quarta-feira, 17 de dezembro de 2014

As invasões bárbaras

Ingrid Bergman em Anastasia, 1956
1) Variações possíveis sobre o tema das invasões bárbaras: a horda de revolucionários invade o Palácio de Inverno em São Petersburgo em 1917; a transformação política e social na Rússia leva à fuga de milhares de indivíduos ligados ao regime anterior - a maioria deles em direção à Europa, como é o caso de Nabokov (da Rússia para Berlim, depois para Paris) e Chklóvski (Berlim, depois de volta a Moscou). 
2) Vida e obra de Joseph Roth estão marcadas por essa dinâmica das invasões e da errância: como soldado, a volta do front com o fim da guerra (A marcha de Radetzky, 1932, Fuga sem fim, 1927); como judeu, a história de expulsões e massacres (Judeus errantes, 1932, , 1930); como intelectual, jornalista, observador ou curioso - suas várias tentativas de dar conta do fenômeno social e político das revoluções e suas invasões: A rebelião, 1924, "o bacilo da revolução" e o agitador polonês Zwonimir em Hotel Savoy, 1924, conspiração e traição em Confissão de um assassino, 1936, o crescimento do fascismo na Berlim da década de 1920 em Direta e esquerda, 1929, o mesmo período na Rússia com as reportagens e artigos reunidos em Viagem à Rússia.     
3) No texto que abre essa coletânea, escrito em setembro de 1926 para o Frankfurter Zeitung, Roth escreve: "antes de alguém sequer pensar em visitar a Rússia atual, a velha Rússia há muito já veio ao nosso encontro". Funcionários, burocratas, nobres e tantos outros são agora taxistas, garçons e encanadores em Paris ou Berlim - cidades que se transformam em palcos permanentes, com múltiplas histórias sobrepostas e interligadas, de indivíduos expulsos que tomam uma máscara esperando a oportunidade de voltar.     
4) Espera, suspensão e esperança: pegue por exemplo o caso da Princesa Anastásia, interpretada por Ingrid Bergman no filme de 1956: a história começa em 1927, com os russos no exílio procurando a filha perdida do Czar. Bergman surge, esfomeada e maltrapilha, e pode ser essa Identidade Perdida que, se restaurada, pode, num passe de mágica, restaurar também todo esse êxodo forçado e as milhares de identidades suspensas.
5) De alguma forma tortuosa, essa mistura de messianismo e confusão de identidades me faz pensar em Fernando Pessoa - o sebastianista Pessoa, mas também o heteronímico Pessoa. Ou em Pirandello e suas peças sobre indivíduos que devem fingir aquilo que de fato são - penso em Enrico IV, escrita em 1921, representada em 1922. Ou em Tom Stoppard, que posiciona sua peça Travesties (de 1974) precisamente em 1917, em Zurique, fazendo James Joyce, Lenin e Tristan Tzara trocarem pastas (identidades, linguagens) por engano na Biblioteca Pública da cidade (Stoppard também joga com sua própria crise de identidade, já que boa parte de sua peça incorpora trechos de The Importance of Being Earnest, de Oscar Wilde).

2 comentários:

  1. Falcão,

    O mito (vou chamá-lo assim) de Anastasia, símbolo dessa Identidade Perdida que os russos exilados buscavam encontrar, me remete a uma das primeiras obras de Nabokov, "Machenka", na qual o protagonista, um russo exilado em Berlim, nutre expectativas para o reencontro com sua amada, de quem perdeu contato desde a Revolução Russa e agora a sabia a caminho da capital alemã. Antes do reencontro, no entanto, ele percebe que seu desejo não se dá por uma pessoa, mas por um passado já irremediavelmente perdido. Minha leitura de "Machenka" é uma espécie de anti-Anastasia no qual Nabokov evidencia a crença ingênua dos exilados russos sobre uma impossível volta à sua vida anterior.

    Abraços,
    George

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    1. Legal, George, gostei da sua leitura. Obrigado pelo comentário.

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