sexta-feira, 28 de outubro de 2022

Recuerdos


1) Em um dos ensaios de seu livro Figurações, Sylvia Molloy fala de Sarmiento e de sua tendência de transformação da "vida" em "texto" (para que assim possa servir de modelo, possa entrar na tradição, possa perdurar). "Recuerdos, a escrita de si mesmo em Recuerdos", escreve Molloy sobre Recuerdos de provincia (de 1850), "é também tradução, transposição de textos ou relatos de outros ao relato do eu. Ler o outro não é somente apropriar-se das palavras do outro, é existir por meio do outro, ser o outro" (p. 56). As memórias de Sarmiento são, em grande medida, memórias de um leitor, de um feroz autodidata, que desafia o saber tradicional com sua "máquina de aprender" (a expressão é de Sarlo e Altamirano no ensaio "Una vida ejemplar").

2) Ao estudar a história da Grécia "até decorar", passando à história de Roma e assim por diante, Sarmiento declara que "sente-se" sucessivamente "Leônidas e Brutus, Aristides e Camilo, Harmódio e Epaminondas", e isso "enquanto vendia erva-mate e açúcar". A partir dessas vidas célebres do passado, Sarmiento alcança (e traduz) as vidas cotidianas do presente, seu presente, sua época, seu contexto - o presbítero José, o frei Justo Santa María, Domingo o orador, uma espécie de "panteão provincial", como escreve Molloy, que acrescenta: "Mas como no caso de Kafka e seus precursores, esses parentes teriam pouco a ver entre si (e menos interesse para o leitor de Recuerdos) se Sarmiento não tivesse existido" (p. 57).

3) A partir do registro das vidas e da absorção das vidas alheias ao próprio trajeto subjetivo (algo que é incorporado ao texto), Sarmiento promove uma sorte de atualização da ideia de Warburg (que seria enunciada algumas décadas depois) de que "Atenas e Oraibi" podem ser "primas" (modificando o verso do Fausto de Goethe: do Harz à Grécia, todas são primas/Atenas e Oraibi, todas são primas). Da mesma forma que Borges vai a Kafka para reler textos do passado, Molloy vai a Borges (e sua estratégia de leitura) para revisitar Sarmiento e sua relação peculiar com as vidas alheias ao seu redor, transfiguradas pelo contato que o jovem Sarmiento tem com os textos antigos (traduzidos e transformados pelos manuais, já que ele não lê no original), um percurso que permite, finalmente, ler Sarmiento com Warburg.

quarta-feira, 26 de outubro de 2022

O interlocutor


"Quanto a meu filho primogênito, por muito tempo pensei que não podia tê-lo como interlocutor, pois filhos não podem ser interlocutores, uma vez que costumam ser hipercríticos e implacavelmente severos conosco. Se isso não acontece, acontece o contrário, e é pior: consciente ou inconscientemente, eles tendem a nos mitificar. No entanto, em determinado momento descobri que este meu filho, do jeito estranho dele, é meu interlocutor. É um interlocutor assim: submeto-lhe o que escrevo, ele lê e imediatamente me cobre de ofensas e injúrias. O estranho é que suas injúrias não me ferem de maneira nenhuma e me dão vontade de rir. Ele também fica com vontade de rir, mas nem por isso desiste de proferir suas ofensas com uma prepotência divertida e selvagem. Riso e alegria jorram de seus olhos de carvão, de sua cabeça negra, crespa e selvática. Acredito que me ofender seja um dos prazeres de sua vida. Escutar suas ofensas certamente é um dos meus"

(Natalia Ginzburg, "Interlocutores" (agosto de 1970), Não me pergunte jamais, trad. Julia Scamparini, Ayiné, 2022, p. 224-225)

domingo, 16 de outubro de 2022

EB


"Crack Wars [livro de Avital Ronell], como já mencionei, não trata do crack propriamente. Mas do estado alterado filtrado pelas lentes de Emma Bovary, a decididamente nada heroica heroína do romance infame de Flaubert, publicado em 1856 e julgado por obscenidade em 1857, acusado de injetar veneno no corpo social. Apesar do fato de a única droga de verdade no romance ser o arsênico do suicídio de Emma (fornecido pelo odioso, anticlerical e empreendedor monsieur Homais, o farmacêutico da cidade), Ronell lê o romance como uma história que trata fundamentalmente de 'drogas ruins', ao lado de uma angústia suicida e uma violência interiorizada. 

Ao posicionar Emma Bovary e seus vícios comportamentais no centro da sobreposição que envolve 'a liberdade, as drogas e a condição do vício', Ronell sugere implicitamente que, entre todos os informantes disponíveis, 'EB' - com sua maternidade tóxica, as questões alimentares, seus hábitos de leitura ordinários, o esbanjamento, a religiosidade falha, o romantismo burguês, o adultério histericizado e as pulsões de morte - é uma rica fonte de informação para uma investigação sobre questões prementes da liberdade, do cuidado, da nutrição, do desejo e da ansiedade que têm compelido algumas figuras da filosofia, desde Kant e Nietzsche até Heidegger. Apoio esse sábio gesto feminista, em que uma fêmea humana é tratada, sem cerimônias, como um pivô da condição humana. Esse não tem sido um gesto comum"

