terça-feira, 30 de dezembro de 2014

As invasões bárbaras (3)

Oraibi, Arizona
1) Em As raízes clássicas da historiografia moderna, Arnaldo Momigliano fala de Hecateu de Mileto (500 a.C.). A história mais conhecida sobre ele é registrada por Heródoto: ele se vangloriava diante dos sacerdotes de um templo egípcio que ele podia contar dezesseis ancestrais e o décimo sexto era um deus. A resposta dos sacerdotes egípcios foi a de introduzir Hecateu às imagens de 345 gerações de seus predecessores - sacerdote após sacerdote sem qualquer traço de deus ou de herói no começo da lista. 
2) Diante desse choque de perspectiva, Hecateu escreve: "as histórias dos gregos são muitas e são ridículas e, no entanto, é isto o que dizem". Momigliano comenta: "a importância real de Hecateu não reside nas interpretações individuais que ele propunha, mas na descoberta de que uma crítica sistemática da tradição histórica é tanto possível quanto desejável, e que uma comparação entre diferentes tradições nacionais ajuda-nos a estabelecer a verdade".
3) A "crítica sistemática da tradição" se liga à mobilidade (ao exílio, à deriva, à deambulação) para gerar perspectiva e insight: Hecateu no salão das imagens dos sacerdotes egípcios é como Warburg diante do ritual da serpente dos índios do Novo México - e sua elaboração posterior passa por uma referência grega: ele busca unir "Atenas" e "Oraibi". E não continuam ridículas as histórias que se baseiam em uma única perspectiva, que se pretende universal? São tantos que ensaiam uma glosa e uma desconstrução desse ridículo histórico, como Edward Said (Cultura e imperialismo), Serge Gruzinski (O pensamento mestiço) ou Todorov (A conquista da América).  
4) "A situação em que Hecateu vivia", continua Momigliano, "levou-o paradoxalmente a tornar-se o líder da rebelião jônica contra os persas: mas ele nunca deixou de ser um philo-barbaros". E mais: "Heráclito não gostava dele talvez pela mesma razão que Hegel não gostava de B. G. Niebuhr. O pensador conservador tem pouca simpatia pelo investigador empírico que tem uma visão um pouco mais liberal. Hecateu, por sua erudição, tornou absurda a reivindicação dos aristocratas gregos, como Heráclito, de serem de descendência divina. A admiração de Hecateu pelos bárbaros tinha tonalidades políticas, da mesma forma como havia tonalidades políticas na admiração de Niebuhr pelos camponeses romanos".

quarta-feira, 24 de dezembro de 2014

As invasões bárbaras (2)

1) As ligações possíveis entre messianismo e deambulação, entre exílio/movimentação/percurso e transformação político-religiosa. A teoria da deriva de Guy Debord, por exemplo: o ato de andar tomado como a primeira fase em direção à consolidação científica da psicogeografia, funcionando também como exercício participativo, ativa mobilização contra a apatia da sociedade do espetáculo.
2) Para Cristo, toda transformação envolvia uma deriva, e ele também enfrentava - segundo sua perspectiva - um cenário de apatia. A comprovação de sua presença messiânica se dá a partir da atualização de uma deriva, de um percurso - chegar à cidade através de um portão determinado, de uma forma determinada; a constante palavra de ordem de abandonar a vida e segui-lo, ou seja, colocar-se em movimento. Cristo atualiza as derivas do passado: o percurso impossível através do Mar Vermelho; a destruição das muralhas de Jericó.
3) A destruição das muralhas acontece depois de sete dias de circumambulação - sete sacerdotes, sete voltas, sete trombetas, e o grito de guerra final em uníssono (Josué, 6; 1-5). A imagem mítica de um ato revolucionário, a destruição de um regime a partir do desenvolvimento ritualístico de um percurso, de uma deriva - percurso que é completado pela voz, pela vocalização, pelo canto e pela dança, ou seja, pela ocupação imaterial (e simbólica) do espaço.
4) Bruce Chatwin revisita esse substrato arcaico em O rastro dos cantos - a ocupação imaterial dos aborígenes como estratégia de resistência à colonização. Em Godot, Beckett encena a apatia e a irresolução justamente a partir da exaustão da deriva - o percurso é circular, viciado. Em Correr, Jean Echenoz usa o aspecto tragicômico da deriva de um único homem - Emil Zatopek - para ressaltar a apatia de todo um regime totalitário.
5) "Na manhã do dia 15 de julho de 1927", escreve Elias Canetti, "aconteceu algo que exerceu a mais profunda influência tanto na minha vida posterior como na composição de Auto-de-fé". Canetti viu a multidão em deriva, o incêndio do Palácio de Justiça de Viena e a morte de noventa pessoas na repressão policial. "Já se passaram 46 anos, e ainda trago em mim a excitação daquele dia. Foi a coisa mais próxima de uma revolução que já vivenciei de corpo presente" ("O primeiro livro", A consciência das palavras, trad. Márcio Suzuki, Cia. das Letras, 1990, p. 241-242).  

