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domingo, 26 de dezembro de 2021

A grande abóbora



1) A frase de abertura de Entre los indios, de César Aira (história que leva a data 4 de maio de 2012 no final), registra a aparição do demoníaco entre os índios: La cabeza de Pillán (el diablo) asomaba lentamente de la tierra, como un gran zapallo, apartando piedras y pasto con un rumor de derrumbe. O efeito em cascata das referências que nos levaram até este ponto: estamos em plena evocação daquilo que é soterrado e ressurge, dos "frutos terrestres" (o poema em prosa que André Gide escreve em 1895, publica em revista em 1896 e em livro em 1897, espécie de "contracanto" alegre ao De Profundis de Oscar Wilde, escrito na prisão em 1897).

2) O diabo surge da terra como un gran zapallo, como uma abóbora, um fruto a ser colhido, repartido, compartilhado e consumido - como na cena da gravura do século XIII, presente em uma Bíblia judaica conservada na Biblioteca Ambrosiana de Milão, citada por Agamben no primeiro capítulo de O aberto, mostrando o banquete depois do Juízo Final, quando será servido o Leviatã aos convidados, cada um com uma coroa na cabeça, cabeças de animais por baixo das coroas. A irrupção do demoníaco - como em Grünewald ou Bulgakóv - serve também de ensejo para a criação de uma fábula sobre a irrealidade da realidade, com ênfase na capacidade de um determinado indivíduo de perceber tanto o fantástico quanto a capacidade desse fantástico de passar ignorado pelo restante do mundo (é o inframince duchampiano que Aira faz circular na ficção). 

3) A aparição de Pillán, anjo caído, como abóbora, como "fruto da terra", faz parte daquela conexão alto/baixo, serpente/raio, de que fala Warburg no Ritual da serpente (a "aparição" deve necessariamente tomar as feições dos frutos da estação, daí a importância da conjunção astronômica e da crítica pós-colonial: onde e quando, exatamente, aparece esse demônio?). O dispositivo do demônio que sai da terra é também aquele que garante o inesperado da ficção: é impossível saber com certeza os desdobramentos desse "fruto", desse "dom" - como acontece com as pedras preciosas que vem das entranhas da terra em Leskov ("Alexandrita"), ou os corais das profundezas do oceano em Joseph Roth (O Leviatã, 1938).

segunda-feira, 6 de dezembro de 2021

Monsieur Wilde

"Em 1891, quando Oscar Wilde era o que Paris chamava 'le great event', ele conheceu Proust, que o convidou para jantar. Na noite em questão, Proust chegou em casa com alguns minutos de atraso. 'O cavalheiro inglês está aqui?', ele perguntou ao criado. 'Sim, senhor, ele chegou cinco minutos atrás; ele mal tinha entrado na sala quando perguntou onde ficava o banheiro, e ainda não saiu de lá'.

Proust correu para o final do corredor. 'Monsieur Wilde, o senhor está passando mal?', o anfitrião ansioso perguntou da porta. 'Ah, aí está o senhor, Monsieur Proust', Wilde respondeu, aparecendo majestosamente. 'Não, eu não estou nem um pouco doente. Achei que ia ter o prazer de jantar sozinho com o senhor, mas me levaram para a sala de visitas. Eu olhei para a sala e no fundo estavam os seus pais, e me faltou coragem. Até logo, meu caro Monsieur Proust, até logo...' Depois, os pais de Marcel disseram a ele que, examinando a sala de visitas, Wilde tinha exclamado: 'Como a sua casa é feia!'"

(Julian Barnes, O homem do casaco vermelho, trad. Léa Viveiros de Castro, Rocco, 2021, p. 155)

sábado, 31 de julho de 2021

A simulação


1) Los siete locos, de Roberto Arlt, lançado em 1929, articula em dois níveis distintos e complementares uma poética do engano, da falsidade e da simulação: em primeiro lugar está o nível da narração, do modo como a história é contada, pois a voz narradora às vezes se identifica com um "eu" que organiza as falas de Erdosain e os fatos da trama, mas frequentemente opera também em um registro onisciente, panorâmico (além disso, uma série de notas são dispostas ao longo do romance fazendo referência a eventos futuros, quando personagens já estão mortos ou presos - além de indicar (como no caso do membro militar do complô do Astrólogo, o Major, que se revela na trama como um farsante mas que a nota afirma que ele é, de fato, o militar que afirma não ser).

