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quarta-feira, 21 de fevereiro de 2024

Nomes identificáveis



1) No último capítulo das suas Meditações pascalianas (de 1997), Pierre Bourdieu usa como exemplo o Processo de Kafka: ele, Kafka, não só usa o tempo de forma extremamente significativa (o jogo de expectativas e frustrações, planos, retomadas, desistências e arrependimentos), mas busca o "ponto de vista dos pontos de vista", como coloca Bourdieu (sua longa e tortuosa argumentação ao longo das Meditações visa a escolástica e sua insistência na separação da razão como instância última e definitiva). Bourdieu ainda acrescenta que só Proust alcançou Kafka nesse esforço de busca pela multiplicidade de pontos de vista (com efeitos bem menos trágicos, completa).

2) Algumas dezenas de páginas antes de falar de Kafka, Bourdieu apresenta uma digressão sobre Baudelaire, argumentando que a fortuna crítica enorme ao redor do autor de Flores do Mal torna difícil de perceber a radicalidade de sua poética e o modo como inventa uma nova forma de "ser artista" no interior e a partir do Literário (nesse ponto ele aproveita alguns momentos de um livro anterior, As regras da arte, de 1992). É curioso que, no centro de um trabalho de crítica à escolástica, encontramos um exemplo precisamente da meticulosidade de tal método/escola, vinda do próprio crítico (Bourdieu mostra que é preciso saber com precisão quais eram os autores imediatamente anteriores e imediatamente contemporâneos de Baudelaire, algo que se perdeu na fortuna crítica posterior).

3) Esses dois momentos das Meditações convergem em direção ao ensaio de Walter Benjamin sobre Proust, no qual ele defende justamente que a Recherche deve ser lida à luz das intrigas sociais imediatamente anteriores e imediatamente contemporâneas à escrita do ciclo romanesco (em outras palavras, Benjamin defende a importância hermenêutica da fofoca e do chisme, para usar o termo de Edgardo Cozarinsky). Recuando no tempo, o mesmo pode ser dito de Dante: Lamartine criticava A divina comédia por seu lado mundano florentino, pois, no poema, figuram muitos nomes identificáveis unicamente pelos habitantes de Florença.

domingo, 3 de julho de 2022

Ao redor do fogo


1) Em seu livro Exterminate all the Brutes, Sven Lindqvist retorna àquele que costuma ser uma figura-chave em todo discurso sobre o imperialismo europeu de fins do século XIX, Joseph Conrad (o livro de Lindqvist é de 1992, original em sueco; a tradução ao inglês saiu em 1996, depois, portanto, do lançamento de Os anéis de Saturno, no qual também Sebald retorna a Conrad e toca muitos dos temas de Lindqvist - genocídio, violência, a dialética do "iluminismo", a hipocrisia do discurso "civilizatório" europeu).

2) Lindqvist faz um trabalho interessante de rastrear os textos que estavam circulando nos últimos anos do século XIX, lidos por Conrad e absorvidos na tessitura geral de Heart of Darkness. Resgata, por exemplo, R. B. Cunningham Graham, amigo de Conrad, com quem se correspondeu extensamente, também ele escritor - publica o romance Mogreb-el-Acksa em 1898: um narrador se dirige a um círculo de amigos ao redor do fogo para relatar cenas da violência colonial (Lindqvist aponta que o narrador de Graham é uma sorte de "equivalente à cavalo" de Marlow e seu "círculo de marinheiros" - e podemos também ir em direção a um dos "inícios" da literatura, os poetas orais que contavam os versos de Homero ao redor do fogo). 

3) A ficção, portanto, como a expansão de círculos concêntricos de "conversações" - primeiro Graham, depois Marlow no interior do romance de Conrad e, por fim, a própria postura de Conrad diante de seus leitores na revista Blackwood's (onde a história é originalmente publicada). Penso no modo como, alguns anos depois (1936), Joseph Roth utiliza e subverte essa estrutura em Confissão de um assassino: dentro de um restaurante em Paris, durante uma noite, um exilado russo conta sua história de vida a um grupo indistinto e heterogêneo; o grupo não está ligado por laços, por uma confraria, estão reunidos ali por acaso, tomando um trago em uma noite fria; o narrador não é um amigo, não é alguém escolhido, ele se vale do acaso para exercitar a escuta e, em seguida, a escrita do relato (Roth opera no registro baudelaireano da cidade anônima e das relações fugazes, diverso daquele registro ainda um pouco "aristocrático" de Graham e Conrad).  

segunda-feira, 23 de maio de 2022

Crônica dos anos 1850


A preparação da década se dá já em 1849, ano da morte de Edgar Allan Poe, aos quarenta anos, em sete de outubro. Dois de seus poemas são publicados ainda nesse ano, mas já postumamente: "Annabel Lee" (nove de outubro de 1849, New York Daily Tribune) e "The Bells" (novembro de 1849, Sartain's Union Magazine); o ensaio "The Poetic Principle", por sua vez, foi publicado no Home Journal, em 31 de agosto de 1850.

The Scarlet Letter, de Nathaniel Hawthorne, foi publicado em março de 1850; Moby-Dick, de Herman Melville, em outubro de 1851 ("Bartleby", por sua vez, na edição de novembro/dezembro de 1853 da Putnam's Monthly Magazine); Walden; or, Life in the Woods, de Henry David Thoreau, foi publicado em agosto de 1854; em julho de 1855, com seu dinheiro, Walt Whitman publica a primeira versão de Leaves of Grass (reformulado ao longo dos próximos 40 anos).

Entre dezembro de 1851 e março de 1852, Marx escreve Der 18te Brumaire des Louis Napoleon, que publica em março de 1852 na revista alemã, publicada em Nova York, Die Revolution; em 1854, 1855 e 1856 são publicados postumamente três romances incompletos de Balzac, falecido em 1850: Le Député d'Arcis, Les Paysans e Les Petits Bourgeois; de outubro a dezembro de 1856, na Revue de Paris, Flaubert publica Madame Bovary, que sai em livro pela primeira vez em abril de 1857 (depois do processo vencido, que permite a Flaubert incorporar as partes cortadas na publicação seriada); em junho de 1857, Baudelaire publica a primeira versão de Les Fleurs du mal, processado por imoralidade já no mês seguinte; Heine morre em Paris, 17 de fevereiro de 1856.

