quarta-feira, 6 de junho de 2012

Gert Ledig

1) O escritor Gert Ledig nasceu e morreu na década de 1950. Falecido em 1999, pouco antes de completar oitenta anos de idade, Ledig passou as quatro últimas décadas de sua vida esquecido como escritor. E Ledig, diante da miopia e da surdez de seus contemporâneos, que não desejavam conviver com as memórias que sua ficção trazia à tona, tornou-se um Bartleby e decidiu abandonar a literatura.
2) Sua estreia foi em 1955, com romance Die Stalinorgel - uma referência aos tanques de guerra do Exército Vermelho. O tema se torna particularmente perturbador quando descobrimos que Ledig não apenas participou da II Guerra, no exército alemão, como também tomou parte na campanha da Rússia. Ledig, portanto, viu de perto os tanques de Stálin - e teve a mão direita e o maxilar inferior destroçados no encontro.
3) Eis a impressionante complexidade da obra ainda desconhecida de Ledig: uma ficção que nasce do testemunho, que nasce da materialidade do corpo e da incidência da violência sobre ele, mas que prescinde completamente do eu e da construção de um espaço narrativo autobiográfico. Sua força estética está construída sobre a postulação de um aspecto informe da experiência, que escapa da coesão da identidade e produz, no evento da escritura, uma sombra da vivência desagregadora da guerra.

segunda-feira, 4 de junho de 2012

Uma repugnante perversidade

1) O escritor alemão Gert Ledig narra, em seu livro Vergeltung (represália, vingança, retaliação...), o bombardeio de uma cidade alemã durante a II Guerra Mundial. Ledig passa de um personagem ao outro, contando suas mortes sucessivas sob as bombas de fósforo: não há juízo moral, nenhuma identificação com as vítimas, que estão sempre distantes, sempre estranhas ao leitor. Os jovens nazistas que avançam durante o ataque, o aviador americano atingido no ar, os dois alemães soterrados nos escombros, próximos da morte - e Ledig impede a satisfação da empatia quando mostra o homem soterrado que, antes de morrer, estupra a adolescente que está enterrada com ele.
2) A narrativa de Ledig não oferece consolo ou qualquer preceito afirmativo sobre a guerra - é cruel em sua ausência deliberada de certeza. Somente a narração distante do horror, quase documental, quase neutra, quase alienígena. Seu tema não é político (a luta contra o nazismo), é humano - ou talvez pós-humano, pós-histórico em sua perspectiva alheia, cirúrgica, panorâmica e aleatória do sofrimento e das consequencias da guerra. Nesse sentido, a abordagem de Ledig é completamente distinta daquela de Ernst Jünger - cuja visão da guerra é profundamente calcada em sua vivência, em sua figura quase heroica, em seu autorretrato enquanto sobrevivente (com toda a carga possível para essa palavra, conforme mostrou Elias Canetti em Massa e poder). Ledig, que teve a mandíbula destroçada durante um combate na Frente Russa, escolheu não se aproveitar de nenhum dos avatares que o poderiam ter convertido em um escritor famoso.
3) O romance de Ledig recebeu críticas bastante duras na época de seu lançamento - e é essa miopia da crítica que serve de ponto de partida para a análise que Sebald oferece dos escritos de Ledig (o faz nas conferências de Zurique, Guerra aérea e literatura). A audiência daquele tempo não queria uma imagem da guerra isenta de valores, de sacrifício, de sentido, afirma Sebald - e esse vazio é o elemento que mais incomoda na ficção de Ledig. "Uma repugnante perversidade", escreveu um crítico. Por conta disso, o livro de Ledig é muito mais do que uma narração sobre a guerra - é uma cartografia do sofrimento, um mapeamento da capacidade humana de causar sofrimento e da falta de sentido deste. E, como sabemos desde Beckett, quando abandonamos o sentido abandonamos também a redenção.

sábado, 2 de junho de 2012

Warburg e Benjamin

 1) Um curioso elemento não-acadêmico (por vezes até anti-acadêmico) é um dos pontos de contato entre dois pensadores que, ironicamente, são amplamente aproveitados no discurso acadêmico contemporâneo: Aby Warburg e Walter Benjamin. Ambos vivenciaram um paulatino distanciamento da universidade, instituição que aparecia, na época, como o lugar natural para o desenvolvimento de seus respectivos projetos. Formados no trânsito inter-universitário típico da época, sob o frequente influxo de professores reputados e já estabelecidos, terminaram como desertores universitários. 
2) Benjamin, depois dos inesperados insucessos docentes, se refugiou no jornalismo e no mercado editorial. Warburg, que havia renunciado aos seus direitos de primogenitura em troca de receber todos os livros que pedisse, conseguiu metamorfosear a instituição acadêmica segundo sua vontade, forjando uma espécie de campo de pesquisa feito rigorosamente a partir das feições de seus interesses - o que levou à criação do Instituto com seu nome (profundamente multidisciplinar até os dias de hoje). 
3) Contudo, a proximidade é apenas superficial - diz respeito somente ao caráter nômade, inquieto e extraterritorial das pesquisas e posturas de ambos. Talvez os recursos abundantes de Warburg tenham determinado o ponto distintivo fundamental entre ele e Benjamin, que poderia ser descrito como uma sorte de rigor ou de organização residual da obra póstuma - nas variáveis desenvolvidas por Benjamin em sua obra sobre as Passagens (um repertório caótico de forte carga vanguardista, mas de utilidade restrita, quase pessoal) é difícil reconhecer uma teoria do símbolo artístico afim ao projeto de Warburg e seu Atlas (porém, algumas afinidades são poderosas, como a particular releitura anacrônica de períodos históricos - Warburg com o Renascimento, Benjamin com o Barroco).