2) O segundo nível diz respeito à falsidade e simulação constante no comportamento dos personagens, algo que Arlt cuidadosamente marca tanto na exterioridade quanto na interioridade: os sonhos, os delírios e os devaneios são muito frequentes, fazendo com que o tecido da "realidade" seja contaminado por esse movimento incessante de Erdosain em direção ao devaneio (ele está sempre imaginando situações possíveis, encontros, reencontros e diálogos ideais); na dimensão cotidiana e imediata das relações a simulação também é central - seja no casamento, seja nas relações entre "amigos" (o "amigo" que diz a Erdosain que o denunciou em seu trabalho para ficar com sua mulher), seja nas relações "políticas" do grupo revolucionário do Astrólogo e do Rufião Melancólico (que sempre faz questão de marca sua posição ambivalente, sempre um pouco dentro e um pouco fora).

3) Arlt capta essa potência da simulação na literatura dos cem anos anteriores, seguindo uma linha muito clara de afinidades eletivas: Poe (que em 1827 já publica poemas intitulados "Um sonho", "Imitação", "Espíritos dos mortos"), Baudelaire (La Fanfarlo, de 1847), Dostoiévski (não só as "memórias do subsolo" de 1864, mas toda a evocação do submundo anarquista em Os demônios, de 1871), Huysmans (o excêntrico Jean des Esseintes de À rebours, em 1884), Oscar Wilde (o artista Dorian Gray que se torna assassino, 1890), Nietzsche e tantos outros (o precursor argentino decisivo, argumenta Josefina Ludmer em O corpo do delito, é Soiza Reilly e seu La ciudad de los locos, de 1914).  

sexta-feira, 26 de junho de 2020

Kraus, Huysmans


1) Por alguma razão, o estilo de Kraus (ele próprio e também seu fantasma tal como evocado por Canetti e Benjamin) me faz pensar em Huysmans, o escritor francês Joris-Karl Huysmans. Penso também na incerta aproximação temporal - Huysmans morre em 1907, e até esse ponto Kraus já havia fundado Die Fackel e publicado dois livros (Die demolierte Literatur, 1897, e Eine Krone für Zion, 1898). Mas o que decide a questão é a insistência em uma dificuldade do estilo, algo que diz respeito tanto à ligação quase religiosa com a língua de ambos quanto ao desejo de construir uma comunidade de leitores devotos e dedicados.

2) Aprofundando, é possível encontrar em Kraus e Huysman um tom compartilhado de pessimismo, ironia e deboche, sem esquecer a dificuldade da linguagem e acrescentando, como terceiro elemento, uma erudição que não se apresenta apenas pelo acúmulo de referências, mas pelo jogo associativo que leva de uma a outra. Ambos são profundamente pessimistas e descrentes dos caminhos disponíveis para seus contemporâneos - Kraus e Huysman reconhecem a estupidez de seus pares e ambos escreveram centenas de páginas com o intuito de denunciar (e troçar) tal estupidez.

3) O aspecto religioso é também central: o judeu Kraus faz uma conversão secreta ao catolicismo, recebendo o batismo em 8 de abril de 1911; Huysman, nascido católico, abandona a igreja, abraça o "satanismo" (centro irradiador do romance Là-bas, de 1891) e volta à religião nas últimas obras. Ambos investiram também no autorretrato, na auto-representação do autor como personagem - Huysman com Durtal, protagonista de sua trilogia final de romances; Kraus com o personagem central de sua grande obra, Os últimos dias da humanidade, chamado de "o Eterno Descontente".