Tolstói publica sua trilogia autobiográfica ao longo da década: Infância em novembro de 1852; Adolescência em 1854; Juventude em 1857; para Dostoiévski, foi um período de intenso sofrimento: preso em 23 de abril de 1849 como "conspirador", condenado à morte, "perdoado" e por fim enviado para quatro anos de trabalhos forçados na Sibéria (foi libertado em 14 de fevereiro de 1854; Recordações da casa dos mortos será publicado entre 1860 e 1862); Gógol, que morre em 4 de março de 1852, na noite de 24 de fevereiro queima seus manuscritos, inclusive a segunda parte de Almas mortas (parte da acusação contra Dostoiévski dizia que ele havia lido textos banidos pelo regime, como a "Carta a Gógol", de 1847, de V. G. Belinski; Turguêniev é preso em abril de 1852 por escrever um obituário elogioso de Gógol).  


quinta-feira, 19 de maio de 2022

Jogo de montar



1) Em artigo intitulado "Construído com astúcia: um modelo para o modo de escrever de Walter Benjamin" (disponível no livro coletivo Walter Benjamin. Experiência histórica e imagens dialéticas), Erdmut Wizisla apresenta uma série de descobertas realizadas no Arquivo Walter Benjamin (Walter Benjamin Archiv / Akademie der Künste, Berlin), do qual é diretor. O que me interessa especialmente é o detalhamento da relação entre Benjamin e Ferdinand Lion, autor do livro sobre Descartes, Rousseau, Bergson (ao qual fiz referência em comentário sobre Barthes). Wizisla faz uso da correspondência entre Lion e Benjamin em torno da publicação, em 1938, de um artigo sobre o Instituto Social de Adorno e Horkheimer, delineando no processo um "modelo" do "modo de escrever" de Benjamin.

2) Lion, que era responsável pela revista Mass und Wert, que lidava com uma série de outros autores, temas, egos, diagramações, prazos e questões técnicas, solicitou a Benjamin que não se alongasse muito em seu texto, para que pudesse ser colocado na seção de "críticas". Ao invés de mandar um texto curto, Benjamin mandou a Lion um texto longo dividido em muitas partes, para que o editor pudesse escolher a disposição que quisesse, seguindo, porém, instruções que oscilavam entre o barroco e o cabalístico: O marco do manuscrito: páginas 1, 2, 3 e 11. As páginas 8, 9, 10 formam um bloco que pode ser inserido neste marco como um todo fechado, ou melhor isolado, ou ainda junto com outras páginas. As páginas restantes, 4/5, 6, 7 podem ser incluídas de forma individual, ou melhor, em conjunto; teria aqui de levar em conta tão somente que a página 6 não pode figurar sem as páginas 4/5 (ou melhor, ao contrário). A extensão mínima do manuscrito: menos de três páginas; a máxima: oito páginas completas

3) Wizisla comenta: "A observação preliminar oferecia a Lion pelo menos onze possibilidades diversas de combinar os oito elementos. O redator escolheu uma décima segunda, não autorizada, que violava as intenções do autor"; argumenta ainda que o procedimento de Benjamin nesse caso específico está ligado ao modo como ele organizava seu pensamento de forma mais ampla: o Livro das Passagens, suas ideias sobre Paris como capital do século XIX, suas reflexões sobre o surrealismo e sobre a tradição como um jogo de montagem e combinação (um fio que desemboca na Rayuela de Cortázar, na obra de Perec, na desmontagem do poema de Baudelaire por Lévi-Strauss e Jakobson, naquela que faz Barthes com Balzac em S/Z, no David Markson de Reader's Block, no Coetzee de Diário de um ano ruim). "O modo de construção de Benjamin significa um adeus à linearidade e hierarquia", escreve ainda Wizisla. 

sábado, 30 de abril de 2022

Agruras



1) A arte ambiciona reproduzir a natureza, lugar e matriz de toda perfeição? Ou é uma sublimação da matéria, um aperfeiçoamento, um processo de eliminação das impurezas, de fixação de um momento extra-ordinário, atemporal, mágico? Partindo de uma célebre dicotomia, cimentada pelo trabalho dos Quatro Grandes Filólogos (Auerbach, Curtius, Spitzer, Vossler), é possível dizer que as duas perguntas correspondem a dois encaminhamentos canônicos da história da literatura: o dantismo e o petrarquismo.

2) O primeiro é o reconhecimento do cosmo como "grande obra", escrita pela mão de Deus. Daí decorre o trabalho do poeta, perene imitação, dedicada, tenaz, comprometida. Quanto mais distante da revelação divina, pior será o trabalho do poeta (uma criação afastada, de certa forma, da Criação). O percurso que decorre de Petrarca, por outro lado, diz respeito à poesia como sublimação das agruras humanas (o significante não está aí por acaso: faz pensar nas Agruras do verdadeiro tira, de Bolaño), harmonização de um drama visando transformar a dor em beleza.

3) Não é por acaso que um dos últimos grandes petrarquistas tenha sido Baudelaire, com sua vida completamente absorvida pelo século XIX - nascido em 1821, morto em 1867. Com o "maneirismo" da sua poesia acreditava poder criar "as flores do mal", a beleza ainda possível no caos da cidade, uma beleza impura, heterogênea - "artificial" como os "paraísos" que ele contrastava com o inferno de sua contemporaneidade (por esse percurso, é possível novamente chegar a Bolaño, também ele petrarquista, que faz poesia do sofrimento: La palabra coño, metamorfoseada en la palabra arte, le había salvado la vida - sem esquecer, evidentemente, a epígrafe baudelairiana de 2666).

quarta-feira, 8 de dezembro de 2021

Benjamin, Valéry


1) Ao comentar Baudelaire e o século XIX (a lírica, o capitalismo, a vida nas grandes cidades), Walter Benjamin estabelece um elo entre o autor das Flores do mal e o autor do Cemitério marinho, ou seja, Paul Valéry. Para Benjamin, Valéry retoma a tarefa de descrever a discrepância entre "vida natural" e "arte", salientada exponencialmente pela transformação nas "técnicas" de captura do real e produção das artes (parte dessa ruptura está sendo descrita também por Heidegger, mais ou menos na mesma época, até culminar em Ser e tempo, de 1927 - Le Cimetière marin é de 1920).