(Maggie Nelson, Sobre a liberdade: quatro canções sobre cuidado e repressão, trad. floresta, Cia das Letras, 2022, p. 186-187)

*

"Não vejo que sentido pode ter, diz Renzi, escrever algo sobre Asja Lacis. Existem outras mulheres mais interessantes que podem servir de tema para uma narrativa. Por exemplo?, pergunto. Por exemplo, responde ele, a filha de Madame Bovary. Alguém deveria escrever uma biografia da filha de Madame Bovary. Na última página do livro começa outro romance, diz Renzi, e se levanta para ir buscar o livro de Flaubert. 'Uma vez vendido tudo, sobraram doze francos e setenta e cinco centavos, que serviram para pagar a viagem da senhorita Bovary à casa de sua avó. A boa senhora morreu naquele ano; como o tio Roualt estivesse paralítico, uma tia encarregou-se da órfã. É pobre e a manda ganhar a vida como fiandeira de algodão' [Elle est pauvre et l’envoie, pour gagner sa vie, dans une filature de coton]. A vida de uma operária têxtil que é a filha de Madame Bovary, diz Renzi, esse tema me interessa mais do que a história da amante de Walter Benjamin"

(Ricardo Piglia, "Notas sobre literatura em um Diário", Formas breves, trad. José Marcos Mariani de Macedo, Cia das Letras, 2004, p. 77-78)


terça-feira, 11 de outubro de 2022

Entre línguas


"Conta George Steiner que sua mãe, burguesa vienense, começava uma frase em um idioma e terminava em outro, 'os idiomas voavam pela casa toda'. Este voo linguístico, que Steiner apresenta como um ir e vir totalmente natural, o voo linguístico direto, sem escalas, típico da classe ilustrada, nem sempre é tão confortável para os outros: assim como os trabalhosos deslocamentos linguísticos dos menos afortunados, aqueles que vivem entre um idioma postergado e outro idioma que não dominam de todo. Para este pobre de língua, não existe voo direto: existem as incômodas, desconcertantes (e por vezes humilhantes) escalas. Vazios do dizer" (Sylvia Molloy, Viver entre línguas, trad. Julia Tomasini, Mariana Sanchez, Relicário, 2018, p. 42)

"Alan Pauls conta que, quando pequeno, invejava os cantores europeus que cantavam músicas em espanhol com sotaque: Ornella Vanoni, Nicola di Bari, Domenico Modugno, nomes aos que não posso deixar de acrescentar o de Vikki Carr com seu inesquecível Y volveré. De minha parte, lembro como eu e minha irmão nos divertíamos escutando no rádio o fortemente acentuado e possivelmente não compreendido inglês da memorável Lilian Red, nascida Nélida Esther Corriale, lady crooner de Héctor y su Gran Orquestra de Jazz, quem cantava que amava alguém 'with all my rádensoul'. Levei um bom tempo para perceber que se tratava do tão manjado heart and soul; era muito mais misterioso rádensoul, algo assim como uma poção oriental, provocativa, talvez obscena para a menina que eu era na época" (p. 45)

quinta-feira, 6 de outubro de 2022

Mortos e mortes



1) Como de hábito, Sciascia foca sua atenção nos momentos em que os extremos quase se tocam, momentos em que a traição quase toca o heroísmo, momentos em que a falta de consideração pela vida quase toca o sacrifício abnegado em direção ao outro. Em I pugnalatori, há uma passagem na qual Sciascia fala das "mudanças de regime" e de como, nessas situações, os "confidentes" da polícia se multiplicam: a polícia arrisca "não entender mais nada", pois existem "os velhos que querem construir méritos novos", "os novos que querem suplantar os velhos" e também os "diletantes", que se adaptam aos ventos na medida em que sopram (p. 24).

2) "As aparências enganam" é, frequentemente, a fórmula que condensa o procedimento de Sciascia - algo que ele constrói a partir de elementos multifacetados como a "carta roubada" de Poe, a "crônica italiana" de Stendhal e os "jogos de espelhos" de Pirandello (como em Enrico IV, o louco fingidor que decide fingir a loucura definitivamente). Isso aparece também no modo como Sciascia lê os textos: em I pugnalatori, comentando um escrito do procurador Giacosa, Sciascia ressalta o uso de um advérbio, "inexplicavelmente", um "advérbio que normalmente se utiliza quando existe uma claríssima explicação" (o seu relatório some, e não havia cópia - é precisamente esse desaparecimento que é "inexplicável" (p. 64)).

3) O evento que dá o ponto de partida a I pugnalatori, de resto, multiplica o elemento que frequentemente está no centro das preocupações de Sciascia: o crime, a morte. Ao contrário dos livros sobre Raymond Roussel e Aldo Moro, por exemplo, fixados em um único cadáver, a história dos "apunhaladores" conta com potenciais 13 vítimas, que duplicam quando os culpados são executados (menos o delator do grupo, que é condenado à prisão perpétua). Em Sciascia, a morte é combinada frequentemente à mise-en-scène do tribunal: em 1912+1, Maria Tiepolo mata Quintilio Polimanti, Sciascia analisa a imprensa e o processo; Portas abertas, Palermo, 1937: um homem mata três pessoas, o regime fascista quer a pena de morte, o juiz responsável pelo processo, no entanto, é contrário.