*

(em esforço análogo ao que tento aqui, mas de modo mais amplo e bem-sucedido, Francisco Álvez Francese aproxima Kraus de Oscar Wilde, aqui)

quinta-feira, 12 de setembro de 2019

Joyce, Balzac (1)

No livro James Joyce A to Z: The Essential Reference to the Life and Work, os autores (A. Nicholas Fargnoli e Michael Patrick Gillespie) reservam um verbete para Balzac. Citam um ensaio de Joyce sobre Ibsen de 1903 (um ensaio sobre a peça Catilina, escrita entre 1848-1849 e apresentada pela primeira vez em 1881) no qual ele critica Balzac por sua "falta de precisão". O mais interessante, contudo, é a remissão que os autores fazem a uma referência a Balzac presente em Finnegans Wake - mais precisamente, uma referência a Balzac que Joyce mescla a uma referência a Oscar Wilde:

the squidself which he had squirtscreened from the crystalline world waned chagreenold and doriangrayer in its dudhud  (186.6-8)

A referência de Joyce aqui é La Peau de chagrin, romance de Balzac lançado em 1831, e que conta a história de um jovem que recebe um pedaço mágico de pele (ou couro) que satisfaz seus desejos (mas a cada desejo concedido a pele diminui de tamanho e leva consigo parte da energia vital do jovem). Joyce pega o chagrin do original em francês e acrescenta a palavra green e a palavra old, preparando o terreno para a próxima referência, de Oscar Wilde:

chagreenold and doriangrayer 

O verde de chagrin se articula com o cinza de doriangrayer, ou seja, de Dorian Gray - o romance e personagem de Oscar Wilde, também ele envolvido em um sistema mágico de retribuição e castigo (assim como a pele em Balzac, o quadro em Wilde recebe a pena do envelhecimento, que não é, contudo, compartilhada pelo protagonista).   

quarta-feira, 17 de dezembro de 2014

As invasões bárbaras

Ingrid Bergman em Anastasia, 1956
1) Variações possíveis sobre o tema das invasões bárbaras: a horda de revolucionários invade o Palácio de Inverno em São Petersburgo em 1917; a transformação política e social na Rússia leva à fuga de milhares de indivíduos ligados ao regime anterior - a maioria deles em direção à Europa, como é o caso de Nabokov (da Rússia para Berlim, depois para Paris) e Chklóvski (Berlim, depois de volta a Moscou). 
2) Vida e obra de Joseph Roth estão marcadas por essa dinâmica das invasões e da errância: como soldado, a volta do front com o fim da guerra (A marcha de Radetzky, 1932, Fuga sem fim, 1927); como judeu, a história de expulsões e massacres (Judeus errantes, 1932, , 1930); como intelectual, jornalista, observador ou curioso - suas várias tentativas de dar conta do fenômeno social e político das revoluções e suas invasões: A rebelião, 1924, "o bacilo da revolução" e o agitador polonês Zwonimir em Hotel Savoy, 1924, conspiração e traição em Confissão de um assassino, 1936, o crescimento do fascismo na Berlim da década de 1920 em Direta e esquerda, 1929, o mesmo período na Rússia com as reportagens e artigos reunidos em Viagem à Rússia.     
3) No texto que abre essa coletânea, escrito em setembro de 1926 para o Frankfurter Zeitung, Roth escreve: "antes de alguém sequer pensar em visitar a Rússia atual, a velha Rússia há muito já veio ao nosso encontro". Funcionários, burocratas, nobres e tantos outros são agora taxistas, garçons e encanadores em Paris ou Berlim - cidades que se transformam em palcos permanentes, com múltiplas histórias sobrepostas e interligadas, de indivíduos expulsos que tomam uma máscara esperando a oportunidade de voltar.     
4) Espera, suspensão e esperança: pegue por exemplo o caso da Princesa Anastásia, interpretada por Ingrid Bergman no filme de 1956: a história começa em 1927, com os russos no exílio procurando a filha perdida do Czar. Bergman surge, esfomeada e maltrapilha, e pode ser essa Identidade Perdida que, se restaurada, pode, num passe de mágica, restaurar também todo esse êxodo forçado e as milhares de identidades suspensas.
5) De alguma forma tortuosa, essa mistura de messianismo e confusão de identidades me faz pensar em Fernando Pessoa - o sebastianista Pessoa, mas também o heteronímico Pessoa. Ou em Pirandello e suas peças sobre indivíduos que devem fingir aquilo que de fato são - penso em Enrico IV, escrita em 1921, representada em 1922. Ou em Tom Stoppard, que posiciona sua peça Travesties (de 1974) precisamente em 1917, em Zurique, fazendo James Joyce, Lenin e Tristan Tzara trocarem pastas (identidades, linguagens) por engano na Biblioteca Pública da cidade (Stoppard também joga com sua própria crise de identidade, já que boa parte de sua peça incorpora trechos de The Importance of Being Earnest, de Oscar Wilde).