2) Em Benjamin, Valéry aparece como um atualizador das intuições de Baudelaire: tanto sua poesia quanto suas reflexões sobre as "crises" do "espírito" indicam uma insuficiência do humano diante da proliferação de dispositivos, técnicas e tecnologias - como a arte pode operar como uma sorte de estação de gravação de estímulos? Como uma sorte de arquivo de inscrições que já não passam pela subjetividade criadora para existir, mas pela pura troca de emissões organizada entre os dispositivos e a partir dos dispositivos? A essa primeira triangulação - Baudelaire/Valéry/Benjamin - corresponde uma segunda, posterior, Foucault/Deleuze/Agamben, que organizam algumas das relações entre dispositivo e criação.

3) Algo na experiência de leitura da obra de David Markson passa por esses elementos. Seus "romances" não são apenas feitos de fragmentos que desafiam o gesto automático do leitor de "fazer sentido" (de articular em um todo provisório a manifestação dos fragmentos); em paralelo a isso, Markson também torna o sujeito do fragmento "fantasmático" ou "espectral", sem fundo ou substância (cuja materialidade é a bobina da máquina de escrever ou a caixa de sapatos onde guardava as fichas antes da montagem-transformação em "romance"). Antes de remeter a uma voz autoral centralizada, os fragmentos de Markson remetem à própria disposição do fragmento na página, ao movimento de arquivamento desses fragmentos em um todo nunca realizável ou atualizável, sempre em devir, em processo.

sábado, 31 de julho de 2021

A simulação


1) Los siete locos, de Roberto Arlt, lançado em 1929, articula em dois níveis distintos e complementares uma poética do engano, da falsidade e da simulação: em primeiro lugar está o nível da narração, do modo como a história é contada, pois a voz narradora às vezes se identifica com um "eu" que organiza as falas de Erdosain e os fatos da trama, mas frequentemente opera também em um registro onisciente, panorâmico (além disso, uma série de notas são dispostas ao longo do romance fazendo referência a eventos futuros, quando personagens já estão mortos ou presos - além de indicar (como no caso do membro militar do complô do Astrólogo, o Major, que se revela na trama como um farsante mas que a nota afirma que ele é, de fato, o militar que afirma não ser).

2) O segundo nível diz respeito à falsidade e simulação constante no comportamento dos personagens, algo que Arlt cuidadosamente marca tanto na exterioridade quanto na interioridade: os sonhos, os delírios e os devaneios são muito frequentes, fazendo com que o tecido da "realidade" seja contaminado por esse movimento incessante de Erdosain em direção ao devaneio (ele está sempre imaginando situações possíveis, encontros, reencontros e diálogos ideais); na dimensão cotidiana e imediata das relações a simulação também é central - seja no casamento, seja nas relações entre "amigos" (o "amigo" que diz a Erdosain que o denunciou em seu trabalho para ficar com sua mulher), seja nas relações "políticas" do grupo revolucionário do Astrólogo e do Rufião Melancólico (que sempre faz questão de marca sua posição ambivalente, sempre um pouco dentro e um pouco fora).

3) Arlt capta essa potência da simulação na literatura dos cem anos anteriores, seguindo uma linha muito clara de afinidades eletivas: Poe (que em 1827 já publica poemas intitulados "Um sonho", "Imitação", "Espíritos dos mortos"), Baudelaire (La Fanfarlo, de 1847), Dostoiévski (não só as "memórias do subsolo" de 1864, mas toda a evocação do submundo anarquista em Os demônios, de 1871), Huysmans (o excêntrico Jean des Esseintes de À rebours, em 1884), Oscar Wilde (o artista Dorian Gray que se torna assassino, 1890), Nietzsche e tantos outros (o precursor argentino decisivo, argumenta Josefina Ludmer em O corpo do delito, é Soiza Reilly e seu La ciudad de los locos, de 1914).  

terça-feira, 4 de maio de 2021

Prosa de poeta


1) Em 1983, como introdução ao volume Captive spirit: selected prose, de Marina Tsvetáieva, Susan Sontag publica o ensaio "Uma prosa de poeta", hoje disponível em seu livro Questão de ênfase. Tudo começa com uma marcação clara e sumária de território: o século XIX está para o romance e para a prosa assim como o século XX está para a poesia (especialmente no contexto russo, referência principal de Sontag nesse texto - a passagem de Dostoiévski e Tolstói para Brodsky e Mandelstam, de certa forma), embora o objetivo final de Sontag seja delinear certas zonas de sombra possíveis, momentos em que prosa e poesia se combinam em obras singulares (como na ensaística de Brodsky e Blok).

2) Um primeiro curto-circuito, sugere Sontag, acontece na obra de Flaubert: sua prosa aspira à intensidade da poesia, sua "inevitabilidade léxica" e sua velocidade (o que gera uma reação, um desejo por parte da poesia de transfigurar seus processos, sua singularidade - o que remeteria à obra de Mallarmé, por exemplo). Mais do que uma situação cristalizada, Sontag está tentando captar um movimento, um processo - momentos em que prosa e poesia entrar em contraste, tendo como resultado a emergência de uma obra singular (como os "ensaios" de Tsvetáieva, escritos em "prosa de poeta", mesclando o registro do "eu" com o registro da elaboração crítica, da contextualização histórica e de uma espécie de fenomenologia da recepção estética).