terça-feira, 23 de dezembro de 2014

As invasões bárbaras (1)

1) Um primeiro ano, um primeiro evento: 1492, a expulsão dos judeus da Espanha - eles se espalham pela Europa e levam junto um sistema de leitura e interpretação, a Cabala (foi por conta dessa expulsão que a família de Elias Canetti foi parar na Bulgária, por exemplo). 
2) Por que a insistência de Walter Benjamin na junção conflituosa entre revolução materialista e messianismo? Talvez um exemplo histórico da possibilidade de tal junção esteja dado na repercussão dessa expulsão de 1492.
3) Foi Aby Warburg quem primeiro solicitou Lutero não apenas como uma figura-chave na história da religião, mas também figura-chave na história da arte e da arte política. Warburg percebe que em Lutero a potência da revolução está diretamente ligada a uma potência da leitura e da interpretação.
4) Frances Yates (The Occult Philosophy in the Elizabethan Age, 1979) segue a pista e amplia o foco: ela cita diretamente a expulsão de 1492, argumentando que ao longo de toda a Europa passa a operar uma mescla muito particular entre cabalistas e neoplatônicos (Pico della Mirandola, Marsilio Ficino), o que redunda no desenvolvimento de uma Cabala cristã - um sistema híbrido de leitura e interpretação que alimentará a Reforma.
5) Yates mostra que se trata de pelo menos dois grandes campos de investigação sobrepostos: em primeiro lugar, a expulsão de 1492 e a dinâmica de proliferação da Cabala como consequência (adaptações linguísticas e conceituais no tempo e no espaço); em segundo lugar, a distribuição desses indivíduos expulsos ao longo da Europa, acionando a questão Norte x Sul, central em toda a produção de Warburg (Dürer x Da Vinci; traço x cor; etc).

quarta-feira, 17 de dezembro de 2014

As invasões bárbaras

Ingrid Bergman em Anastasia, 1956
1) Variações possíveis sobre o tema das invasões bárbaras: a horda de revolucionários invade o Palácio de Inverno em São Petersburgo em 1917; a transformação política e social na Rússia leva à fuga de milhares de indivíduos ligados ao regime anterior - a maioria deles em direção à Europa, como é o caso de Nabokov (da Rússia para Berlim, depois para Paris) e Chklóvski (Berlim, depois de volta a Moscou). 
2) Vida e obra de Joseph Roth estão marcadas por essa dinâmica das invasões e da errância: como soldado, a volta do front com o fim da guerra (A marcha de Radetzky, 1932, Fuga sem fim, 1927); como judeu, a história de expulsões e massacres (Judeus errantes, 1932, , 1930); como intelectual, jornalista, observador ou curioso - suas várias tentativas de dar conta do fenômeno social e político das revoluções e suas invasões: A rebelião, 1924, "o bacilo da revolução" e o agitador polonês Zwonimir em Hotel Savoy, 1924, conspiração e traição em Confissão de um assassino, 1936, o crescimento do fascismo na Berlim da década de 1920 em Direta e esquerda, 1929, o mesmo período na Rússia com as reportagens e artigos reunidos em Viagem à Rússia.     
3) No texto que abre essa coletânea, escrito em setembro de 1926 para o Frankfurter Zeitung, Roth escreve: "antes de alguém sequer pensar em visitar a Rússia atual, a velha Rússia há muito já veio ao nosso encontro". Funcionários, burocratas, nobres e tantos outros são agora taxistas, garçons e encanadores em Paris ou Berlim - cidades que se transformam em palcos permanentes, com múltiplas histórias sobrepostas e interligadas, de indivíduos expulsos que tomam uma máscara esperando a oportunidade de voltar.     
4) Espera, suspensão e esperança: pegue por exemplo o caso da Princesa Anastásia, interpretada por Ingrid Bergman no filme de 1956: a história começa em 1927, com os russos no exílio procurando a filha perdida do Czar. Bergman surge, esfomeada e maltrapilha, e pode ser essa Identidade Perdida que, se restaurada, pode, num passe de mágica, restaurar também todo esse êxodo forçado e as milhares de identidades suspensas.
5) De alguma forma tortuosa, essa mistura de messianismo e confusão de identidades me faz pensar em Fernando Pessoa - o sebastianista Pessoa, mas também o heteronímico Pessoa. Ou em Pirandello e suas peças sobre indivíduos que devem fingir aquilo que de fato são - penso em Enrico IV, escrita em 1921, representada em 1922. Ou em Tom Stoppard, que posiciona sua peça Travesties (de 1974) precisamente em 1917, em Zurique, fazendo James Joyce, Lenin e Tristan Tzara trocarem pastas (identidades, linguagens) por engano na Biblioteca Pública da cidade (Stoppard também joga com sua própria crise de identidade, já que boa parte de sua peça incorpora trechos de The Importance of Being Earnest, de Oscar Wilde).