terça-feira, 12 de novembro de 2013

Schwob e Vasari

1) Baseado sobretudo no Vidas dos artistas de Vasari, Marcel Schwob escreve sua versão da vida de Paolo Uccello - o pintor florentino é uma das vidas imaginárias que Schwob apresenta em seu livro Vidas imaginárias, publicado originalmente em 1896 (o ano que Oscar Wilde apresenta Salomé e Alfred Jarry apresenta o Ubu Rei, ambos em Paris). O livro de Vasari foi certamente um dos ingredientes fundamentais para Schwob configurar seu Vidas imaginárias, o que permite rastrear a presença de Vasari também em obras como a História universal da infâmia, de Borges, a Sinagoga dos iconoclastas, de Wilcock, a Literatura nazi na América, de Bolaño, e as Vidas minúsculas, de Pierre Michon (ou a vida dos homens infames, de Michel Foucault, ou mesmo a catalogação de vidas irrisórias que Georges Perec faz em Vida, modo de usar). 
2) Vasari, no entanto, está interessado em historiografia, e Schwob está interessado em ficção - e há um trecho da vida de Paolo Uccello que exemplifica essa distância. Schwob e Vasari partem do mesmo fato, aquele que teria sido o último projeto de Uccello: "um São Tomé buscando a chaga de Cristo", escreve Vasari, e completa: "nessa obra empenhou-se muito; ela foi terminada em sua velhice (...) quis demonstrar tudo o que valia e sabia". Vasari também informa que Uccello "mandou fazer um tapume de madeira para que ninguém pudesse ver sua obra antes de terminada". Donatello, o conhecido escultor, amigo e vizinho de Uccello, "indo certa manhã ao Mercado comprar frutas para desenhar, viu que Paolo descobria sua obra". Depois de "olhar bem a obra", escreve Vasari, Donatello exprime seu descontentamento - Uccello se envergonha e deixa a obra de lado (Vidas dos artistas, tradução de Ivone Bennedetti, WMF Martins Fontes, 2011, p. 197).
3) A chave do desvio que ocorre entre Vasari e Schwob está na frase "ela foi terminada em sua velhice" e na presença de Donatello. Em Schwob, Uccello chama Donatello depois de terminar o quadro, certo de "que havia realizado o milagre". "Mas Donatello", escreve Schwob, "vira apenas um emaranhado de linhas" (Vidas imaginárias, tradução de Duda Machado, Ed. 34, 1997, p. 100). Donatello morreu em 1466, Uccello em 1475 (nascido em 1397, não chegou aos "oitenta anos" declarados por Schwob em seu conto); o escultor, portanto, não poderia ter visto a obra finalizada, o "São Tomé buscando a chaga de Cristo". Assim como as cenas da vida de São Francisco, também essa obra de Uccello não sobreviveu (o motivo de São Tomé e das chagas de Cristo seria explorado por Caravaggio mais de um século depois, em 1601).    

terça-feira, 3 de setembro de 2013

O horror e o artifício

1) Baudelaire, em O pintor da vida moderna, de 1863, escreve que se analisarmos "tudo o que é natural", "todas as ações e desejos do puro homem natural", "nada encontraremos senão horror". E continua: "tudo quanto é belo e nobre é resultado da razão e do cálculo. O crime, cujo gosto o animal humano hauriu no ventre da mãe, é originalmente natural. A virtude, ao contrário, é artificial, sobrenatural, já que foram necessários, em todas as épocas, e em todas as nações, deuses e profetas para ensiná-la à humanidade animalizada, e que o homem, por si só, teria sido incapaz de descobri-la" (Poesia e prosa, Trad. Ivo Barroso, Nova Aguilar, 2002, p. 874-875).
2) Típica construção de Baudelaire, cheia de contradições minuciosamente elaboradas, que funcionam poeticamente mesmo na prosa, contradições que exploram os níveis heterogêneos que se confrontam no interior de uma mesma ideia. Que tipo de artifício que gera o belo pode ser criado por um indivíduo que nasce no crime e no horror? Um belo que só pode nascer fictício, mascarado, paródico. A linguagem em Baudelaire é um rebuscado exercício de troça metafísica: que deuses e profetas são esses que podem ensinar o que quer que seja à "humanidade animalizada", essa mesma humanidade que os criou? Daí a valorização do satanismo e da demonologia por Baudelaire, signos de uma realização poética que toma o "horror" da condição humana como ponto de partida (assim como Oscar Wilde, Baudelaire era um admirador de Charles Maturin).
3) Um ano depois, em 1864, Dostoiévski publica Memórias do subsolo - obra-prima da natureza humana como horror: Sou um homem doente... Um homem mau. Um homem desagradável. É também por conta desse tipo de filiação subterrânea que Baudelaire encontrará os textos de Poe - que Baudelaire afirma ter reconhecido, eram pensamentos seus que ainda não haviam tomado corpo. Quando Cortázar escreveu que Poe e Baudelaire eram a mesma pessoa, talvez tivesse em mente não apenas a semelhança física, mas essa típica figura do horror que é o duplo, ou ainda, o abrupto estranhamento de si diante do espelho.   