3) Para Sontag, a prosa de poeta envolve uma performance contínua do "eu", uma preocupação permanente com as marcas deixadas no "eu" artístico pela convivência com o mundo externo (Sontag cita os diários de Baudelaire como exemplo - repletos de fórmulas de incentivo para o "eu" do poeta, estabelecimento de regras de conduta diante da língua e da sociedade, estratégias maníacas de manutenção de seu "ideal"). Tal performance, contudo, está em tensão com a visada retrospectiva da prosa de poeta: a tradição é lida a partir dos elementos que o "eu" busca salientar em seu próprio trabalho, os precursores são escolhidos e valorizados a partir das lições ainda ativas sobre o presente (o modo muito peculiar como Borges lê e valoriza Marcel Schwob, por exemplo).     

segunda-feira, 5 de abril de 2021

O anjo da guarda


1) Falar dos "anjos" na poesia é um gesto complexo, carregado de camadas que evocam desde Baudelaire até Rilke e o "anjo da história" de Benjamin (não é por acaso que Augusto de Campos fala de Coisas e Anjos de Rilke). O "anjo" carrega consigo a dimensão de uma entidade que oscila entre a proteção e a indiferença, espécie de elo entre a experiência mundana e uma projeção possível em direção ao inefável, ao invisível (O anjo silencioso de Heinrich Böll, por exemplo, é uma estátua despedaçada, uma ruína que assusta por sua imobilidade, por sua indiferença diante do que acontece ao seu redor).

2) Charles Simic publica, na coletânea The World Doesn't End (1989), um poema intitulado "My guardian angel is afraid of the dark", meu anjo da guarda tem medo do escuro (que dá título à coletânea brasileira). O anjo tem medo do escuro e nega: manda o "protegido" ir na frente e diz que logo ele chega (sends me ahead, tells me he'll be along in a moment); mas a escuridão é enorme, deve ser "o canto mais escuro do paraíso", como sussurra alguém (“This must be the darkest corner of heaven,” someone whispers behind my back). O anjo da guarda, apesar de existir, já não cumpre sua função, chamando a atenção para a própria inadequação (uma condição de inoperosidade que é tornada possível pelo medo, como se o sentimento forçasse o anjo a uma situação que ele não consegue aceitar ou assumir).  

3) Essa dimensão poética da linguagem permite a construção de imagens que falam, simultaneamente, da esperança e do desespero - exatamente como o anjo de Benjamin (que no enigma auspicioso de sua existência fala da destruição e das ruínas), o anjo de Simic é estimulante por sua própria existência, até o momento em que se revela inútil, medroso, omisso. O anjo é uma das figuras de acesso àquilo que Eric Santner, seguindo Rilke, chama de "vida criatural", On Creaturely Life, um estudo que parte de Heidegger para pensar as inscrições do poder e da autoridades nos corpos e nas vivências, ou ainda, a dimensão biopolítica da oscilação entre "experiência mundana" e "projeção possível do inefável", chegando à obra de W. G. Sebald (a parte autobiográfica de Nach der Natur pode ser lida como uma glosa indireta à ideia de um "anjo da guarda" que tem "medo do escuro"). 

sexta-feira, 12 de março de 2021

Ao redor do inorgânico


1) Quando fala do sex appeal do inorgânico (o fascínio provocado pela morte, pela dissolução, pelo silêncio), Walter Benjamin aponta que o fetichismo (o fascínio por objetos ou detalhes) é seu "nervo vital". Em linhas gerais, Benjamin parte de Marx para refletir sobre o contato do orgânico com o inorgânico, ou ainda, do corpo humano com os objetos que o cercam (o capital inorgânico que absorve, sem descanso, a força vital dos indivíduos). Benjamin também encontra essa ambivalência (o objeto como esfera do uso e como esfera da absorção da energia vital) na poesia de Baudelaire, em seus recortes e seleções, seu cuidadoso desenvolvimento de uma "doença" do olhar poético, uma enfermidade da sensibilidade que, simultaneamente, faz do poeta um ser singular e um ser condenado.

2) Em paralelo à elaboração de Benjamin, Georges Bataille desenvolvia também uma reflexão não só sobre o sex appeal do inorgânico (embora a expressão não seja utilizada por ele), mas também sobre a relação entre objetos, capital e vida pulsional/imaginativa. Essa ambivalência diante do artefato é cultivada por Bataille em uma série de frentes, tanto no espaço do arquivo-museu (seu trabalho com moedas na Bibliothèque Nationale) quanto no espaço de corte e montagem que ele faz nas revistas em que trabalha (Documents, 1929-1930; Minotaure, 1933-1939; Acéphale, 1936-1939). Um dos mistérios investigados por Bataille (fundamental também para a poesia de Baudelaire) diz respeito à ambivalência do objeto, oscilando entre o profano e o sagrado, entre o excepcional e o cotidiano (a faca do sacrifício; o pedaço de vidro que se torna lente).

3) Os pares de olhos posicionados por Sebald no início de Austerlitz podem ser lidos como a representação da fixidez da morte, a rigidez cadavérica, o congelamento do animal empalhado, do corpo embalsamado ou do artefato no museu de cera. Os olhos estão inseridos em uma série de momentos de articulação entre texto e imagem ao longo de sua obra, série na qual Sebald expõe um desdobramento precisamente do sex appeal do inorgânico. Desde o molde de gesso da mão esquerda de Métilde, uma das mulheres por quem Stendhal foi apaixonado, apresentado em Vertigem; passando pelo crânio de Thomas Browne, que teria permanecido exposto no museu do mesmo hospital no qual o narrador se recupera de um colapso, crânio exposto também em Os anéis de Saturno, pouco antes do surgimento na narrativa dessa imagem, a Lição de anatomia de Rembrandt, que, assim como os olhos em Austerlitz, funcionará como epígrafe visual que dará o tom do restante da narrativa. 

segunda-feira, 7 de dezembro de 2020

O ofício de viver

"A forma moderna do diário do escritor mostra uma evolução peculiar, quando examinamos alguns de seus principais expoentes: Stendhal, Baudelaire, Gide, Kafka e agora Pavese. A desinibida exposição de egocentrismo se transfere para a busca heroica de apagamento do ego. Pavese nada tem da percepção protestante de Gide de sua vida como uma obra de arte, do respeito pela própria ambição, da confiança em seus sentimentos, do amor por si mesmo. Tampouco tem o sério e apurado compromisso de Kafka com sua angústia pessoal. 

