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sábado, 9 de dezembro de 2023

Punhal/revólver



1) Em seu conto "La muerte y la brújula", Jorge Luis Borges apresenta a morte de Daniel Simó Azevedo, "hombre de alguna fama en los antiguos arrabales del norte", um dos homens assassinados por Scharlach para envolver seu inimigo, Lönnrot, em uma trama detetivesca que é, ao mesmo tempo, uma armadilha. Ainda sobre Azevedo, Borges informa que ele era o último representante de uma geração de bandidos que sabia o manejo do punhal, mas não o do revólver. Essa passagem de uma ferramenta de trabalho a outra - do punhal para o revólver - não é apenas um dado material, mas uma espécie de símbolo usado por Borges para falar de várias metamorfoses condensadas: a imigração, a cidade em sua relação com o campo e as fronteiras, a honra, a lei, as comunidades masculinas (a passagem do punhal para o revólver é o signo de uma transformação, talvez de uma decadência).  

2) Com isso em mente, ganha nova ressonância uma cena de Roberto Arlt em seu conto "El jorobadito": o narrador, um sujeito esquisito que duvida do amor de sua noiva, um dia conhece em um café um anão corcunda que lhe parece profundamente odioso; ele tem a absurda ideia de levar o anão corcunda à casa da noiva e fazer com que ela o beije - beijar o anão corcunda, para o narrador, seria a prova de amor que dissiparia todas suas dúvidas. Quando o plano dá errado e a noiva recusa o beijo, o jorobadito, evidentemente, aproveita seu protagonismo, saca um revólver, ameaça a todos na casa da noiva e exige seu beijo: é a chance que a sociedade tem de pagar os anos de abuso que sofreu (o aparecimento do revólver é apenas o clímax da construção de um personagem odioso e perigoso). 

3) Em Borges, a passagem do punhal para o revólver aparece como um problema, como uma mudança que significa a morte de um mundo; em Arlt, o problema sequer se coloca - o revólver já é um adereço indispensável, perfeitamente integrado à narrativa e ao mundo que explora. Essa dinâmica seria uma possível confirmação textual da hipótese levantada por Ricardo Piglia em seu romance Respiração artificial de que Borges seria o último escritor argentino do século XIX e Arlt, por sua vez, o primeiro do século XX: a passagem do punhal para o revólver, em outros termos, seria também a passagem do século XIX para o século XX.

quarta-feira, 23 de novembro de 2022

Transatlântico


1) "É divertido notar que Borges e Gombrowicz se assemelham na celebração comum da grandeza do provincianismo que obriga a construir para si um universo próprio e uma língua. Ele ri de si mesmo quando se expressa sobre Transatlântico, texto para o qual escolheu um registro de língua quase intraduzível e uma temática que ataca diretamente os valores nacionais de seus raros leitores potenciais. Quando qualifica a produção dos grandes autores locais de 'literatura nacional', ele mostra o pouco interesse que lhes dedica. Claro, terá uma relação quase fraterna com Ernesto Sábato e uma real admiração por Virgilio Piñera, um escritor cubano que elege Buenos Aires para estadia, em diversas ocasiões, entre 1946 e 1958, e que tão cedo soube perceber o valor dos textos de seu amigo polonês.

2) "Mas, em geral, não entretém reais relações com eventuais contraditores ou cúmplices. Compreende-se que não busque a companhia de um Roger Caillois, exilado como ele em Buenos Aires durante a guerra e símbolo dessa cultura parisiense tão apreciada pelas elites locaias, mas que, em contrapartida, reconheça como irmãos de sangue Macedonio Fernández, Juan Carlos Onetti (o formidável escritor uruguaio vive na Argentina de 1945 a 1955) e, sobretudo, Roberto Arlt. Macedonio, como simplesmente é chamado pelos amigos, é um escritor excêntrico que marcou Borges. Poeta e romancista, será reconhecido somente após sua morte, em boa parte graças ao trabalho de seu filho Adolfo de Obieta, amigo de Gombrowicz.

3) "O escritor exilado parece ter apreendido o espírito de Macedonio e sabe quem ele é. Diz, por exemplo, o excêntrico argentino: 'A vida é o terror de um sonho'. Como nosso polonês, Macedonio engaja-se inteiramente em uma aventura extrema e sem concessões. Eles são tomados pela mesma febre, impulsionados pelas mesmas forças, mas não podem se cruzar: avançam, cada um, por um caminho solitário, obscuro e ainda não explorado" (Philippe Ollé-Laprune, Américas, um sonho de escritores, trad. Leila Costa, Estação Liberdade, 2022, p. 102-103).

quarta-feira, 20 de abril de 2022

Vida porca



1) Lendo o romance de Massimo Bontempelli (1878-1960), La vita intensa, publicado em revista ao longo do ano de 1919 (e como livro no ano seguinte), encontro o seguinte trecho: Pensai anche vagamente di scrivere un romanzo di costumi intitolato appunto La porca vita, ma i tempi non erano maturi per un titolo di quel genere (p. 87, Mondadori, 1998). O título imaginado desse possível romance surge quando o narrador-protagonista fala da "oração" que realiza todos os dias antes de dormir e depois de acordar: "quanto tempo ainda deve durar essa vida porca?". É revelador também que a interdição ao possível título decorre dos "tempos", ou seja, da época, da sociedade, dos costumes, que não estariam "maduros" para acolher uma obra com esse título.

2) Foi exatamente esse o argumento utilizado por Ricardo Güiraldes para convencer Roberto Arlt (que na época trabalhava como seu secretário) a não utilizar a expressão La vida puerca como título de seu primeiro romance, de 1926 (que se chamará El juguete rabioso e que é dedicada a Güiraldes), ou seja, que não era adequado aos tempos e costumes. Além da relação subterrânea entre os significantes escolhidos por Bontempelli e Arlt (que de certa forma cristalizam em linguagem uma sensação compartilhada de angústia, desamparo e escassez típica do primeiro pós-guerra), é possível notar que a expressão proposta por Arlt já é uma monstruosidade linguística dentro do espanhol, cujo objetivo é resgatar e ressignificar uma imprecação dos pais e avós imigrantes (porca vita!). 