quinta-feira, 6 de junho de 2013

Evolução literária formalista

Charles Maturin, 1819
1) Tinianov dedica um ensaio inteiro ao problema da "evolução literária" e Ricardo Piglia realmente dá a ele os créditos da filiação "tio-sobrinho", em Respiração artificial: Alguien, un crítico ruso, el crítico ruso Iuri Tinianov, afirma que la literatura evoluciona de tío a sobrino (y no de padres a hijos) (p. 21 da edição Seix Barral). Mas Victor Erlich parece resolver a questão em seu livro Russian Formalism: History, Doctrine (Mouton, Haia, 1955, p. 260), citando o texto de Chklóvski no qual o crítico russo afirma: according to the law which, as far as I know, I was the first to formulate, in the history of art the legacy is transmitted not from father to son, but from uncle to nephew (Erlich cita de um livrinho publicado por Chklóvski em 1923, Literatura i kinematograf, já traduzido ao inglês).
2) Não há razão, contudo, para restringir a produtividade desse método somente a Chklóvski. Pois Tinianov, em seu texto sobre a evolução literária, amplia muitíssimo a questão - naquilo que pode ser considerado como uma sorte de trabalho em grupo ou criação coletiva, dado o contexto de intensa troca intelectual que lugar nas reuniões da OPOJAZ a partir e sobretudo em 1916. 
3) Oscar Wilde antecipa esse procedimento formalista de filiação alternativa com seu Retrato de Dorian Gray, que nasce em parte do fluxo que ele absorve de seu tio Charles Maturin. Nada mais adequado à poética de Wilde, que estabelece não apenas um exercício de confusão entre vida e arte, mas uma complexa estrutura de filiações alternativas e monstruosas. Nesse sentido, observa-se que em Wilde tudo corre em direção contrária ao estabelecido, ao convencional, ao moralmente determinado - desde o desejo sexual até o referencial mimético (em Dorian Gray, por exemplo, a "arte" (o quadro) ganha independência da "vida" de modo perverso e parasitário e trágico).