Pavese, que usava o 'eu' tão prodigamente em seus romances, em geral se refere a si mesmo no diário como 'você'. Não se descreve; dirige-se a si mesmo. É o espectador irônico, exortativo, crítico de si. Parece inevitável que a consequência última dessa visão distanciada de si fosse o suicídio. Os diários, com efeito, constituem uma longa série de avaliações e indagações pessoais. Não registram nada sobre o cotidiano ou fatos ocorridos; não há nenhuma descrição de parentes, amigos, amantes, colegas ou reação a acontecimentos públicos (como nos Diários de Gide)."

(Susan Sontag, Contra a interpretação e outros ensaios, trad. Denise Bottmann, Cia das Letras, 2020, p. 66)

1) O ensaio de Sontag sobre Pavese é de 1962 e ela já escrevia seu próprio diário desde novembro de 1947, quando tinha quatorze anos; um traço subterrâneo da genealogia que ela propõe é sua própria projeção como diarista, no futuro, décadas depois e de forma póstuma (ela prepara a recepção do próprio diário);

2) "A busca heroica de apagamento do ego": essa é, sem dúvida, a divisa tomada por Coetzee a partir de T. S. Eliot, especialmente em Juventude, romance de 2002 (a carga ambivalente que Sontag encontra em Pavese também está em Coetzee: o "crítico de si" e "espectador irônico" será amplamente trabalhado por ele em Verão, o romance de 2009);

3) De resto, a breve genealogia apontada por Sontag dá conta de três poéticas fundamentais para a literatura da segunda metade do século XX: Coetzee (não só o "crítico de si" e o "apagamento do ego", mas especialmente o recurso ao "você" ao invés do "eu"); Sebald (o "apurado compromisso" de Kafka com sua "angústia pessoal" foi agudamente notada por Sebald, que reconfigura esse compromisso em Vertigem - resgatando também Stendhal, mencionado por Sontag); e Enrique Vila-Matas (Gide é decisivo tanto para Doutor Pasavento quanto para O mal de Montano, por exemplo);  

quinta-feira, 16 de abril de 2020

O discurso e seus outros

Hans Bellmer
"Todos os motivos para reconhecer algo como obra de arte são parciais, mas sua retórica geral é, inequivocamente, europeia. Essa retórica, como bem sabemos, era aplicada repetidamente à área do humano também. De Flaubert, Baudelaire e Dostoiévski, passando por Kierkegaard e Nietzsche, Bataille, Foucault e Deleuze, o pensamento europeu reconheceu como uma manifestação do humano muito do que, anteriormente, era considerado mau, cruel e desumano.

Assim como no caso da arte, esses autores e vários outros aceitaram como humano não somente aquilo que se revela humano, mas também aquilo que se revela desumano - e exatamente porque se revela desumano. A questão, para eles, não era incorporar, integrar ou assimilar o estrangeiro dentro do próprio mundo, mas, ao contrário, entrar no estrangeiro e tornar-se conforme a sua própria tradição. Em minha opinião, não é necessário demonstrar aqui que esses autores, assim como incontáveis outros na tradição europeia, não podem ser facilmente integrados no discurso dos direitos humanos e da democracia. 
Rudolf Schwarzkogler
No entanto, esses autores pertencem, por esse motivo, à tradição europeia, porque manifestam uma solidariedade interna com o outro, com o forasteiro, até mesmo com o ameaçador e cruel, que está muito mais fundo e nos leva mais além que um simples conceito de tolerância. A obra de todos esses autores é uma tentativa de diagnosticar, no interior da cultura europeia, as forças, os impulsos e as formas de desejo que são, em terras estrangeiras, territorializadas. Assim, esses autores mostraram que a característica verdadeiramente única das culturas europeias consiste em tornar alguém permanentemente estrangeiro ao anular, abandonar e negar esse alguém - e fazê-lo de forma mais radical que qualquer cultura que conhecemos jamais conseguiu fazer. De fato, a história da Europa é nada além da história de rupturas culturais, uma constante rejeição às tradições de alguns."

(Boris Groys, "A Europa e seus outros", Arte Poder, trad. Virgínia Starling, UFMG, 2015, p. 220-221)

segunda-feira, 30 de março de 2020

Berta Isla, 3

Quando Tomás, o espião-marido, retorna depois de muitos anos (agora conhecedor da trama enganosa que o empurrou ao seu destino, de certa forma), vai procurar um antigo professor para saber até que ponto este esteve envolvido no engano. Tomás relembra Eliot nesse encontro, resgatando os versos que leu pela primeira vez tantos anos antes, na livraria, no seu primeiro encontro com um "agente secreto".

Diz Tomás acerca dos versos de Eliot: eu tinha lido por casualidade fragmentos, saltando, não inteiro. Agora faz tempo que sei de cor de alto a baixo (p. 420). De certa forma subterrânea, o conhecimento aprofundado dos versos de Eliot acompanha a própria trajetória do protagonista: vive a própria vida e, em paralelo, costura a própria vida aos versos de Eliot que o acompanham desde o início. Há uma sutil e decisiva aproximação entre leitura e vida, entre experiência (de vida) e "saber de cor" (o texto de Eliot).

*

O uso que Marías faz de Eliot em Berta Isla faz pensar, vagamente, na aparição de Charles Baudelaire no Gattopardo de Tomasi di Lampedusa (romance publicado postumamente em 1958 pela Feltrinelli, depois de duas rejeições - Mondadori e Einaudi). Voltando para casa à noite depois de uma visita a uma prostituta, Dom Fabrizio se lamenta: que tristeza: aquela carne jovem já tão manuseada, aquele despudor resignado. E ele mesmo, o que era? Um porco, nada mais. Veio-lhe à mente um verso que havia lido por acaso numa livraria de Paris, folheando um volume de não sabia mais quem, um daqueles poetas que a França desenfornava e esquecia a cada semana. Esse detalhe, do resgate involuntário de um poeta sem nome, é ainda mais intensificado quando se descobre que se trata de Baudelaire (informação dada em nota). Lampedusa continua: revia a pilha amarelo-limão dos exemplares não vendidos, a página, uma página par, e reouvia os versos que estavam ali, encerrando um poema extravagante: Seigneur, donnez-moi la force et le courage / de regarder mon coeur et mon corps sans dégoût! (versos do poema "Viagem a Citera", de As flores do mal).

