segunda-feira, 22 de abril de 2024

Texto, contexto


Em seu livro sobre Juan Rulfo, Cristina Rivera Garza relata uma visita sua (da narradora?) a um arquivo, o Archivo Histórico del Agua, na Cidade do México, onde busca fotografias de Rulfo publicadas originalmente em um conjunto de fascículos publicados pelo governo (Rulfo fez parte de uma comissão criada para documentar as características materiais, culturais e espirituais dos povos indígenas da região da bacia hidrográfica do Papaloapan, que seriam desalojados para a construção de uma represa). Ao ver as fotografias de Rulfo no contexto original - nos documentos da comissão -, Rivera Garza comenta que passou a ver com novos olhos as ideias de Marcel Duchamp e Charles Bernstein sobre a arte  (ou seja, que o contexto e a recepção, a leitura e o "contato" desempenham papeis centrais na mutação de um objeto ou prática em uma obra de arte.

O parágrafo no qual Rivera Garza dá conta dessas ideias já começa com uma citação de Bernstein: "assegurava Charles Bernstein", escreve ela, "que um poema é 'qualquer construção verbal que se designe como poema. A designação de um texto verbal como poema assinala mais uma maneira de ler que uma avaliação da qualidade do trabalho" (Había mucho humo, neblina o no sé qué, p. 118-119). Bernstein já está na epígrafe do livro, de modo que o leitor o reencontra sabendo de sua aparição anterior (uma repetição que é transformada pelo contato com Duchamp e Rulfo). Na epígrafe, Rivera Garza cita, em inglês, um trecho do ensaio/conferência "State of the Art", de Bernstein, de 1990 - entre outras coisas, ele escreve: The names that we speak are no more our names than the words that enter our ears and flow through our veins, on loan from the past

segunda-feira, 8 de abril de 2024

Rulfo, Rolleiflex



No livro sobre Rulfo (Había mucha neblina o humo o no sé qué), a aproximação que Cristina Rivera Garza faz, contudo, não é com Leskov e Benjamin (como comentei aqui), e sim com Kafka: Rulfo, assim como Kafka, viaja constantemente a trabalho - e a partir dessa comparação, desse contato, emerge um segundo eixo de interesse: a técnica e a tecnologia, as inovações nos dispositivos e nas próteses, algo que se encontra em Kafka (seu interesse pelo cinema, a máquina de escrever Oliver 5 que usava no trabalho) e também em Rulfo: Rivera Garza escreve que Rulfo tirou, ao longo da vida, mais de sete mil fotos, das quais apenas 500 foram publicadas (a publicação do primeiro conto de Rulfo é de 1945; a publicação das suas primeiras fotos, 1949; ele começou com uma Leica 4 x 4 e depois teve três Rolleiflex 6 x 6, uma delas comprada na Alemanha - a obra fotográfica de Rulfo começa antes da literária e continua depois de 1955, quando ele abandona a literatura).

quarta-feira, 3 de abril de 2024

Trabalho, escuta


Cristina Rivera Garza, em seu livro Había mucha neblina o humo o no sé qué (uma investigação narrativa e ensaística sobre Juan Rulfo), enfatiza, em primeiro lugar, a dimensão de Rulfo como trabalhador - as atividades nas quais se envolveu para ganhar dinheiro, sustentar a família, etc - e, em paralelo, sua disposição (por vezes, quase uma necessidade) para percorrer o interior do México: nesse ponto específico, o Rulfo de Rivera Garza se aproxima (se mistura) ao Nikolai Leskov de Walter Benjamin, aquele que aparece no ensaio sobre o "narrador" ou "contador de histórias", já que Leskov também ligava o trabalho cotidiano à literatura: Rulfo e Leskov, viajando a trabalho (o primeiro foi agente de vendas da empresa Goodrich-Euzkadi; o segundo, caixeiro-viajante), escutavam histórias e se colocavam à disposição dos indivíduos anônimos que encontravam pelo caminho (mais tarde transformando o escutado em escrito, em ficção, em obra).