalmente compreendida em todas suas possibilidades). O renascimento de Pascal, por exemplo, é exaltado como uma decorrência da educação a partir das afinidades eletivas com Goethe e Nietzsche; Schopenhauer, por sua vez, será sempre necessário para aqueles que decidirem abordar a "renúncia" ("a palavra mais difícil do mundo" para os modernos); Leibniz, por fim, pode ser uma das principais fontes de inspiração para gerações futuras que busquem "regenerar" um princípio do "otimismo" ou, pelo menos, do "não-pessimismo". 

terça-feira, 25 de maio de 2021

O ambiente hostil


1) Sloterdijk (ainda em Luftbeben: An den Quellen des Terrors, de 2002) comenta a passagem de paradigma que a guerra instaurou no século XX: o ambiente externo (a natureza, o ar, a atmosfera) já não é mais garantia de respiro e tranquilidade (como foi para Nietzsche, Heidegger ou Robert Walser, por exemplo), pelo contrário - com o envenenamento generalizado propiciado pelas tecnologias de guerra "profanadas" para uso civil, o ambiente é sempre hostil e o indivíduo se vê envolvido em um permanente esforço para construir ambiente artificiais que possam proteger, temporariamente, do ambiente externo.

2) Sob essas condições, o sistema imunológico se torna um assunto para debate: quando tudo pode ser "latentemente" contaminado e envenenado, escreve Sloterdijk, quando tudo é potencialmente enganoso e suspeito, nem a totalidade nem a possibilidade de "ser um Todo" podem ser inferidas das circunstâncias externas. A integridade não pode mais ser pensada como algo obtido por meio da devoção ao ambiente benevolente, mas apenas como o esforço individual de um organismo em se demarcar de seu ambiente. Isso abre caminho para um novo campo de pensamento, típico da contemporaneidade: a ideia segundo a qual a vida insiste menos em seu "ser-aí" por sua participação no todo e sim por sua estabilização via "autofechamento" e recusa seletiva de participação. 

3) Pouco antes dessas conclusões finais, Sloterdijk resgata um ensaio de 1936 de Elias Canetti, originalmente uma palestra em homenagem aos 50 anos de Hermann Broch. Entre as duas guerras, Broch desponta como o poeta de nossos tempos, escreve Canetti, o poeta atento à atmosfera, atento a essa mudança de paradigma de que fala Sloterdijk (que enfatiza, não só pelo conteúdo de sua exposição, mas também pela escolha formal no posicionamento de Canetti/Broch em seu próprio ensaio, como Canetti lê em Broch uma sensibilidade profética, uma atenção à hostilidade do ambiente que só seria deflagrada anos depois). Broch desnaturaliza a imediaticidade do ambiente, seu caráter ainda não-pensado, falando do "sonambulismo" que marca aqueles que ainda não reconhecem a hostilidade do meio. 

sexta-feira, 21 de maio de 2021

Ciclo fóbico


1) Peter Sloterdijk, em seu livro sobre a história do terrorismo como história do século XX (Luftbeben: An den Quellen des Terrors, de 2002), fala do "ciclo fóbico" instaurado pela tecnologia: os dispositivos são empregados visando a resolução da ansiedade, mas é precisamente a lógica de inovação permanente embutida nos dispositivos que intensifica a ansiedade. De certa forma, Sloterdijk faz a ligação entre a novidade da guerra química dos gases durante a I Guerra Mundial e a atmosfera de conectividade difusa da nossa contemporaneidade: o ponto de ligação é a passagem de um paradigma do corpo-a-corpo (a baioneta como último vestígio desse paradigma) para um do corpo-e-todo (a nuvem, o mercado, a web, a globalização). 

2) Por isso a centralidade da técnica psicanalítica, escreve Sloterdijk, não só para o encadeamento que leva de Freud a Lacan e de Lacan a Zizek, por exemplo, mas especialmente na perspectiva da psicanálise como estratégia para ler signos e manipular cenas de origem (Sloterdijk ainda enfatiza a ironia daquele que valoriza a psicanálise ao mesmo tempo em que a recusa como terapia pessoal - o que é exatamente o caso de Derrida em O cartão-postal, que comenta o rumor infundado - espalhado por Serge Dubrovsky - de que ele estaria em análise). O discurso da psicanálise faz parte de um conjunto de dispositivos que asseguram a permanente circulação da ideologia da inovação, ou seja, da recusa de qualquer posição fixa (adaptando a profética frase de Karl Kraus, é o dispositivo que oferece a cura para uma doença que ele próprio cria).