(Giuseppe Tomasi di Lampedusa, O Leopardo, trad. Maurício Santana Dias, Cia das Letras, 2017, p. 29)

Ainda que os versos de Baudelaire não sejam requisitados ao longo do romance como são os versos de Eliot por Marías em Berta Isla, é possível dizer que sua presença simbólica ecoa ao longo da narrativa (como faz Eliot no romance de Marías): afinal de contas, como Dom Fabrizio já anuncia no início do romance, a dissolução de seu corpo e sua vitalidade espelha a dissolução de um Reino, de uma família, de uma sociedade, de um conjunto de costumes (é preciso ter força, como escreve Baudelaire, para observar essa derrocada sem desgosto). Outro detalhe é fundamental: a presença divina é solicitada e, ao mesmo tempo (como é recorrente em Baudelaire), diminuída, escarnecida; em o Gattopardo o gesto permanece. 

domingo, 15 de dezembro de 2019

Opus Gelber

Leio Opus Gelber: retrato de un pianista, de Leila Guerriero, uma meditação sobre a criatividade e a arte, sobre a relação do indivíduo com seu ofício e a percepção dessa dinâmica por parte de quem está de fora. A princípio, trata-se da história do contato de Guerriero com o pianista argentino Bruno Gelber, nascido em 1941, eleito um dos cem melhores pianistas do século XX. Tema e personagem fazem pensar de imediato no Glenn Gould de Thomas Bernhard, em O náugrafo (o professor dos três personagens de Bernhard, Horowitz, é mencionado várias vezes no livro de Guerriero).

O livro de Guerriero é ao mesmo tempo complexo e terno, sentimental - ou seja, é visível a complexidade da forma, do modo como os diversos testemunhos são costurados, sobrepostos, editados e montados; mas é também visível o comprometimento da narradora com o personagem, seu envolvimento emocional, sua angústia diante do desejo de fazer justiça às décadas de maníaca dedicação de seu personagem à arte. Das várias tensões que percorrem a narrativa, uma delas - talvez a mais reiterada - é a tensão entre movimento e permanência, viagem e lar (tema que é espelhado na dificuldade de mobilidade de Gelber, que teve poliomielite quando criança, que deixou sequelas na perna esquerda). 
Uma das principais conquistas de Gelber foi justamente a de se tornar um pianista mundialmente reconhecido apesar da dificuldade de se mover. Uma questão decorrente daí é: por que voltou à Argentina depois de quase 50 anos vivendo na Europa? E por que vive em um prédio localizado em uma área degradada da cidade? O retrato de Gelber envolve, portanto, o contraste entre seu apartamento ricamente decorado e os camelôs na calçada, doze andares abaixo. A atenção de Guerriero à influência da casa na subjetividade do artista é, nessa perspectiva, bastante benjaminiana - faz pensar no que escreveu Benjamin sobre as mudanças de endereço constantes de Baudelaire ou seus comentários sobre o interior ("estojo", "veludo") da casa burguesa.
A narradora alcança o artista praticamente no fim de seu percurso - de volta a Buenos Aires, com cada vez mais dificuldade para se locomover. Só ouve (dele e de outros) acerca de seus sucessos, suas viagens e, sobretudo, de sua técnica no piano, sua paixão na interpretação. Esse ponto é central para a narrativa e nunca mencionado diretamente: a narradora nunca presencia a atuação do artista no piano. Sua performance é sempre um ouvir dizer. O livro se encaminha para as últimas 50 páginas quando surge a pergunta: "posso ver você praticar?". O artista responde que sim, mas isso nunca acontece. Nessa perspectiva, Gelber surge como uma espécie de Bartleby, ou seja, como o artista que tem o domínio não apenas do fazer mas também do não-fazer (da "potência-do-não", para dizer com Agamben em seu comentário a Aristóteles).  

Em alguns momentos, a narradora inclusive comenta o desconforto do artista diante do registro da arte, ou seja, diante da possibilidade de gravação da arte, diante da possibilidade de contato com a arte para além da performance do artista (Gelber gravou poucos discos, esclarece ela, e resiste à ideia de gravar mais). No lugar da visibilidade imediata da performance, está o anedótico, o legendário, a máscara, a cortina das várias versões de inúmeros acontecimentos. A narradora sabe que Gelber é um artista genial, mas nunca comprova - a narrativa é apresentação desse fato a partir da perspectiva de várias testemunhas e, sobretudo, do artista (que, por sua vez, fala pouco da técnica, da performance - preferindo contar várias vezes a situação em que teve que comer um mosquito (cuspir seria pior) em um palco italiano). 

domingo, 29 de setembro de 2019

A lama e o poeta

1) O valor da subjetividade é uma ficção intensamente urdida já a partir do cogito de Descartes e aprimorada pelos românticos (o gênio, a inspiração). Para Baudelaire, a autoria é um anacronismo - a auréola do poeta inspirado está na lama. 

je traversais le boulevard, en grande hâte, et que je sautillais dans la boue, à travers ce chaos mouvant où la mort arrive au galop de tous les côtés à la fois, mon auréole, dans un mouvement brusque, a glissé de ma tête dans la fange du macadam