domingo, 14 de dezembro de 2014

Carta e 1926

Carta de Rilke a Marina Tsvetáieva, 1926
1) Um ensaio de Susan Sontag absorve e condensa todos os elementos apresentados por Chklóvski em Zoo, ou cartas de não amor - mas ampliando-os em direção a outras cidades, outros escritores. "1926... Pasternak, Tsvetáieva, Rilke" é um ensaio de 2001, disponível na coletânea Ao mesmo tempo (tradução de Rubens Figueiredo, Cia. das Letras, 2008, p. 30-36), resenha de uma coletânea de cartas publicada em inglês.
2) No caso de Chklóvski, trata-se de um sujeito que ama sozinho. Por conta dessa não-reciprocidade, a amada veta o amor da correspondência, cartas não de amor. Chklóvski fala sozinho, apesar da presença virtual de Alya. No caso de Sontag, seu ensaio é sobre uma relação epistolar feita por três pessoas: Boris Pasternak (que mora em Moscou), Marina Tsvetáieva (que vive na penúria em Paris) e Rainer Maria Rilke (morrendo num sanatório na Suíça). Ela começa perguntando:
O que está acontecendo em 1926, quando os três poetas estão escrevendo uns para os outros?
E fala da estreia de Chostakóvitch, da morte de Gaudí, da morte de Rodolfo Valentino, da chegada de Walter Benjamin a Moscou, de um filme de Fritz Lang, de uma peça de Brecht, de um livro de Chklóvski (A terceira fábrica), de um livro de Hemingway (O sol também se levanta), entre outros. 
3) Essas cartas, escreve Sontag, "são duetos que tentam, e por fim não conseguem, ser trios". "Eles se exprimiam com veemência uns para os outros", fazendo "exigências impossíveis, gloriosas". A correspondência começa entre Rilke e Pasternak, tendo o pai de Pasternak como intermediário, que conhecia Rilke há anos. Pasternak sugere a Rilke escrever para Tsvetáieva - "última a entrar na arena", escreve Sontag, "Tsvetáieva rapidamente se torna a força deflagradora, tão potentes, tão escandalosas são a sua carência, a sua coragem, a sua nudez emocional. Pasternak, que não sabe mais o que pedir a Rilke, retira-se; Tsvetáieva pode pensar numa ligação erótica, avassaladora. Implorando que Rilke conceda um encontro, tudo o que consegue é afastá-lo. Rilke, por seu turno, fica em silêncio. O fluxo de retórica alcança o precipício do sublime e desaba na histeria, na angústia, no terror". Cartas não de amor

quarta-feira, 10 de dezembro de 2014

Carta e forma

Antes da Revolução, no auge do formalismo russo, Chklóvski dedicou tempo ao Tristram Shandy de Sterne, livro-paradigma de suas teorias - um livro que pensa a si próprio enquanto acontece na leitura e, nesse pensamento, revê e questiona os procedimentos que o tornam possível, indo e voltando no tempo e, principalmente, lembrando continuamente ao leitor sua natureza material, sua condição de artifício. 
*
Zoo, apesar de breve, segue esse modelo: frases curtas, cortadas; cartas que questionam o conteúdo de cartas anteriores; cartas que declaram a inexistência da destinatária/do destino/do tema ("Alya é somente a realização de uma metáfora", diz ele na Carta XXIX); relato do cotidiano que se interrompe para a enunciação de uma parábola arcaica...
Em uma lenda bogomilita, Deus quer pegar areia do fundo do mar.
Mas Deus não quer mergulhar. Manda o Diabo e lhe ordena: "Quando pegar a areia, diga: não sou eu quem pega, é Deus".
O Diabo mergulha e vai ao fundo. Pega a areia e diz: "Não é Deus quem pega, sou eu".
Um Diabo cheio de amor próprio.
A areia se dissolve. O Diabo retorna, lívido.
Deus o manda ao fundo novamente. 
O Diabo alcança o fundo com esforço, agarra a areia e diz: "Não é Deus quem pega, sou eu".
A areia se dissolve. O Diabo de novo retorna, sem fôlego. Deus o manda ao fundo pela terceira vez. Nas fábulas se faz tudo três vezes.
O Diabo entende que não há alternativa.
Ele não quer estragar a trama. Talvez tenha chorado, mas mergulhou. Nadou até o fundo e disse: "Não sou eu quem pega, é Deus". Pegou a areia e retornou. E Deus, com a areia que o Diabo, por ordem divina, pegou do fundo do mar, criou o Homem (Zoo o lettere non d'amore. tradução do russo ao italiano por Maria Zalambani. Sellerio editore, 2002, p. 75-76).
...cartas sobre cartas; cartas de amor que não podem falar de amor; em suma, permanente e anunciada atenção ao suporte, às condições históricas da enunciação e ao que é necessário fazer para que se faça sentido ("Você diz que sabe como é feito o Dom Quixote, mas não sabe escrever uma carta de amor", escreve Alya na Carta XXVIII). Está aí não apenas Sterne, mas também Macedonio Fernández, contemporâneo de Chklóvski - o romance eterno, não porque é interminável, inesgotável, total, mas porque recomeça incessantemente a partir dos elementos dados, recombinados e remontados.