3) Outro aspecto interessante e antecipatório de La vita intensa é que, no último capítulo, Bontempelli faz todos os personagens reaparecerem para confrontar o narrador-protagonista, evocando os Seis personagens de Pirandello (cuja primeira apresentação foi em maio de 1921). A trilha experimental de Bontempelli foi retomada décadas depois por Italo Calvino, que publica em 1979 Se um viajante numa noite de inverno: a estrutura meta-narrativa feita de dez romances-capítulos é a mesma, com seções que não só imitam diferentes gêneros e discursos (como faz Joyce no Ulisses) mas que também negam e cancelam o que foi anteriormente afirmado e postulado (como fará Vila-Matas em O mal de Montano). 

segunda-feira, 14 de março de 2022

Calle Venezuela



1) Em seu romance de 2004, La straduzione (Milão: Rizzoli), dedicado à reconstrução da vida de Gombrowicz na Argentina, Laura Pariani comenta extensamente as dificuldades econômicas do escritor polonês no Novo Mundo (os 96 dólares que tinha consigo quando chegou duraram seis meses). De forma mais ampla, reflete também sobre a relação sempre tensa entre escritura e dinheiro (no contexto argentino, é possível pensar em Aira e no dinheiro falso; um pouco mais lateralmente, nas reflexões de Freud sobre as relações entre a merda e o dinheiro).

2) Pariani descreve o quarto de pensão de Gombrowicz (p. 60), com móveis que foram aparecendo pouco a pouco, dados por conhecidos quando se mudavam: um sofá, duas poltronas pequenas, uma mesinha para a máquina de escrever, restos de vidas e casas alheias. O quarto fica uma pensão da calle Venezuela, onde Gombrowicz chegou em 1945 e ficou até 1963, quando voltou para a Europa (onde morre em 1969). A autora faz um paralelo com Onetti, que vivia de forma semelhante na avenida Independencia: com a mulher, usavam uma Olivetti para os dois: ele escrevia à noite, até as sete da manhã, quando a mulher acordava e posicionava a máquina de escrever no banheiro, onde, sentada no chão, trabalhava datilografando traduções (Pariani não especifica, mas está fazendo referência à terceira mulher de Onetti - foram quatro no total -, Elizabeth María Pekelharing, sua colega na Agência Reuters, com quem se casa em 1945).

3) Outro exemplo evocado por Pariani é Roberto Arlt - que já havia aparecido páginas antes, na evocação do primeiro encontro com Gombrowicz, depois de um jantar do qual os dois saíram mais cedo (e foram juntos à estação esperar o trem). E ela cita uma frase de Arlt (p. 61): "Faremos nossa literatura não falando, mas escrevendo, em orgulhosa solidão, livros que carreguem a violência de um cruzado na mandíbula" (o original está no prólogo de Arlt a Los LanzallamasHay que escribir páginas que tengan la fuerza de un cross a la mandíbula y que los eunucos bufen). 

segunda-feira, 23 de agosto de 2021

Nomes, delitos


1) "No Moreira de César Aira o popular 'mau', a violência, é o signo da vanguarda literária e da revolução, e a morte no prostíbulo, o momento socrático do texto: o momento da verdade literária, política e psicanalítica. Na contracapa, o livro tem esta inscrição: 'Volta neste romance o mais célebre dos sujeitos maus. Rodeado por seus discípulos, Juan Moreira aguarda a chegada da morte; enquanto isso, discutem sobre a imortalidade da produção (Moreira diz sempre a verdade). O romance desliza e se transfigura sobre cenas multiplicadas, mas os panos de fundo da Mãe Natureza impedem que se veja seu desenlace'. No texto, Moreira cita Freud e exorta: 'Sejam marxistas' (p. 61) e vence quatrocentos soldados, enquanto Felisa, a prostituta, fala do telefone em alemão: '- Wo es war, soll Ich werden (Se ela vai, eu não vou)' (p. 76). Os soldados dispersam-se, primeiro em 'bandos', depois em 'hordas'. E a história encerra-se sem narrar a morte" (p. 252)

2) "Boquitas pintadas não somente é 'o folhetim dos anos 60' pela ideologia da transgressão (a equivalência metafórica entre a violação dos tabus sexuais e a violação das normas discursivas que hoje associamos à teoria da textualidade), mas também, e sobretudo, porque exibe a passagem de uma 'cultura da biblioteca' a uma 'cultura dos meios' audiovisuais (essa passagem é o que Manuel Puig representa nitidamente na literatura argentina). Um texto sobre os signos e a circulação; sobre a circulação das cartas e dos corpos e seu fim na equivalência cremar/queimar: as cartas se queimam e os corpos mortos 'se queimam em contato com o muro'. E também é um texto fortemente marcado, que se auto-representa constantemente em seu interior. É também um folhetim dos anos 60 pelo questionamento da categoria de 'autor' e pela proliferação de narradores e cronistas que desmentem a existência de uma posição fixa de onde emanaria o discurso" (p. 366-367)

3) "Outros textos de Borges da década de 1940 com nomes no título, além de 'Pierre Menard', mostram delitos da verdade (delações, falsas identidades ou nomes, pactos fraudulentos ou juramentos falsos, e no campo da escritura, plágios e pseudoepigrafismos): 'La búsqueda de Averroes', 'Abenjacán el Bojarí, muerto en su laberinto', 'La forma de la espada' (que é a tradução do nome Moon como delator escrito em seu rosto), 'Funes el memorioso', 'Examen de la obra de Herbert Quain', 'Biografía de Tadeo Isidoro Cruz (1829-1874)' e 'Emma Zunz'. Os contos de Borges com títulos de nomes giram ao redor dos delitos da verdade e da legitimidade, e são políticos ou incluem alguma referência política. E sua política é, também, ambivalente. Incluem outras línguas orais ou escritas, estrangeiras, e delitos verbais como nomes falsos, delações e pactos fraudulentos que sustentam e acompanham a ficção. Em todos eles se combinam crônica e confissão, discursos narrativos da verdade (como em Los locos-Los monstruos [de Roberto Arlt])" (p. 398)

(Josefina Ludmer, O corpo do delito: um manual, trad. Maria Antonieta Pereira, Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2002)

sexta-feira, 20 de agosto de 2021

Conspiração e discurso


1) Quando Roberto Arlt escreve e publica seus romances - fim da década de 1920, início da década de 1930 - cria para si um espaço dentro de uma rede complexa de textos e ficções que lidam com a simulação, os grupos clandestinos, a sabotagem, a falsificação de dinheiro, os gestos extremos do "terrorismo" e assim por diante (algo que reverbera e atinge seu clímax na frase célebre de Brecht, cunhada nessa mesma época: O que é roubar um banco comparado com fundá-lo?): os anarquistas de Dostoiévski (Os demônios, 1871) e de Conrad (O agente secreto, 1907), os conspiradores de André Gide (Os moedeiros falsos, 1925), as quadrilhas em Alfred Döblin (Berlin Alexanderplatz, 1929).

