quarta-feira, 30 de outubro de 2019

Vallejo na Rússia

César Vallejo, poeta peruano, nascido em 16 de março de 1892 e falecido em 15 de abril de 1938, está enterrado no Cemitério do Montparnasse, em Paris. Juan José Saer, escritor argentino, nascido em 28 de junho de 1937 e falecido em 11 de junho de 2005, está enterrado no Cemitério do Père-Lachaise, o maior de Paris. 
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Vallejo viaja à Rússia pela primeira vez em 1928 - por pouco não é contemporâneo de Walter Benjamin no mesmo país e na mesma cidade (passou dois meses em Moscou em 1927). Vallejo volta a Paris em seguida e funda lá a célula parisiense do Partido Socialista peruano (depois rebatizado de Partido Comunista Peruano). No ano seguinte, 1929, Vallejo vai uma segunda vez à Rússia, agora acompanhado de Georgette Marie Philippart Travers (futura Georgette Vallejo, responsável pelo cuidadoso processo de publicação póstuma dos inéditos de Vallejo). Georgette havia recebido uma herança pouco tempo antes, com isso havia dinheiro para ampliar o trajeto e estender o tempo da viagem: passaram por Varsóvia, Praga, Viena, Budapeste, Moscou e Leningrado.
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Em julho de 1931, Vallejo publica em Madri (pela editora Ediciones Ulises) seu livro Rusia en 1931. Reflexiones al pie del Kremlin - reunindo crônicas e reportagens escritas nas duas viagens. O livro foi um sucesso: teve três edições em menos de quatro meses. Em um momento histórico muito preciso, um poeta extemporâneo como Vallejo - vindo do fundo da América Latina e reconfigurando as vanguardas europeias com um punhado de poemas - se vê em um encaixe perfeito com o Zeitgeist (de resto, o tema da Rússia estava na ordem do dia: em 1926 é Joseph Roth quem viaja para lá e depois reúne suas reportagens no livro Viagem à Rússia; dez anos depois, em 1936, é a vez de André Gide publicar seu polêmico Retour de L'U.R.S.S., também fruto de uma viagem e relato das censuras e violências observadas por ele) 

sexta-feira, 25 de outubro de 2019

Me gusta la vida enormemente

"Pensava em César Vallejo.

Sempre tive sorte com os poetas. Quer dizer: meus encontros com suas obras sempre foram oportunos. Sempre topei, no momento oportuno, com a obra poética que podia me ajudar a viver, me fazer avançar na acuidade da minha consciência do mundo. Assim com César Vallejo. Assim, mais tarde, com René Char e com Paul Celan.

Em 1942, era a poesia de César Vallejo que eu havia descoberto. Não foi nada agradável, aquele ano. Fui obrigado a largar o preparatório para a Escola Normal Superior, no Henri IV, a fim de ganhar minha vida. Minha sobrevivência, melhor dizendo: algo com que subsistir parcamente. Conseguia, a duras penas, dando aulas de espanhol a alunos de todas as idades, de latim a jovens malandros de boa família, às vezes detestáveis. Só fazia refeições de verdade dia sim, dia não, mais ou menos. Volta e meia me alimentava com bolinhos de trigo-sarraceno comprados sem tíquete de racionamento numa padaria que havia na época no bulevar Saint-Michel, no lugar onde se encontram as ruas Racine e Ecole-de-Médecine.

Mas havia descoberto a poesia de César Vallejo.

Me gusta la vida enormemente
pero, desde luego,
con mi muerte querida y mi café
y viendo los castaños frondosos de París..."

(Jorge Semprun, A escrita ou a vida, tradução de Rosa Freire d'Aguiar, Cia das Letras, 1995, p. 165)

domingo, 20 de outubro de 2019

Hegel, Rembrandt

"Seria Rembrandt uma espécie de equivalente pictórico de Shakespeare? Nossas análises autorizam algumas aproximações jamais feitas explicitamente pelo próprio Hegel. Seja como for, o trágico que se lê em Rembrandt, na cisão que é expressa pela luta da sombra e da luz, não é isento nem de serenidade, nem de cômico ou de ironia: serenidade do capitão e do tenente, que parecem alheios à agitação do conjunto da cena; sorriso, ou antes, riso, irônico, ou até sarcástico, da menina que, quebrando o movimento, faz reinar sobre o conjunto uma inquietante estranheza, que é justamente a da dissolução. 
E nos encontramos então no ponto mais alto. A cisão que vemos se desenhar aqui não é a que arranca a subjetividade de seu meio ético, precisamente porque esse meio começa a fazer da individualidade o único valor, porque todos os conteúdos se dissolvem ante a emergência da subjetividade? Momento de fratura porque o século XVII holandês ainda está marcado por essa comunidade ética que conduziu esses burgueses protestantes ao ápice de sua glória. Mas essa glória encerra as razões de sua dissolução na oposição dos interesses privados, de tal modo que o artista já não encontra senão em si mesmo, na solidão, seu conteúdo"

(Gérard Bras, Hegel e a arte: uma apresentação à Estética, tradução de Maria Luiza X. de A. Borges, Zahar, 1990, p. 53)

domingo, 6 de outubro de 2019

Morada

Por que, para Heidegger, o ser se conjuga com o tempo? Porque o ser não está dado desde sempre de forma essencialista; pelo contrário, o ser está em construção, em processo, em devir. Para Heidegger, a subjetividade não é o reino de um autodomínio absoluto e homogêneo - por isso a imagem do ser que é "lançado" no mundo, em um ambiente de desamparo e angústia. 

As noções de desamparo e angústia permitem relacionar o projeto de Heidegger ao de Freud. O sujeito psicanalítico é descentrado, já não é mais "senhor em sua própria casa" (como diz Freud nas Conferências introdutórias). Não por acaso, Heidegger fala da morada do ser, não por acaso valoriza tanto sua própria casa na floresta. Quando Karl Kraus fala que a psicanálise oferece a solução para um problema que ela criou acerta em cheio (ainda que contra sua intenção, que já não importa) nessa mudança de perspectiva: assim como Heidegger associa o ser ao tempo, fundando uma nova exposição de antigos problemas (a destruição da metafísica mais do que a desconstrução), Freud associa o ser à variabilidade infinita da interpretação, criando não uma "solução", mas um procedimento de produção interminável de questionamentos (acerca do ser e também do tempo).