3) Sloterdijk resgata ainda o projeto das Passagens de Benjamin como um precursor dessa reflexão sobre o ambiente e passagem do corpo-a-corpo para o corpo-e-todo: as passagens parisienses, para Benjamin, formam uma articulação complexa entre tempo e espaço (o primeiro é suspenso e homogeneizado; o segundo é aplainado em uma horizontalidade vidrada, transparente). A construção do espaço novo na cidade envolve uma carga decisiva de "vício", escreve Benjamin, comenta Sloterdijk, uma pulsão irresistível de formar "casulos", "envoltórios" (a forma material das passagens é, também, o espelhamento físico de um conjunto de formas simbólicas que povoam a vida imaginativa do século XIX).

terça-feira, 18 de maio de 2021

Echenoz


1) Para escrever 14, seu romance de 2012, Jean Echenoz se baseou nos diários de um soldado, tio-avô de sua esposa, material que transcreveu e explorou em paralelo a obras de historiografia, filmes e fotografias do período (arquivo, documento, ficção). Em entrevista dada em 2012 para a revista Lire, Echenoz diz que o que lhe chamou a atenção no relato do soldado foi a atenção aos fatos cotidianos: o vento, a chuva, a neve, o calor e o tédio. 

2) Echenoz também traça um paralelo entre 14 e um filme de Stanley Kubrick de 1957, Glória feita de sangue, ressaltando como ambos, romance e filme, retratam a destruição promovida pela guerra do livre-arbítrio dos sujeitos. É por isso que 14 não se alinha a romances de guerra tradicionais – como Tempestades de aço, de Ernst Jünger, ou O fogo, de Henri Barbusse –, e sim a romances detalhistas e sensíveis que rastreiam a vida de personagens às vezes banais, às vezes excêntricos – como é o caso de alguns dos livros já publicados por Echenoz, como Ravel (sobre o compositor Maurice Ravel), Des éclairs (sobre o cientista Nikola Tesla) e Correr (sobre o atleta Emil Zátopek, publicado pela Alfaguara). 

3) Como outros bons ficcionistas franceses em atividade – Patrick Modiano, Pierre Michon, Patrick Deville –, Echenoz se mostra interessado não tanto em considerações amplas sobre a condição humana, e sim nos processos de transformação das subjetividades, no drama do contato frequentemente desconfortável entre o indivíduo e a passagem do tempo (algo que se cristaliza de forma indireta nas velhas fotografias e nos objetos que passam de geração em geração, como vemos em Sebald e também em outro francês, Marcel Cohen, especialmente com A cena interior).

segunda-feira, 17 de maio de 2021

O precursor velado


1) Como se forma a singularidade do artista no campo literário? Como se define a dinâmica entre continuidade e ruptura no que diz respeito à conduta diante das regras que definem o campo? Borges, por exemplo, funda um espaço para sua literatura a partir de um confronto tenso entre o gauchesco e o europeu, manipulando signos de esferas conflitantes (em seu livro sobre Borges, Alan Pauls fala do "parasitismo" denunciado pelo crítico Ramón Doll na década de 30: a questão ultrapassa a crítica pontual de Discusión no momento em que Borges utiliza um juízo negativo, o de que não passava de um plagiador, e o transforma em centro de sua poética, de seu fazer literário).

2) Bernardo Carvalho, por sua vez, articula o autobiográfico, o etnográfico e o recurso ao "exotismo" nacional, ao mesmo tempo em que leva a experiência de "ser brasileiro" em direção a outras latitudes, outras perspectivas de mundo (para ele, Bruce Chatwin é a figura-chave - basta pensar em sua tradução de O rastro dos cantos, que sai em 1996 -, a referência que permite a dissolução do exotismo no contraste com um estilo documental na exploração de uma ficção ensaística, referenciada e, ao mesmo tempo, plenamente consciente da necessidade de ancorar toda essa experimentação em um narrador-sujeito que duvida de si, de sua formação, de seu desejo de "fazer obra"). 

3) César Aira, por sua vez, em 1981, em um artigo para a revista Vigencia intitulado “Novela argentina: nada más que una idea”, traça um panorama daquilo que via como o arranjo contingente da literatura argentina contemporânea, comentando obras como Como en la guerra, de Luisa Valenzuela, Nadie nada nunca, de Saer, e Respiración artificial, de Piglia, que definiu como “um dos piores romances de sua geração”. O romance argentino é "raquítico", escreve Aira, empobrecido pelo "uso oportunista" do "material mítico-social disponível", ou seja, "os sentidos sobre os quais vive uma sociedade em um momento histórico dado". Falta invenção, e Aira se posiciona no campo como alguém comprometido precisamente com a invenção, a partir de uma posição "lúdica e antirrealista" (como escreve Sandra Contreras).  

terça-feira, 11 de maio de 2021

Um belo tema!