2) Expandindo um pouco a questão é possível aproximar Arlt também de Fernando Pessoa (morto em 1935) e Pirandello (morto em 1936), especialmente pelo viés da "simulação" e do "embuste identitário" (não por acaso os dois também se identificaram com elementos fascistas da época). Relembrando o ensaio de Jameson, comentado dias atrás, sobretudo sua discussão sobre os filmes de máfia (a redução do "perigo" a grupos específicos, impedindo a reflexão sobre o "perigo" maior, englobante, que é justamente - e novamente - o banco, o capitalismo), o insistente ressurgimento dos "anarquistas" e "conspiradores" nessas ficções indica a necessidade estrutural de um contra-discurso, de um conjunto de possibilidades ou vias de escape diante da aparente inexorabilidade do "progresso" ou mesmo da "cronologia" (a atenção se volta aos grupos atípicos para que não se pense na falha sistêmica que requisita sua emergência).

3) Não só pela via dos conspiradores é possível aproximar Arlt e Dostoiévski, mas também pela via da captura e do registro do discurso dos conspiradores na ficção (e o relacionamento conflitivo desse discurso com outros, numa espécie de estratificação ideológica). Quem possibilita a triangulação entre Arlt, Dostoiévski e mescla heterogênea de discursos na ficção é Bakhtin: no mesmo ano de lançamento de Los siete locos, 1929, Bakhtin publica seu primeiro trabalho de fôlego, "Problemas da obra de Dostoiévski" (posteriormente reformulado em 1963 como Problemas da poética de Dostoiévski), no qual introduz o conceito de "dialogismo" (cada personagem, e cada voz implícita no diálogo interno de um personagem, é uma outra consciência que nunca se torna meramente um objeto para o autor ou qualquer outro personagem ou voz).

sexta-feira, 13 de agosto de 2021

Corpo e política


1) No epílogo de Los lanzallamas, o "cronista" responsável pela narração (ou seja, o jornalista que recebe Remo Erdosain em sua casa e ouve sua confissão ao longo de três dias) conta o que aconteceu com Erdosain depois de seu suicídio no trem. Chama a atenção a reivindicação do cadáver do "feroz assassino", como dizem as manchetes: "foi fotografado cento e cinquenta e três vezes no espaço de seis horas"; na delegacia, um "ancião respeitável", "pai do Chefe Político do distrito", cospe no rosto do cadáver e diz: Anarquista, hijo de puta. Tanto coraje mal empleado.

2) O destino dos cadáveres tem sido um tema recorrente na literatura argentina: em 1998, Paola Cortés Rocca e Martín Kohan publicam Imágenes de vida, relatos de muerte: Eva Perón: cuerpo y política, um livro sobre o mais famoso desses cadáveres, comentando uma série de textos que dele se ocuparam - os dois romances de Tomás Eloy Martínez; a peça de Copi de 1969, Eva Perón; o conto de Borges, "El simulacro", publicado originalmente em 1956 (hoje no livro El hacedor); "Esa mujer", conto de Rodolfo Walsh (do livro Los oficios terrestres, de 1965); "Eva Perón en la hoguera", poema de Leónidas Lamborghini; "El cadáver de la Nación", poema de Néstor Perlongher; "La señora muerta", conto de David Viñas publicado no livro Las malas costumbres, de 1963, e assim por diante.

3) "Uma tarde Juan C. Martini Real me mostrou uma série de fotos do velório de Roberto Arlt. A mais impressionante era uma tomada do caixão pendurado no ar por cabos e suspenso sobre a cidade. Haviam armado o caixão no quarto dele, mas tiveram de retirá-lo pela janela com aparelhos e roldanas porque Arlt era grande demais para passar pelo corredor. Aquele caixão suspenso sobre Buenos Aires é uma boa imagem do lugar de Arlt na literatura Argentina. Morreu aos quarenta e dois anos e sempre será jovem e sempre estaremos tirando seu cadáver pela janela" (Ricardo Piglia, Formas breves, trad. José Marcos Mariani de Macedo, Cia das Letras, 2004, p. 33).

sábado, 31 de julho de 2021

A simulação


1) Los siete locos, de Roberto Arlt, lançado em 1929, articula em dois níveis distintos e complementares uma poética do engano, da falsidade e da simulação: em primeiro lugar está o nível da narração, do modo como a história é contada, pois a voz narradora às vezes se identifica com um "eu" que organiza as falas de Erdosain e os fatos da trama, mas frequentemente opera também em um registro onisciente, panorâmico (além disso, uma série de notas são dispostas ao longo do romance fazendo referência a eventos futuros, quando personagens já estão mortos ou presos - além de indicar (como no caso do membro militar do complô do Astrólogo, o Major, que se revela na trama como um farsante mas que a nota afirma que ele é, de fato, o militar que afirma não ser).

2) O segundo nível diz respeito à falsidade e simulação constante no comportamento dos personagens, algo que Arlt cuidadosamente marca tanto na exterioridade quanto na interioridade: os sonhos, os delírios e os devaneios são muito frequentes, fazendo com que o tecido da "realidade" seja contaminado por esse movimento incessante de Erdosain em direção ao devaneio (ele está sempre imaginando situações possíveis, encontros, reencontros e diálogos ideais); na dimensão cotidiana e imediata das relações a simulação também é central - seja no casamento, seja nas relações entre "amigos" (o "amigo" que diz a Erdosain que o denunciou em seu trabalho para ficar com sua mulher), seja nas relações "políticas" do grupo revolucionário do Astrólogo e do Rufião Melancólico (que sempre faz questão de marca sua posição ambivalente, sempre um pouco dentro e um pouco fora).