Em decorrência disso, um estudioso do Romantismo como Walter Benjamin vai pensar, já a partir da década de 1920, um livro construído apenas de citações, apenas de nomes alheios.
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2) Beckett ressalta conscientemente essa herança (que é ao mesmo tempo uma ruptura) cartesiana. Beckett estava interessado em ler o Discurso do método (e as Meditações) como ficção - uma ficção na qual a retórica cria a realidade. Se lembrarmos de Dias felizes, por exemplo, peça de Beckett de 1961, veremos Winnie enterrada até o pescoço, mostrando apenas sua cabeça - uma imagem possível da separação cartesiana entre mente e corpo (mas Beckett vai além, ele suprime o corpo, dissolve o corpo, o que é impensável para Descartes, que via a máquina humana como uma articulação entre mente e corpo).
3) É possível inclusive dizer que, para Beckett, tudo começou com Descartes. Para Beckett, tudo começou com Whoroscope, um longo poema escrito em inglês, mas publicado (em 1930) em Paris por The Hours Press (um pequena casa editorial que contava com um concurso literário, que naquele ano foi vencido por Beckett). O personagem principal é Descartes (Beckett avisa nas notas), que medita sobre o tempo (tema do concurso) em algo que lembra um fluxo de consciência mesclado a comentários culinários, geográficos, teológicos e retóricos.

segunda-feira, 23 de setembro de 2019

Longos capotes

1) Em pleno 24 de dezembro - 1903 - nasce Joseph Cornell. Em seguida chegam as irmãs, Elizabeth e Helen - Nietzsche teve uma irmã chamada Elizabeth, assim como Walser. E Joseph Cornell, por sua vez, também terá um irmão chamado Robert: nasce em 1910, com paralisia cerebral. O pai morre de leucemia em 1917, tornando a situação financeira da família difícil: a mãe passa a vender doces que faz em casa e Joseph, depois de abandonar a escola, torna-se vendedor de tecidos (percorre a vizinhança, de porta em porta). É curioso que Robert Walser morre em um dia 25 de dezembro - em 1956, aos 78 anos (Cornell vivia seu primeiro dia com 53 anos).
2) Charles Simic dedicou um livro a Joseph Cornell: Dime-Store Alchemy: The art of Joseph Cornell, de 1992. Simic aborda a obra, a vida e o universo de Joseph Cornell através de capítulos bastante breves, escritos em uma prosa poética costurada com algumas citações (Nietzsche, Nerval, Poe, Valéry, Baudelaire) e algumas imagens das obras de Cornell. De modo que não se trata nem de uma biografia nem de um estudo crítico, ainda que seja um pouco de ambos: Simic apresenta um retrato de Cornell que é filtrado por seu próprio registro poético. Nascido em 1938, Simic tinha 18 anos de idade em 1956, e vivia há apenas dois anos nos Estados Unidos (Simic é natural da Sérvia).
3) "Tinha a expressão que imagino ser a do rosto do Bartleby de Melville", escreve Simic sobre Cornell. "Sua expressão no dia em que decide interromper o trabalho para olhar somente para o muro do outro lado da janela do escritório". Simic não vai além em seu anúncio de uma possível metempsicose entre Bartleby e Cornell. Só afirma que "existem homens assim em todas as grandes cidades", vagando solitários pelas ruas, envolvidos em seus longos capotes fora de moda. O olhar perdido, mas intenso, também como Walser; o longo capote fora de moda, também como Walser. 

quinta-feira, 22 de novembro de 2018

Tradutores


Dostoiévski, tradutor de Balzac (Eugénie Grandet, 1844)

Baudelaire, tradutor de Edgar Allan Poe (Histoires extraordinaires, 1852)

Freud, tradutor de Charcot (Lições de terça-feira, 1888, 1894)

Auerbach, tradutor de Vico (Die neue Wissenschaft über die gemeinschaftliche Natur der Völker, 1924)

Samuel Beckett, tradutor de James Joyce (Anna Livia Plurabelle para o francês, 1931)

Borges, tradutor de Faulkner (Las palmeras salvajes, 1940)

Martin Heidegger, tradutor de Heráclito (Heráclito, 1943-1944)

Roger Caillois, tradutor de Borges (Fictions, 1951)

Derrida, tradutor de Edmund Husserl (A origem da geometria, 1962)

Vladimir Nabokov, tradutor de Púchkin (Eugene Onegin, 1965)

Sergio Pitol, tradutor de Gombrowicz (Cosmos, 1969)

Edward Said, tradutor de Auerbach (Philology and "Weltliteratur", 1969)

Juan Rodolfo Wilcock, tradutor de William Carlos Williams (Nelle vene dell’America, 1969)

Sergio Pitol, tradutor de Joseph Conrad (El corazón de las tinieblas, 1974)

Antonio Tabucchi, tradutor de Fernando Pessoa (Una sola moltitudine, 1979)

Danilo Kiš, tradutor de Raymond Queneau (Stilske Vežbe, 1986 - Exercícios de estilo).

César Aira, tradutor de Jan Potocki (Manuscrito encontrado en Zaragoza, 2001)

segunda-feira, 18 de dezembro de 2017

O inominável atual

1) Roberto Calasso divide seu último livro (L'innominabile attuale) em três partes: "Turistas e terroristas", "A Sociedade Vienense de Gás" e "Avistamento das Torres". As duas primeiras partes regulam de extensão (70, 80 páginas), mas a terceira é brevíssima, apenas o resgate de uma anotação de Baudelaire, um sonho ou visão, em um papel que Calasso declara como "indatável". Nessa anotação, Baudelaire diz ter visto a queda de uma torre, um enorme edifício, queda essa ignorada pelas "nações" (Calasso faz o paralelo com as Torres Gêmeas e o 11 de setembro e encerra o livro).
2) Na primeira parte do livro, Calasso tenta dissecar a categoria do Homo saecularis, ou ainda, a presença do secularismo na sociedade moderna, as relações possíveis entre as categorias sociais e as categorias religiosas e como essa tensão permanece e se intensifica hoje (especialmente nesse confronto do título, "turistas e terroristas", aqueles que cultivam a mobilidade e aqueles que abominam a mobilidade - seja dos corpos, seja dos costumes). "Homo saecularis é inevitavelmente turista", escreve Calasso, e continua: "Não apenas quando viaja. Zapping e link formam uma vasta parte de sua vida mental. São operações pré-existentes, que um dia alcançaram a configuração indicada nos dois termos. Bouvard e Pécuchet já as praticavam, sem necessidade de recorrer a qualquer suporte técnico" (p. 62).
3) A segunda parte é uma espécie de Livro das Passagens, de Benjamin, em miniatura: uma coleção de citações (mas comentadas e editadas). "Não são lembranças", escreve Calasso de introdução, "Mas de palavras escritas, publicadas, ditas, referidas, registradas nos dias entre o início de janeiro de 1933 e maio de 1945. Todas as imagens daqueles anos, de qualquer proveniência, exalam algo de hipnótico. Foi o auge do preto e branco, no cinema e na vida. Quando aparece o technicolor, parece uma alucinação. Era como se o tempo tivesse formado uma espiral cada vez mais estreita, que terminava em um estreitamento" (p. 95). Das várias fontes disponíveis, Calasso seleciona, por exemplo, os diários de Ernst Jünger (o momento em fica sabendo dos campos de extermínio) e de André Gide (sua insistente defesa de Hitler e Stálin), as cartas de Benjamin e de Céline (suas amantes, sua fuga), as cartas de Beckett escritas durante sua viagem de meses através da Alemanha em 1936.