1) Em uma das conversas que André Gide coloca em Os moedeiros falsos (conversas entre artistas e escritores, especialmente aquele que escreverá o próprio romance que estamos lendo), alguém se pergunta: "Muitas vezes me perguntei por que prodígio a pintura estava tão adiantada e como acontecia que a literatura se tivesse deixado distanciar assim?". O tipo de confronto recorrente no campo artístico, no qual diferentes linguagens são tensionadas a partir de uma comparação impossível e, por isso mesmo, irresistível (é possível pensar na permanente relação de César Aira com as artes visuais - sempre folheando números antigos da revista Artforum e assim por diante).

2) "Em que descrédito, hoje, cai aquilo que se tinha costume de considerar, em pintura, 'o motivo'! Um belo tema! Isso provoca o riso. Os pintores não ousam nem mesmo arriscar um retrato, a não ser com a condição de eludir qualquer semelhança", diz ainda o personagem de Gide, reforçando que "em dois anos" serão "considerados antipoéticos todo sentido, toda significação" (p. 354-355). De forma enviesada, Gide apresenta um elogio do romance modernista/vanguardista, aquele que está sendo cultivado contemporaneamente por Joyce, Faulkner, Virginia Woolf (Ulisses, 1922; Moedeiros, 1925; To the Lighthouse, 1927; The Sound and the Fury, 1929). 

3) É interessante notar como André Gide surge no ensaio de Hayden White sobre o "fardo da História" justamente como um exemplo literário da "degenerescência" do pensamento antiquário (na linha do Nietzsche das considerações intempestivas). Se Gide em 1925 olha a literatura e se assombra com seu atraso diante da pintura, White olha a narrativa histórica em 1966 e se assombra com seu atraso diante da prosa literária e da ficção (os modelos ainda são os romances realistas do século XIX, escreve White, e não a literatura modernista/vanguardista de Joyce, Faulkner, Woolf e Gide): a geração seguinte absorveu de Nietzsche "a sua hostilidade à história na maneira como foi violentamente posta em prática pelos historiadores acadêmicos no final do século XIX. Mas Nietzsche não foi o único responsável pelo declínio da autoridade da história entre os artistas fin de siècle. Acusações semelhantes, mais ou menos explícitas, podem ser encontradas em escritores tão diferentes em temperamento e propósito quanto George Eliot, Ibsen e Gide" (p. 44).

terça-feira, 4 de maio de 2021

Prosa de poeta


1) Em 1983, como introdução ao volume Captive spirit: selected prose, de Marina Tsvetáieva, Susan Sontag publica o ensaio "Uma prosa de poeta", hoje disponível em seu livro Questão de ênfase. Tudo começa com uma marcação clara e sumária de território: o século XIX está para o romance e para a prosa assim como o século XX está para a poesia (especialmente no contexto russo, referência principal de Sontag nesse texto - a passagem de Dostoiévski e Tolstói para Brodsky e Mandelstam, de certa forma), embora o objetivo final de Sontag seja delinear certas zonas de sombra possíveis, momentos em que prosa e poesia se combinam em obras singulares (como na ensaística de Brodsky e Blok).

2) Um primeiro curto-circuito, sugere Sontag, acontece na obra de Flaubert: sua prosa aspira à intensidade da poesia, sua "inevitabilidade léxica" e sua velocidade (o que gera uma reação, um desejo por parte da poesia de transfigurar seus processos, sua singularidade - o que remeteria à obra de Mallarmé, por exemplo). Mais do que uma situação cristalizada, Sontag está tentando captar um movimento, um processo - momentos em que prosa e poesia entrar em contraste, tendo como resultado a emergência de uma obra singular (como os "ensaios" de Tsvetáieva, escritos em "prosa de poeta", mesclando o registro do "eu" com o registro da elaboração crítica, da contextualização histórica e de uma espécie de fenomenologia da recepção estética).

3) Para Sontag, a prosa de poeta envolve uma performance contínua do "eu", uma preocupação permanente com as marcas deixadas no "eu" artístico pela convivência com o mundo externo (Sontag cita os diários de Baudelaire como exemplo - repletos de fórmulas de incentivo para o "eu" do poeta, estabelecimento de regras de conduta diante da língua e da sociedade, estratégias maníacas de manutenção de seu "ideal"). Tal performance, contudo, está em tensão com a visada retrospectiva da prosa de poeta: a tradição é lida a partir dos elementos que o "eu" busca salientar em seu próprio trabalho, os precursores são escolhidos e valorizados a partir das lições ainda ativas sobre o presente (o modo muito peculiar como Borges lê e valoriza Marcel Schwob, por exemplo).