3) Arlt capta essa potência da simulação na literatura dos cem anos anteriores, seguindo uma linha muito clara de afinidades eletivas: Poe (que em 1827 já publica poemas intitulados "Um sonho", "Imitação", "Espíritos dos mortos"), Baudelaire (La Fanfarlo, de 1847), Dostoiévski (não só as "memórias do subsolo" de 1864, mas toda a evocação do submundo anarquista em Os demônios, de 1871), Huysmans (o excêntrico Jean des Esseintes de À rebours, em 1884), Oscar Wilde (o artista Dorian Gray que se torna assassino, 1890), Nietzsche e tantos outros (o precursor argentino decisivo, argumenta Josefina Ludmer em O corpo do delito, é Soiza Reilly e seu La ciudad de los locos, de 1914).  

terça-feira, 30 de março de 2021

A carta da Rainha


1) Não é por acaso que a "carta roubada" de Edgar Allan Poe (1844) contenha sensíveis segredos de ordem tanto pessoal quanto política (o Ministro rouba a carta do amante da Rainha): como será o caso também com Joseph Conrad algumas décadas depois, a história pessoal se mescla à história nacional/imperial, fazendo com que a dicotomia "público x privado" comece pouco a pouco a se esfarelar (nessa caminho estará também um contemporâneo de Conrad, nascido um ano antes, Sigmund Freud: sua investigação do inconsciente visa problematizar essa mesma naturalização impossível de uma separação entre público e privado). 

2) Muitas dessas linhas de força estão condensadas naquilo que Ricardo Piglia chamou de "teoria do complô", passando por Borges e Roberto Arlt: a literatura força sempre diante do real uma narração alternativa, desviada e desviante, levando o fingimento à superfície de uma performance que se quer veraz, convincente (uma glosa de Fernando Pessoa: o poeta finge que é dor a dor que deveras sente). A partir da emergência da carta roubada de Poe, a interpretação passa a duvidar da condição imediata do mundo, refazendo permanentemente seus processos e suas escolhas: já não é mais sustentável tomar a realidade das coisas como fato, já não é sustentável acreditar que o que se mostra aos olhos está livre de suspeitas.

3) A cena da carta roubada de Poe (que mesmo abertamente visível insiste em sua invisibilidade; que mesmo acessível de forma até ingênua insiste em sua inacessibilidade) antecipa a clivagem entre as palavras e as coisas que Foucault comentará mais de cem anos depois (por baixo das palavras só existem palavras, como dirá Starobinski a partir das cadernetas inéditas de Saussure). Justamente porque é feita de "palavras" reveladoras a carta é perigosa e se constitui como "coisa"; sua condição de "coisa", de artefato perigoso, contudo, não é determinada pelo sentido específico das "palavras" que contém - sua existência como "coisa", portanto, está simultaneamente garantida e ameaçada pelo teor das "palavras" que a formam.   

quinta-feira, 20 de agosto de 2020

Epígrafe


"Na epígrafe de Nombre falso, Piglia atribui a Arlt uma sentença equívoca, 'só se perde o que nunca se teve', tomada de um clássico borgiano: 'Nova refutação do tempo'. A atribuição errônea é, neste caso, deliberada e está a serviço de uma teoria da produção textual muito consistente para que um relato possa dramatizá-la com elegância. O que Piglia talvez não soubesse é que a sentença de Borges traduz outra, de Friedrich Schlegel, 'Aquilo que podes perder nunca te pertenceu', com a qual se encerra um dos 'Fragmentos do Athenaeum', o 338. Acabei de descobrir e não resisti ao impulso de avisar"

Alberto Giordano, El tiempo de la convalecencia, Rosario, Ivan Rosado, 2017, p. 67 

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"Vou pôr uma frase de Borges na abertura do meu livro Nome falso, mas atribuí-la a Roberto Arlt: 'Só se perde o que realmente não se teve'. Essa frase não faz mais do que sintetizar o que para mim é o 'tema' central do livro: as perdas" (18 de setembro de 1975)

Ricardo Piglia, Os anos felizes: diários, volume 2, trad. Sérgio Molina, Todavia, 2019, p. 434

sexta-feira, 19 de julho de 2019

Assinatura

"Tenho o mau gosto de estar maravilhado por ser Roberto Arlt", escreve Ricardo Piglia, indicado na epígrafe de A vida como literatura de Silviano Santiago. Piglia, leitor de Arlt, se apropria do nome próprio deste último em 1975 (em seu livro Nome falso); Silviano Santiago, leitor de Graciliano Ramos, repete o procedimento em 1981 (com Em liberdade); e, finalmente, em 2006, em A vida como literatura, é o nome próprio "Silviano" que é posto em questão, agora na leitura que se faz de Cyro dos Anjos.
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No ensaio sobre As afinidades eletivas de Goethe (concluído em 1922), no qual versa também sobre a escolha feita por Goethe dos nomes dos personagens ("Dificilmente haverá em qualquer outra literatura uma narrativa da extensão das Afinidades eletivas em que se encontrem tão poucos nomes"), Walter Benjamin escreve: Nada vincula tanto o ser humano à linguagem quanto seu nome. O nome funda a existência - toca tanto a signatura (como mostra Agamben em Signatura Rerum) quanto a arkhé (a arqueologia dos discursos e dos enunciados, a partir de Nietzsche, Freud, Foucault, que busca não a exaustão da origem, mas a multiplicidade dos começos).