segunda-feira, 3 de junho de 2013

Ainda os errantes

Nathaniel Hone, The Pictorial Conjuror, displaying the Whole Art of Optical Deception
1) O mesmo Horace Walpole que em 1764 publica O castelo de Otranto será responsável, alguns anos antes, por uma defesa de Sir Joshua Reynolds, pintor e teórico da arte que pregava a imitatio dos Antigos. Trata-se do Walpole de Anecdotes of Painting in England (que são baseadas nas notas de um amigo seu mais velho, George Vertue). Em 1775, o pintor Nathaniel Hone apresenta "O mago pictórico revelando toda a arte da impostura ótica", um ataque direto ao seu grande rival, que era justamente Reynolds. No ano anterior, numa badalada conferência na Academia, Reynolds reforçou a importância de imitar não só a natureza, mas também a obra dos Grandes Mestres. Hone, em seu quadro, mostra Reynolds numa confusão de trajes anacrônicos e reproduções que flutuam pelo ar.
2) Num texto sobre Reynolds de 1942, E. H. Gombrich faz referência a esse contexto turbulento e cita a defesa de Walpole, que escreveu: "uma citação com um novo emprego do sentido sempre foi admitida como um exemplo de talento e gosto" (Gombrich, Norma e forma, tradução de Jefferson Luiz Camargo, Martins Fontes, 1990, p. 202, nota 12). E o ponto de Gombrich está justamente nessa articulação entre "criação espontânea" e "manobras de resgate", que para ele, para o ponto de vista do historiador, funciona como uma espécie de dialética, mas que para os artistas em questão - Walpole, Reynolds, Nathaniel Hone - parece apontar para uma solução entre opostos fixos (aquele que imita não cria e vice-versa).
3) Sem o saber, Walpole marcava o ponto de partida de uma série de obras que levariam ao Retrato de Dorian Gray, de Oscar Wilde, passando também pelo Melmoth de Balzac. E é importante observar que a linha de parentesco reivindicada por Oscar Wilde não é a tradicional "PAI - FILHO", e sim aquela alternativa, apresentada muitas décadas depois por Chklóvski, do "TIO - SOBRINHO". Sim, porque foi o Melmoth do tio-avô Charles Maturin a inspiração de Wilde (e também de Balzac - mas a teoria do legado "tio-sobrinho" é de origem incerta: Ricardo Piglia, por exemplo, afirma que o criador foi Tinianov). E a postura de Walpole, ao valorizar os procedimentos de imitatio de Sir Joshua Reynolds, lança luzes anacrônicas à série de ficções (Hawthorne, Gógol, Poe, Wilde, Auster) que seu Castelo de Otranto vai irrigar.   

sábado, 1 de junho de 2013

Errantes

1) Pinturas sobrenaturais estavam presentes na literatura inglesa desde o romance de Horace Walpole O castelo de Otranto, de 1764. Mas na década de 1880 ocorreu uma inundação de contos e romances nos quais retratos mágicos tinham papel de relevo. Oscar Wilde não se baseou em nenhuma dessas histórias exclusivamente, porém incorporou em O retrato de Dorian Gray uma verdadeira coletânea de temas associados com a ficção de retratos mágicos. O romance de Wilde é o coroamento de uma tradição que inclui trabalhos consagrados, como "Prophetic Pictures", de Nathaniel Hawthorne (1837); "O retrato oval", de Edgar Allan Poe (1842); e "O retrato", de Gógol (1835) (texto retirado de uma das notas da "edição anotada e sem censura" do livro de Oscar Wilde). 
2) Wilde foi, sem dúvida, fortemente influenciado pelo livro Melmoth the Wanderer (1820), escrito por seu tio-avô materno, Charles Maturin, no qual um retrato do malevolente Melmoth (que negociou com o demônio uma vida mais longa e uma aparência não modificada) fica escondido num armário e tem olhos que se movem. A pele de onagro (1831), de Balzac, também afetou Wilde - no romance, uma imagem de Cristo exerce sinistra influência e uma pele de asno se torna um registro objetivo e visível da degeneração de seu dono. Curiosamente, Balzac publica em 1835 seu Melmoth apaziguado, uma espécie de continuação para o romance de Maturin.
3) É curioso também que Hawthorne tenha publicado em 1828 um romance chamado Fanshawe, seu primeiro trabalho, e que o protagonista se chame justamente Dr. Melmoth - e "Fanshawe" é também o nome de um dos personagens da Trilogia de Nova York de Paul Auster. E Melmoth retorna também em Nabokov, em Lolita - "Melmoth" é o apelido que Humbert Humbert dá ao seu carro (claro, o errante, o desvirtuado). Até certo ponto, são histórias nas quais a vida é transmitida - geralmente com a ajuda do demônio - a um objeto, um talismã, que vai aos poucos absorvendo a carga vital do tempo que se encadeia (um quadro, um pedaço de pele, um carro). E também pode ser "Melmoth" o nome de Rousseau, errante em seus Devaneios do caminhante solitário (1782).
*
Uma analogia possível está na história de Robert Walser e na história da escritura de seus microgramas - as longas tiras de papel recobertas, ao longo de anos e anos, por uma escritura minúscula e enigmática. Ali estava seu enigma para o futuro, na escritura que se desenvolvia em segredo (ele se recolhe ao sanatório para não escrever e é justamente isso tudo que ele faz). Além da materialidade dramática dos pedaços de papel improvisados (guardanapos, jornais, embalagens), está também a finitude inexorável do lápis - ele vai acabar, e acabará na exata proporção da velocidade de escritura de Walser. Talvez no dia em que percebeu que já não era mais possível escrever com o lápis, porque sua materialidade já era inacessível, talvez tenha sido esse o dia que Walser escolheu para sua última caminhada na neve (Walser the Wanderer, Walser, o errante). 

