1) No trecho de O caminho de Ida citado anteriormente, o narrador de Piglia, Emilio Renzi, está conversando com sua vizinha, uma professora aposentada de literatura russa, Nina Andropova. Segundo ela, há uma tendência nos escritores russos, "de Gógol a Dostoiévski e Soljenítsin", "a pregar e entrar em divagações religiosas", pois a língua "os leva a essas profundezas", e completa: "em russo, não existiam termos para a tipologia dos pensamentos e sentimentos ocidentais. Tudo é passional e extremo. Não se pode dizer boa tarde sem que pareça uma ameaça. Por isso é tão difícil traduzir do russo, e Nabokov se perdeu num atoleiro na sua catastrófica tradução de Púchkin. (...) Impossível! É preciso ler russo para ouvir essa misteriosa música mística".
2) Piglia, é claro, toma cuidado para marcar tudo isso como a posição pessoal de uma personagem - além disso, estamos no contexto de uma conversa entre vizinhos, com os excessos e exageros do diálogo (essa entidade chamada "O Russo", essa estranheza que são os "Sentimentos Ocidentais"). Se em seguida Nina fala de Chklóvski e da ostranenie, é impossível não recordar, com base em seus próprios exemplos - Gógol, Dostoiévski, Púchkin -, a presença concomitante de Bakhtin nesse contexto, que vai defender não a unidade do russo (ou do que quer que seja), "passional e extremo", mas sua pluralidade (o que pode haver de coeso ou puro em Gógol, argumenta Bakhtin, com seu folclore ucraniano, sua vivência italiana e sua vontade férrea de mirar o trágico e invariavelmente acertar o cômico?).
3) Every human tongue challenges reality in its own unique manner; There are as many constellations of futurity, of hope, of religious projection as there are optative and counterfactual verb forms, escreve George Steiner em My unwritten books (New Directions, 2014, p. 65), retomando uma ideia que já havia exposto em After Babel (1975). Tanto em Nina quanto em Steiner nota-se certa irredutibilidade simbólica travestida de multiplicidade que Hegel já anunciava (ao falar de Sófocles, Édipo e do enigma da Esfinge):
O que ilumina a consciência é a claridade que provém do seu conteúdo concreto através de uma forma que só a ele pertence, que só existe para ser sua expressão, para só a ele dar evidência, excluindo a de qualquer outro conteúdo. (O Belo na Arte, trad. Orlando Vitorino e Álvaro Ribeiro, WMF Martins Fontes, 2009, p. 403).
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