Assinar é estabelecer um parentesco e um pertencimento, é ligar o caráter intangível da subjetividade e da identidade à materialidade do traço, da grafia, da tinta e do papel. A assinatura é mais do que o nome próprio - é a junção do nome próprio com o rastro possível de um corpo, de uma performance, uma atuação, uma imposição motora (empunhar, escrever, assinar). No sétimo episódio da terceira temporada de Mad Men, vemos Don Draper assinar seu nome em um contrato, algo que até então ele sempre recusou - porque reconhece que a assinatura é uma abertura, é uma performance de entrega, de abertura, de vulnerabilidade. A assinatura de Don Draper é também uma tentativa de reassumir o protagonismo, já que no mesmo episódio duas outras pessoas sentam em sua cadeira, atrás de sua mesa, dentro de sua sala (ocupando o lugar de um morto, como Agamben define a autoria). 

quarta-feira, 16 de maio de 2018

Normas românticas

Detalhe da capa da primeira edição de O ajudante, romance de Walser
Nesta primeira publicação de Facundo em livro, Sarmiento bem que podia ter corrigido os erros que os críticos encontraram ao ler a obra em partes no El Progreso. Não o fez, como tampouco escreveu esta segunda versão melhorada que anuncia na introdução. Sarmiento nunca corrigia; se retomava um texto, não era para revisá-lo, mas para escrever outro livro. Portanto Facundo é, desde o início, texto definitivo, fiel às normas românticas da inspiração e da improvisação, consciente de suas falhas e até orgulhoso delas (em nota: Em uma famosa carta a seu amigo e leitor Valentín Alsina, publicada na segunda edição de Facundo, de 1851, é evidente a cautela com que Sarmiento fala de revisões e sua consciência das vantagens de deixar o livro em sua forma original e "informe").  

(Sylvia Molloy. Vale o escrito: a escrita autobiográfica na América Hispânica. Trad. Antônio Carlos Santos. Chapecó: Argos, 2003, p. 231).
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1) Walter Benjamin, em seu ensaio sobre Robert Walser, escreve: "Walser nos confronta com uma selva linguística aparentemente desprovida de toda intenção e, no entanto, atraente e até fascinante, uma obra displicente que contém todas as formas, da graciosa à amarga". Aparentemente desprovida de toda intenção, obra displicente.
2) Benjamin também menciona o fato de Walser não revisar seus textos, e comenta: "escrever e jamais corrigir o que foi escrito constitui a mais completa interpretação de uma extrema ausência de intenção e de uma intencionalidade superior". Existe em Walser um “pudor linguístico, tipicamente camponês. Assim que começa a escrever sente-se desesperado”. O ato da escrita obscurece a significação abstrata do texto para Walser, até o ponto da ficção se tornar caligrafia. (Benjamin, Magia e técnica, arte e política. Trad. Sérgio Paulo Rouanet. Brasiliense, 1998, p. 50-53).
3) As normas românticas da inspiração e da improvisação, mencionadas por Sylvia Molloy no caso de Sarmiento, parecem se aplicar também ao caso de Walser, profundamente imbuído (assim como Benjamin) do espírito romântico alemão dos dois séculos anteriores (que chegará a Sebald via Rousseau). No caso da apropriação que faz Ricardo Piglia da obra de Sarmiento, por exemplo, a intuição de Molloy também é produtiva - são essas normas que possibilitam ao Facundo sua forma "informe", sua liberdade com os gêneros e os discursos (algo que Piglia reinventará com seu romance-ensaio sobre Roberto Arlt, Nome falso, e especialmente com Respiração artificial).  

terça-feira, 26 de abril de 2016

Poloneses, 6

Virgilio Piñera


Em Formas breves, Ricardo Piglia apresenta um ensaio chamado "O romance polonês", originalmente uma conferência de 1986 em um evento sobre "o romance argentino". Piglia fala, naturalmente, de Gombrowicz, da tensão criada por Gombrowicz entre o espanhol, o polonês e o francês - a primeira uma língua que ele mal conhecia, a segunda uma espécie de língua pura, apartada, usada para a escrita, e a terceira funcionando como elemento condutor de uma à outra. "O Ferdydurke 'argentino' de Gombrowicz", escreve Piglia, "é um dos textos mais singulares de nossa literatura", feito "no andar de cima do café Rex da rua Corrientes, na Buenos Aires de meados dos anos 40", Gombrowicz passando o polonês para o espanhol, "um espanhol inesperado e quase onírico", que era corrigido e ampliado por Virgilio Piñera, "representante das letras da remota Cuba", e por outros frequentadores do café; "essa equipe não sabia polonês", diz Piglia, "e os debates eram muitas vezes traduzidos para o francês, língua a que Gombrowicz e Piñera recorriam quando o espanhol já não admitia novas torções".
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Ferdydurke, 1947

O objetivo de Piglia é mostrar que categorias como "romance argentino" ou "romance polonês" de pouco valem, são essencialismos vazios que não se sustentam diante do estudo detido de casos (como diria Edward Said sobre o "orientalismo"). O romance é uma "mescla verbal, uma matéria viva", e no caso do Ferdydurke argentino - uma "tradução ruim", escreve Piglia, "no sentido em que Borges se referia à língua de Cervantes", ou seja, o espanhol de Cervantes como um tradução ruim do inglês - essa "matéria viva" envolve uma "espanhol que é forçado quase até a ruptura, crispado e artificial", parecendo uma "língua futura". Trata-se, argumenta Piglia, de um cruzamento dos estilos de Roberto Arlt e Macedonio Fernández. "Arlt, Macedonio, Gombrowicz. O romance argentino se constrói nesses cruzamentos (mas também com outras intrigas). O romance argentino seria um romance polonês: quero dizer, um romance polonês traduzido para um espanhol futuro, num café de Buenos Aires, por um bando de conspiradores liderados por um conde apócrifo. Toda verdadeira tradição é clandestina, se constrói retrospectivamente e assume a forma de um complô" (Piglia, Formas breves, Trad. José Mariani de Macedo, Cia das Letras, 2004, p. 63-69).
  