domingo, 8 de abril de 2012

Todo o ferro da Torre Eiffel, 2

1) Franz Werfel (Praga, 1890 - Los Angeles, 1945). Serviu no Exército Austro-Húngaro. Escreveu um gigantesco romance - Os quarenta dias de Musa Dagh - sobre o genocídio dos armênios pelas mãos dos turcos. Fugiu dos nazistas duas vezes: primeiro para a França, depois para os Estados Unidos.
2) Leo Perutz (Praga, 1882 - Bad Ischl, Áustria, 1957). Escritor e matemático (assim como o mais recente Péter Esterházy). Trabalhou em uma companhia de seguros, escreveu onze romances. Também fugiu dos nazistas - foi para Israel.
3) Gustav Meyrink (Viena, 1868 - Starnberg, 1932). Filho ilegítimo de um barão com uma atriz. Profundamente ligado a tudo que dizia respeito a ocultismo, satanismo e mistérios do tipo - praticava ioga e traduziu para o alemão o Livro dos mortos. Assim como aconteceu com Hugo von Hofmannsthal, Meyrink morreu pouco tempo depois do suicídio de seu primogênito.
4) Charles Robert Maturin (Dublin, 1782-1824). Autor de um romance sobre um homem que faz um pacto com o demônio - Melmoth the Wanderer. Maturin era um pastor anglicano - e era também um parente distante de Oscar Wilde. Balzac gostava tanto do livro de Maturin que chegou a escrever uma espécie de continuação: Melmoth réconcilié, de 1835.
5) Ernst Weiss (Brno, 1882 - Paris, 1940). Serviu no Exército como médico. Continuou na profissão depois da guerra mas, com a chegada do nazismo, teve que abandonar tudo e fugir para Paris, onde viveu da mão para a boca. Foi amigo de Kafka e escreveu um romance sobre a cegueira psicossomática que afligiu Hitler depois da I Guerra Mundial - o livro se chama A testemunha ocular e o protagonista é identificado como "A. H.". Weiss "morreu pela própria mão", como escreveria Borges.

quarta-feira, 10 de agosto de 2011

Notas sobre a amizade

1) Penso frequentemente nessas amizades travadas a partir das dedicatórias, das epígrafes. Sempre me intrigou o fato de Valéry ter dedicado seu estudo sobre o método de Da Vinci a Marcel Schwob - uma estranheza gerada pelo simples fato de que não reconheço Schwob no estilo de Valéry. Talvez aquele breve dedicatória seja o único rastro que sobreviveu de toda uma constelação de atravessamentos de duas vidas: Valéry, Schwob e suas conversas (eles passeavam? bebiam juntos? conversavam perto da lareira?).
2) Schwob também marcava suas amizades em seus textos: se você prestar atenção, verá que todos os contos de Le roi au masque d'or contém um nome. São todos amigos de Schwob, e alguém poderia passar uma vida inteira lendo e relendo os contos de Schwob para, em seguida, ler e reler as obras de cada um dos autores citados (Anatole France, Oscar Wilde, León Daudet, Paul Arène...), encontrando, depois de anos de trabalho árduo, as mais impressionantes linhas de contato.
3) Essa junção entre amizade e leitura é também a obsessão de Ricardo Piglia: tornar-se de tal forma amigo do texto que, durante o comentário, durante a glosa, há o relato da vida daquele que escreve (a crítica como autobiografia). Em uma passagem de Blanco nocturno, Emilio Renzi conversa com Sofía Belladona, uma das gêmeas. Ela diz: minha mãe diz que ler é pensar; por acaso, sempre por acaso, descobrimos o livro onde está claramente expresso o que estivera, confusamente, ainda não pensado por nós. Certos livros parecem objetos de nosso pensamento, parecem que nos estão destinados. Para encontrá-lo, requer-se uma série de acontecimentos encadeados acidentalmente para que afinal possamos ver a luz que, sem saber, estamos procurando. Dessa forma, a leitura definitiva acontece da mesma forma que a amizade definitiva: caminhos insondáveis que parecem absurdamente simples depois de revelados.