segunda-feira, 8 de maio de 2017

Gesto, experiência (Proust, Leskov)

No ensaio sobre o narrador, ao falar de Leskov - ativo de 1862 a 1895 -, Benjamin afirma que a narração está ligada ao conto oral, ligada à experiência da voz e do gesto. Essa dinâmica é evidente em muitos dos contos de Leskov, e um exemplo possível está nessa passagem do conto "A fera" (em como Leskov faz um gestual que diz respeito também à contenção dos gestos e à recusa dos gestos):

De repente, algo foi ao chão... Era o bastão do meu tio... Apanharam-lho, mas ele não o tocou: estava sentado, inclinado de lado, com uma mão descaída da poltrona, e nela, como que esquecida, estava a grande turquesa do fecho... Ele deixou-a cair, também, e... ninguém correu a levantá-la. (Nikolai Leskov, Homens interessantes e outras histórias. Trad. Noé Oliveira Policarpo Polli. São Paulo: Editora 34, 2012, p. 194).

Em outro texto, "Sobre alguns temas em Baudelaire", Benjamin retorna rapidamente à questão, mas agora por outro viés - não tanto a leitura específica da poética de Leskov, mas uma consideração mais geral acerca do contexto amplo europeu que vai de Baudelaire a Proust, passando por Freud, Bergson e Valéry, todos minuciosamente comentados nesse ensaio de Benjamin. Esse ensaio sobre Baudelaire foi publicado em janeiro de 1940 (por Adorno e Horkheimer no periódico do Instituto de Pesquisa Social), enquanto o ensaio sobre Leskov é de 1936. 
"Karl Kraus não se cansou de demonstrar a que ponto o estilo jornalístico tolhe a imaginação dos leitores", escreve Benjamin, preparando o terreno para em seguida ligar a imaginação à experiência: "Na substituição da antiga forma narrativa pela informação, e da informação pela sensação reflete-se a crescente atrofia da experiência. Todas essas formas, por sua vez, se distinguem da narração, que é uma das mais antigas formas de comunicação". A frase seguinte é ela própria mimética com relação ao método que tenta apreender, e em sua evocação das mãos, faz pensar na importância dos gestos (como na citação de Leskov acima): na experiência "ficam impressas as marcos do narrador como os vestígios das mãos do oleiro no vaso da argila".

Por fim, chama a atenção como nesse momento do ensaio Benjamin recorra a Proust, anunciando que "os oito volumes da obra de Proust nos dão ideia das medidas necessárias à restauração da figura do narrador para a atualidade. Proust empreendeu a missão com extraordinária coerência, deparando-se, desde o início, com uma tarefa elementar: fazer a narração de sua própria infância". Nesse sentido, a "busca" na Recherche é uma prospecção não apenas do "inconsciente" ou da "memória" de Marcel e seu eu-narrador, mas prospecção também do arquivo da experiência e do sensível. (Obras escolhidas III, trad. Hemerson Alves Baptista, Brasiliense, 1989, p. 107).  

quinta-feira, 22 de setembro de 2016

Diário de trabalho

25. 7. 38

Benjamin está aqui. Está escrevendo um ensaio sobre Baudelaire. Há boas ideias no texto. Ele mostra como a probabilidade de uma época sem história distorceu a literatura depois de 48. A vitória em Versalhes da burguesia sobre a comuna sofreu descontos antecipados. Chegou-se a um acordo com o mal. Que tomou a forma de uma flor. É útil ler isso. Estranhamente é o spleen que permite a Benjamin escrever isto. Ele usa como seu ponto de partida algo a que dá o nome de aura, que está ligada aos sonhos (devaneios). Diz ele: se você sente um olhar dirigido a você, mesmo nas suas costas, você o retribui (!). A expectativa de que aquilo para que você olha olhará de volta para você cria a aura. Supõe-se que isso está em decadência nos últimos tempos, junto com o elemento de culto na vida. Benjamin descobriu isso enquanto analisava filmes, onde a aura é decomposta pela reproduzibilidade da obra de arte. Uma carga de misticismo, embora sua atitude seja contra o misticismo. Este é o modo como o entendimento materialista da história é adaptado. É abominável. 

5. 10. 38

Do valor literário: que escritor é Gide, cujo belo livro sobre os prazeres terrenos o exército da frente popular francesa leva na mochila quando marcha! Ou então guarda o livro na mesinha de cabeceira e falta à marcha. E Hasek: seu grande livro está encolhendo hora após hora enquanto as zonas-V são ocupadas pelo exército de Hitler. Era o relato da vitória de um povo oprimido, o relato de Odisseu. Mas a vitória foi efêmera demais. Ele agora figura numa lista de livros suspeitos e trata de acontecimentos que as pessoas não conhecem mais. 

(Bertolt Brecht, Diário de trabalho: Volume I, 1938-1941. Trad. Reinaldo Guarany e José Laurenio de Melo. Rio de Janeiro: Rocco, 2002, p. 8-9; 21).

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A ligação entre Gide e Benjamin, por sua vez, se dá por incontáveis fios; um dos fios possíveis é a entrevista que Benjamin fez com Gide em Berlim, em janeiro de 1928 (dez anos antes da temporada com Brecht na Dinamarca).