segunda-feira, 9 de novembro de 2015

Roberto Arlt, 1929

1) Em 1929, o ano de O som e a fúria, de Faulkner, e de Berlin Alexanderplatz, de Alfred Döblin, Roberto Arlt publica Los siete locos, a história do encontro de Erdosain com O Astrólogo, espécie de reencarnação do demônio, de Aleister Crowley proletário e portenho. Erdosain, como Arlt, é um inventor fracassado; não consegue transpor para o mundo material aquilo que sonha, e essa impossibilidade lhe frustra imensamente — é essa dimensão da obra e da personalidade de Arlt que mais vai fascinar Ricardo Piglia, em obras como Nombre falso (1975), La ciudad ausente (1992) ou Blanco nocturno (2010). Los siete locos fala do desejo do Astrológo de realizar uma revolução social, financiada pelos lucros de sua rede de bordéis espalhados pela Argentina. Essa sensibilidade do complô, da conspiração e da anarquia, que já está em El juguete rabioso, é fundamental na poética de Arlt e repercutirá, por exemplo, na conspiração dos cegos no romance de Ernesto Sabato, Sobre héroes y tumbas, de 1961. 
2) O dilema fundamental da obra de Arlt está em toda parte: técnica e subjetividade, sentimento e produção, invenção e brutalidade, sutileza e mecânica, todos em confronto dentro de uma percepção atormentada e fragmentada do mundo. Daí a leitura insistente que Arlt fazia de Dostoiévski, chegando ao ponto de reescrever Crime e castigo em um conto, “El jorobadito” (publicado em uma coletânea de contos de mesmo nome lançada em 1933), em que um homem narra como estrangulou Rigoletto, o corcunda do título. “Fiz um imenso favor à sociedade, pois livrei todos os corações sensíveis como o meu de um espetáculo pavoroso e repugnante”, escreve o assassino sobre seu crime, como Raskolnikóv, ou como aquele narrador das Memórias do subsolo: “Sou um homem doente, um homem mau, um homem desagradável”.
3) Para Arlt, o vício, a doença e a maldade dos seres são elementos que os ligam ao espaço que os circunda — cidades, quartos, subterrâneos, bordéis, bibliotecas, daí seu olhar tão treinado para as minúcias do cotidiano, como encontramos nas Águas-fortes. “Sem dúvida não se encontra em toda Buenos Aires um cínico da tua estampa e do teu calibre”, diz o assassino ao corcunda. Esse é o campo de ação de Döblin e também de Hermann Broch (em Os sonâmbulos sobretudo) — as prostitutas, os rufiões, os ex-presidiários — mas sobretudo de Elias Canetti e de seu Auto de fé. É impressionante notar como Roberto Arlt movimenta peças semelhantes àquelas de Canetti, e num estilo afim: violento, desencantado, por vezes brutal, frequentemente irônico e escarnecedor. Mas há um elemento perturbador em tudo isso, porque Arlt retoma os motivos de Canetti — o corcunda, a violência, a misoginia, até a tentativa de queimar uma biblioteca em El juguete rabioso— antes de Canetti publicar Auto de fé, em 1935. Algo que casa bem com a obra de Arlt, cheia de eventos mágicos, delírios e preocupações metafísicas, mas também envolvida numa deliberada reflexão artística sobre a potência do falso e da ficção.

terça-feira, 24 de junho de 2014

Wittgenstein, Tolstói

1) Na continuação do trecho citado, sobre Tolstói e o estranhamento, a ostranenie, Piglia continua seguindo as palavras da vizinha Nina, que "fumava e bebia chá, um cigarro atrás do outro, uma xícara esverdeada atrás da outra do samovar prateado" (é possível definir esse "cigarro atrás do outro" e esse "samovar" da vizinha russa como clichês? Até que ponto Piglia está jogando com as expectativas e os sinais recorrentes do gênero detetivesco, descuidado de propósito, como a "língua tosca" de Roberto Arlt, autor sempre tão colado à poética de Piglia? Pois tudo isso surge logo depois de comentar uma passagem de Tolstói que precisamente escapa do esperado - "esse detalhe liquidava toda metafísica", diz Nina, reporta Renzi, escreve Piglia, sobre uma crônica que Tolstói escreveu sobre a execução de um camponês - e gera sem dúvida um contraste a aparição desse "samovar" e desse "cigarro atrás do outro").
2) E continua: "Tolstói lutou contra a indomável profundidade demoníaca da língua materna, descrevendo os mínimos detalhes que subsistiam sob a crosta metafísica, e assim evitou a armadilha da obscura profundidade religiosa da linguagem. Seu verdadeiro discípulo foi Wittgenstein! O que não pode ser dito não se diz" (p. 88). Aqui a coisa fica mais sutil, e Piglia vai de Arlt a Borges, como tem feito desde Respiração artificial - isso porque a leitura que Nina faz de Tolstói parte de Wittgenstein, ainda que ele apareça como termo final; ou seja, é a obra de Wittgenstein que permite ler Tolstói a partir dessa luta sob "a crosta metafísica" da linguagem, é Wittgenstein quem cria seus próprios precursores.
3) Piglia volta ao contato de Tolstói com Wittgenstein mais adiante, depois de ler o Manifesto divulgado pelo terrorista: "Com essa metáfora grega [Prometeu] se encerrava o Manifesto, do qual mostrei apenas uma breve síntese. Não era o primeiro a falar desse modo. Nina, que tinha estudado a influência de Tolstói em Wittgenstein, lembrou a postura do autor do Tractatus: 'Não é absurdo acreditar, por exemplo, que a era da ciência e da tecnologia é o princípio do fim da humanidade', escrevera. 'Meu modo de pensar não é desejável nesta época, devo me esforçar e nadar contra a corrente. Talvez dentro de cem anos as pessoas aceitem essas ideias'. Acho esse 'por exemplo' delicioso, disse Nina" (p. 135). (Sabe-se, por exemplo, que Wittgenstein declarou não ter cometido suicídio durante a I Guerra Mundial por conta da leitura de Tolstói).

