1) Na continuação do trecho citado, sobre Tolstói e o estranhamento, a ostranenie, Piglia continua seguindo as palavras da vizinha Nina, que "fumava e bebia chá, um cigarro atrás do outro, uma xícara esverdeada atrás da outra do samovar prateado" (é possível definir esse "cigarro atrás do outro" e esse "samovar" da vizinha russa como clichês? Até que ponto Piglia está jogando com as expectativas e os sinais recorrentes do gênero detetivesco, descuidado de propósito, como a "língua tosca" de Roberto Arlt, autor sempre tão colado à poética de Piglia? Pois tudo isso surge logo depois de comentar uma passagem de Tolstói que precisamente escapa do esperado - "esse detalhe liquidava toda metafísica", diz Nina, reporta Renzi, escreve Piglia, sobre uma crônica que Tolstói escreveu sobre a execução de um camponês - e gera sem dúvida um contraste a aparição desse "samovar" e desse "cigarro atrás do outro").
2) E continua: "Tolstói lutou contra a indomável profundidade demoníaca da língua materna, descrevendo os mínimos detalhes que subsistiam sob a crosta metafísica, e assim evitou a armadilha da obscura profundidade religiosa da linguagem. Seu verdadeiro discípulo foi Wittgenstein! O que não pode ser dito não se diz" (p. 88). Aqui a coisa fica mais sutil, e Piglia vai de Arlt a Borges, como tem feito desde Respiração artificial - isso porque a leitura que Nina faz de Tolstói parte de Wittgenstein, ainda que ele apareça como termo final; ou seja, é a obra de Wittgenstein que permite ler Tolstói a partir dessa luta sob "a crosta metafísica" da linguagem, é Wittgenstein quem cria seus próprios precursores.
3) Piglia volta ao contato de Tolstói com Wittgenstein mais adiante, depois de ler o Manifesto divulgado pelo terrorista: "Com essa metáfora grega [Prometeu] se encerrava o Manifesto, do qual mostrei apenas uma breve síntese. Não era o primeiro a falar desse modo. Nina, que tinha estudado a influência de Tolstói em Wittgenstein, lembrou a postura do autor do Tractatus: 'Não é absurdo acreditar, por exemplo, que a era da ciência e da tecnologia é o princípio do fim da humanidade', escrevera. 'Meu modo de pensar não é desejável nesta época, devo me esforçar e nadar contra a corrente. Talvez dentro de cem anos as pessoas aceitem essas ideias'. Acho esse 'por exemplo' delicioso, disse Nina" (p. 135). (Sabe-se, por exemplo, que Wittgenstein declarou não ter cometido suicídio durante a I Guerra Mundial por conta da leitura de Tolstói).
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