domingo, 10 de maio de 2020

O caso Moro


1) A obra de Sciascia se transforma com L'affaire Moro, de 1978. Ele é de certo modo surpreendido pela história (História? pelos fatos, acontecimentos?), pelo fait divers (para dizer com Barthes e para resgatar uma leitura que já fiz de Sciascia a partir de 1912+1), que agora lhe apresenta vários daqueles elementos que ele já usava em sua ficção: a irrupção violenta de um poder paralelo; as cartas que são enviadas; a morte de uma autoridade (Aldo Moro foi sequestrado em 16 de março de 1978 pelo grupo Brigadas Vermelhas e assassinado depois de 55 dias de cativeiro).

2) No calor da hora, ainda em 1978, Sciascia escreve seu relato - uma mescla de resumo dos fatos, crônica política e meticulosa análise de discurso (que toma como objeto as cartas que Moro envia do cativeiro). Em 1982, na condição de deputado, Sciascia participa de uma comissão de investigação do "caso Moro" e elabora um documento que atualiza em parte sua narrativa (os dois textos agora fazem parte da edição mais recente da Adelphi). Assim como acontece no romance A cada um o seu, de 1966, uma carta prepara o crime: não mais a carta anônima que ameaça um farmacêutico de uma pequena cidade da Sicília, e sim um conjunto de cartas que anunciam o julgamento/condenação de Moro na "prisão do povo" das Brigadas Vermelhas.

3) A ineficácia policial que Sciascia observa no caso Moro é muito próxima daquela que Sciascia já havia retratado em outro romance, de 1971, Il contesto (e mesmo em O dia da coruja, de 1961, já encontramos essa instituição que parece se esforçar para cancelar suas próprias chances de sucesso). Sciascia usa uma série de referências literárias no esforço de esclarecer o enigma das cartas de Moro, mas as mais proeminentes são Borges e Poe: o primeiro por conta do dispositivo Pierre Menard; o segundo por conta do dispositivo Dupin. O primeiro diz respeito à capacidade de transformação de um mesmo texto diante da passagem do tempo (Sciascia repete a notícia do sequestro como se fosse "antes" e "depois" morte de Moro); o segundo diz respeito à possibilidade de resolução de um crime unicamente através dos rastros escritos que deixa nos jornais (Sciascia decifra as cartas conhecidas de Moro, ou seja, aquelas que foram publicadas pelos jornais durante o cativeiro).   

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