terça-feira, 25 de março de 2014

Goya e o corpo morto

1) Em seu livro sobre Goya, Todorov insiste na centralidade do corpo morto (despedaçado, violado, violentado) em suas gravuras, especialmente aquelas sobre os desastres da guerra. A investida de Napoleão (e a resistência espanhola, não menos cruel) é condensada nessa figura do corpo morto no campo - uma sensação e uma percepção que poucos anos depois alcançarão também a geografia da cidade, com Balzac.
2) Comentando as fotografias de Eugène Atget na década de 1920, Walter Benjamin vai falar desse ambiente propício ao crime que é a geografia da cidade, Paris, e suas ruas desertas - Benjamin condensa a história da modernidade em uma imagem negativa, em sua potência para o recebimento do corpo morto, sua vocação para o crime. Kusniewicz, em O rei das duas Sicílias, se encaixa nessa linhagem que vem de Goya ao colocar no centro do conflito da Primeira Guerra Mundial o corpo morto de uma cigana - ponto de encontro da colcha de retalhos de idiomas e ideologias que é o Império Austro-Húngaro (que será "imagem negativa" também para Joseph Roth ou Sándor Márai, sempre girando ao redor dessa ausência irremediável).
3) Em 1931, Fritz Lang lança M., o vampiro de Dusseldorf, que multiplica os corpos mortos, mantendo também a ligação com a geografia da cidade e com a ideia da ficção como elaboração e reconstrução do real (o filme é inspirado num fait divers, daí o documentalismo que o liga a Atget). A polícia é incapaz de encontrar o assassino com seus métodos (o cada vez mais rico arsenal do "paradigma indiciário" de Carlo Ginzburg, a ciência, a geometria, a química); cabe ao submundo a mobilização - ladrões, traficantes, mendigos se unem para fechar o cerco. Um poder paralelo, uma estrutura subterrânea que vive à margem da sociedade e que, de repente, ganha destaque (o tema de parte da literatura argentina do século XX, especialmente aquela que sente o fluxo dos anarquistas de 1919, como Roberto Arlt, ou Ernesto Sabato - a construção de Sobre herois e tumbas, aliás, lembra o filme/roteiro de Lang, vide a abertura que também remete a uma notícia de jornal e a mobilização do submundo (a Seita Sagrada dos Cegos) - no filme de Lang é um cego que descobre o criminoso, reconhecendo seu modo de assobiar).

sexta-feira, 4 de outubro de 2013

Nota sobre Asja Lacis

1) Em suas notas sobre literatura em um Diário, provavelmente o Diário que vem escrevendo há anos e de onde retirou fragmentos para a realização de seu último romance, El camino de Ida, Ricardo Piglia fala de Asja Lacis: "em 1923, em Berlim, Brecht conhece a diretora teatral soviética Asja Lacis, e é ela que o põe em contato com as teorias e experiências da vanguarda soviética". Como faz também no caso da "filiação tio-sobrinho", Piglia dá a Tiniánov os créditos de teorias que são de Chklóvski (é como se Piglia escolhesse representar o formalismo russo metonimicamente a partir de Tiniánov): "Brecht 'retém' o melhor da teoria literária soviética dos anos 20, em especial Tiniánov, Tretiakov, Brik, e é o único que lhe dá seguimento nos anos duros da década de 30 (...). Os escritos sobre literatura de Brecht devem ser lidos no âmbito da teoria literária inaugurada por Tiniánov e desenvolvida por Bakhtin, Mukaróvski e Walter Benjamin".
2) As coisas aconteceram a partir da intervenção de Asja Lacis: "por intermédio de Asja Lacis, Brecht conhece a teoria da ostranenie elaborada pelos formalistas russos e por ele traduzida como efeito de estranhamento (...). É notável o deslocamento operado por Brecht para mostrar a origem russa de sua teoria do distanciamento. Afirma que sua descoberta se dá em 1926, graças a Asja Lacis". Asja é importante para Brecht também atuando no palco: faz parte do elenco de sua montagem do Eduardo II, de Marlowe, e seu alemão com sotaque russo é um bem-vindo reforço à tática brechtiana do "desnudamento dos procedimentos", como escreve Piglia: "nessa inflexão russa que persiste na língua alemã está, deslocada como num sonho, a história da relação entre a ostranenie e o efeito de estranhamento". Lacis, portanto, fez muito mais do que apenas apresentar Brecht e Benjamin.
3) "Pode-se ainda apreciar a altiva e belíssima figura de Asja Lacis eternizada numa sequência de A ópera dos três vinténs, filmada por Pabst em 1931", escreve Piglia ao final de sua nota (Formas breves, tradução de José Marcos Mariani de Macedo, Cia das Letras, 2004, p. 76-77). Seria belo poder ver Asja em movimento, mas tudo indica que não passa de mais uma atribuição errônea de Piglia (como aquela do cortejo de Roberto Arlt). Mas serve sem dúvida para lembrar a aparição de Juan Rodolfo Wilcock em Il Vangelo secondo Matteo de Pasolini, em 1964 (Wilcock inclusive traduziu as obras completas de Marlowe para o italiano), ou a intensa participação de Nabokov no mundo do cinema em Berlim na década de 1920, por pouco não esbarrando em Asja e Brecht, trabalhando como extra e colaborando com Ivan Lukash na escrita de roteiros ("seguia para os subúrbios a fim de trabalhar como extra nos filmes que eram rodados na tenda de um parque de diversões, onde a luz jorrava com um silvo místico dos enormes projetores apontados como canhões sobre uma multidão de figurantes, reduzindo-os a uma lividez cadavérica", Machenka, tradução de Jorio Dauster, Cia das Letras, 1995, p. 23).   

