"No mais das vezes, Léon Marcia permanece silencioso e imóvel, mergulhado nas lembranças: uma delas, que emerge do mais profundo de sua prodigiosa memória, há vários dias o obceca: uma conferência que, pouco antes de morrer, Jean Richepin viera fazer no sanatório; o tema era a Legenda de Napoleão. Richepin contou que, quando era pequeno, costumava-se abrir uma vez por ano o túmulo de Napoleão, diante do qual desfilavam os inválidos para ver a face do imperador embalsamado, espetáculo mais propício ao terror que à admiração, pois o rosto estava inchado e verde; daí talvez a razão de a abertura do túmulo haver sido suprimida logo após. Mas Richepin teve a oportunidade excepcional de vê-lo, empoleirado no braço do tio-avô que servira na África e para quem o comandante dos Inválidos mandara abrir especialmente o túmulo" (Georges Perec, A vida: modo de usar, trad. Ivo Barroso, Cia das Letras, 1991, p. 188-189).
"Tome agora o tempo e o espaço. Suponhamos que uma criança lhe diga: 'Eu quero ser Napoleão na Batalha de Wagram', o senhor lhe diz: 'É impossível, ele está morto'. 'Que diferença isto faz?', insiste ela. Então o senhor diz: 'Ora, você sabe, isso foi há muito tempo. O corpo de Napoleão se decompôs. Você não poderá encontrá-lo'. Se a criança é esperta, dirá: 'Suponha que reunamos de novo todos os átomos de seu corpo e seu sistema mental; então poderíamos ver Napoleão em Wagram? Por que não?'. 'Sim, isso é possível de modo empírico'. A criança diz a seguir: 'Quero ver Wagram no passado: poderíamos em princípio fazê-lo reviver? Através de uma nova invenção associar de novo os átomos e moléculas dispersos?'. O senhor fala então: 'Você não pode viajar no passado'. 'Por que não?', pergunta ela. Um positivista diria que 'viajar' é uma péssima metáfora. Tudo o que entendemos por tempo é 'antes', 'depois', 'ao mesmo tempo'. Uma entidade tal que o 'tempo' no qual você poderia viajar não existe. O senhor utiliza incorretamente a linguagem. A criança pergunta agora: 'Se é um problema de linguagem, por que não mudá-la? Então eu poderia ver Napoleão em Wagram?'" (Isaiah Berlin: com toda liberdade - entrevistas com R. Jahanbegloo, trad. Fany Kon, Perspectiva, 1996, p. 171-172)
"O
mito napoleônico tem realmente dado origem às mais espantosas
histórias, sempre reputadas como baseadas em fatos irrefutáveis.
Kafka, por exemplo, conta que a 11 de novembro de 1911 assistiu a uma
conferência sobre o tema 'La légende de Napoléon', no Rudolphinum,
em que um tal Richepin, cinquentão encorpado de bela figura, cabelo
ondulado largo no estilo Daudet, bem colado à cabeça, dissera,
entre outras coisas, que antigamente costumavam abrir o túmulo de
Napoleão uma vez por ano para que os Invalides pudessem desfilar
contemplando o imperador embalsamado. Mas depois o rosto foi ficando
esverdeado e manchado e interromperam o costume da abertura anual do
túmulo. Segundo Kafka, o próprio Richepin vira o imperador morto,
quando criança, no colo de seu tio-avô que fora militar na África
e para o qual o comandante mandara abrir propositadamente o túmulo.
A entrada do diário de Kafka prossegue dizendo que, a concluir a
conférence, o orador jurou que mesmo dali a mil anos cada partícula
de pó do seu cadáver, se tivesse consciência, estaria pronta a
responder à chamada de Napoleão" (W.
G. Sebald, "Pequena excursão a Ajácio", Campo santo,
trad. Telma Costa, Lisboa: Quetzal, 2014, p. 12).