terça-feira, 1 de outubro de 2013

Pereira e os subversivos

1) No trato com Afirma Pereira, de Tabucchi, é preciso ter em mente a dimensão do contato de Pereira com o catolicismo, que termina por moldar, até certo ponto, suas próprias escolhas intelectuais - ele contrata o jovem Monteiro Rossi para escrever necrológios de escritores católicos ainda vivos, como homenagens e celebrações desses escritores. Existe um alinhamento evidente de Pereira com certo conservadorismo católico, que é também um dos eixos do salazarismo, junto com a própria ideia de Cultura e Educação (Salazar era professor, o Professor, catedrático da Universidade de Coimbra, assim como um de seus apoiadores principais, o Cardeal Cerejeira - e aí está tudo posto e misturado, Igreja, Educação e Política). Esse alinhamento também pode ser considerado a partir da perspectiva do judaísmo histórico de Pereira, que Tabucchi avança já na nota introdutória - o que talvez explique também as reticências de Pereira e sua predisposição para o confronto e seu abandono de sua identidade portuguesa no fim do livro.
2) Quando Pereira pede um texto de celebração de algum escritor católico, Monteiro Rossi responde ou com um artigo de elogio a algum escritor revolucionário, ou com um artigo raivoso sobre algum escritor alinhado aos fascismos da época - especialmente o italiano. É possível observar uma espécie de escala da subversão operando no romance: em primeiro lugar, Pereira, banal, alienado, alheio; em segundo lugar, Monteiro Rossi, jovem misterioso, passado obscuro, ideias desconfortáveis; em terceiro e último lugar, finalmente, Marta, a namorada de Monteiro Rossi, a verdadeira Mente Subversiva por trás dos artigos raivosos e dos elogios a Garcia Lorca e Maiakóvski. Se Monteiro Rossi aparece pouco, Marta aparece ainda menos - uma sombra que percorre os desvãos da cidade, conspiradora de uma sociedade secreta revolucionária, como em Los siete locos de Roberto Arlt (publicado em 1929).
3) Marta (Mata Hari?) é uma espécie de mulher fatal, como aquelas que povoam a História abreviada da literatura portátil de Vila-Matas: "Às oito e trinta e cinco, afirma Pereira, entrou no Café Orquídea. O único motivo pelo qual reconheceu Marta naquela moça magra, de cabelo curto e loiro, que estava perto do ventilador, foi ela estar com o mesmo vestido de sempre, de outro modo não a teria reconhecido de jeito nenhum. Marta parecia transformada, aquele cabelo curto e loiro, de franjinha e atrás das orelhas, dava-lhe um ar traquinas e estrangeiro, francês quem sabe. E ademais devia ter emagrecido pelo menos uns dez quilos" (Afirma Pereira, tradução de Roberta Barni, Cosac Naify, p. 101). Marta tem algo de Lady Griffith, a sibilina personagem de Gide em Os moedeiros falsos (francês, católico), ou melhor: Marta tem algo da irrequieta e subversiva Asja Lacis, que justamente nesse mesmo ano de 1938, talvez entre o encontro de Marta com Pereira e a morte de Monteiro Rossi nas mãos da polícia de Salazar, nesse mesmo ano de 1938 Asja é presa pela KGB e enviada ao Cazaquistão, onde ficará presa por dez anos.   

sábado, 11 de fevereiro de 2012

Mohammed Tughlak

1) Elias Canetti, em Massa e Poder, conta a história de Mohammed Tughlak, Sultão de Délhi, grande sábio de todas filosofias e ciências conhecidas e, ao mesmo tempo, sanguinário assassino de seu próprio povo. Por volta de 1335, o Sultão Tughlak decide invadir a China: arma um exército de cem mil homens para cruzar a cadeia de montanhas do Himalaia. A missão era conquistar a face chinesa do maciço de rocha, submeter a população selvagem às ordens do Sultão e estabelecer um ponto seguro de passagem e um posto avançado para as tropas que ainda estavam por vir. Dessa primeira leva de guerreiros, que encontrou apenas o desastre em seu caminho, retornaram a Délhi apenas dez sobreviventes: em sua desilusão, o Sultão matou cada um deles, deixando os cadáveres na frente do palácio durante três dias. Uma legítima expedição napoleônica avant la lettre.
2) Mas o desejo de conquistas do Sultão não diminuiu, escreve Canetti. Para seguir adiante, Tughlak precisava de dinheiro e, diante disso, teve uma ideia que se mostrou bastante estúpida: tinha ouvido falar do papel moeda dos chineses e resolveu fazer algo parecido com o cobre, mandando cunhar uma quantidade enorme de moedas nesse material, conferindo-lhes, em seguida, valor equivalente ao das moedas de prata. O Sultão determinou que ouro, prata e cobre eram equivalentes e que as novas moedas seriam o padrão para as compras e vendas. A partir disso, a casa de cada hindu tornou-se uma oficina para a fabricação de dinheiro falso - o reino logo afundou-se numa quantidade inaudita de dinheiro falso, os padrões já não serviam de nada, tampouco os parâmetros, regras ou controles fiscais. Uma legítima aventura de César Aira (ou Arlt, ou Piglia) avant la lettre.
3) Quando se deu conta do estrago, o Sultão, cheio de cólera, revogou o decreto e declarou que todos que tivessem moedas de cobre deviam ir à tesouraria do reino, onde teriam as moedas novas substituídas pelas antigas. Milhares foram à tesouraria trocar as moedas de cobre pelas moedas de ouro e prata. As reservas do Sultão diminuem vertiginosamente. Montanhas de moedas de cobre completamente inúteis e sem valor ocupam o lugar das antigas pilhas de ouro cintilante. Em sua raiva, o Sultão não encontra outra alternativa que não ser cada vez mais hostil e cruel com seus súditos.Link

terça-feira, 6 de dezembro de 2011

A potência do falso

Sonho com um livro que seja um longo inventário do tema da falsidade na literatura: apócrifos, embustes, farsas, falsas assinaturas, encontros impossíveis, todos esses procedimentos que mesclam fato e fantasia. Uma das figuras de frente desse livro imaginário seria Ermes Marana, o tradutor que, em Se um viajante numa noite de inverno, funda a Organização do Poder Apócrifo, dedicada ao culto dos livros secretos, a favor de uma literatura de imitações, contrafações e mistificações. É importante lembrar também F for Fake, de Orson Welles, e a fantástica reconstrução que Martín Caparrós faz do roubo da Monalisa (1911) em Valfierno. Certamente uma seção reservada ao Livro dos peixes de William Gould, de Richard Flanagan, sobre o falsário que inventou a fauna aquática da Austrália durante uma temporada na prisão. Mas ainda preciso ler melhor Peter Carey: dois de seus livros são sobre o tema da falsificação, Minha vida, uma farsa, de 2003, e Roubo: uma história de amor, de 2006. Como já foi esboçado em outro lugar, há muito espaço nesse livro-por-vir para Duchamp, César Aira, Roberto Arlt e outros nomes já conhecidos.