sexta-feira, 30 de dezembro de 2016

Dois envelopes

1) O mote de um texto anterior foi o de uma relação subterrânea entre Sebald, Bulgákov e Bioy Casares, relação essa construída a partir de ficções nas quais certos personagens surgem como atipicamente sensíveis aos fluxos e contrafluxos que ligam o mundo físico - material - ao mundo metafísico, espiritual, espectral. Esse é um tema que percorre toda a obra de Sebald, não apenas sua poematização da vida de Grünewald, mas que é episódico tanto em Bulgákov quanto em Bioy Casares, ainda que alcance uma de suas realizações máximas com a fenomenologia hologramática de A invenção de Morel
2) Um desses contrafluxos me atingiu diretamente quando abri Operação Shylock, de Philip Roth, e por acaso encontrei a seguinte passagem grifada, que comenta a revista que o narrador faz a um quarto de hotel:
Tenho esses dois envelopes, juntamente com a estrela de pano e seus "Dez princípios dos A-S. A." escritos à mão, a meu lado na mesa enquanto escrevo, para atestar a tangibilidade de uma visita da qual mesmo eu preciso viver me reafirmando de que só aparentemente teve a aparência de uma farsa absurda, grosseira, fantasmagórica. Esses envelopes e seus conteúdos me lembram que aquela aparência espectral, meio demente, era na verdade a própria marca característica de uma indiscutível realidade muito semelhante à vida e que, quando a vida parece menos o que deve parecer, aí talvez é que seja mais o que ela é mesmo. (p. 227).
É difícil pensar em um escritor mais diferente de Sebald que Philip Roth e, ainda assim, em Operação Shylock ele aparece como um comentador dessas aparições "espectrais", partindo de uma evidência completamente diversa: os envelopes guardam "miúdos fios de uma barba humana" e "uma espiral de pêlo púbico negro, mais ou menos da forma de um & corpo quatorze", que estava "grudado na borda esmaltada do vaso". Sebald transfigura a materialidade depois do contato com os espectros, enquanto Roth, a partir de um minucioso e irônico inventário da materialidade, faz do espectral uma espécie de permanente presença paralela à realidade, sempre pronta a reafirmar a "farsa absurda, grosseira, fantasmagórica".
Aharon Appelfeld
3) Algumas páginas adiante, Roth escreve: "É melhor as coisas reais serem incontroláveis, é melhor que nossa vida seja indecifrável e intelectualmente impenetrável do que tentar extrair com uma fantasia maluca um sentido causal do desconhecido" (Philip Roth, Operação Shylock, trad. Marcos Santarrita, Cia das Letras, 1994, p. 260). É decisivo que tal reflexão, assim como várias outras análogas, esteja em seu livro sobre Israel, Jerusalém e, em última instância, seu livro sobre a Shoah. Sobretudo nos trechos de Operação Shylock em que Roth se baseia nas suas conversas com Aharon Appelfeld fica claro que é em direção à experiência extrema do extermínio que termos como "farsa", "fantasia", "espectro", "fantasma" buscam boa parte de seus sentidos ("quando a vida parece menos o que deve parecer, aí talvez é que seja mais o que ela é mesmo").

sexta-feira, 23 de dezembro de 2016

15 de maio de 1525, de 1891



No final de Austerlitz, na última página do romance, Sebald dá a própria data de nascimento como data de morte de uma vítima de Hitler, Max Stern, Paris, 18.5.44. No seu livro de estreia, Nach der Natur, poema narrativo dividido em três partes, quando fala do pintor Mathias Grünewald, Sebald fala da batalha de Frankenhausen, que aconteceu no dia 15 de maio de 1525
e que, como tantos outros eventos da época, está retratada nessa que é a maior pintura a óleo do mundo, com mais de 120 metros de comprimento. Em Nach der Natur, Sebald fantasia acerca do momento em que Grünewald, que tinha o hábito de colocar o próprio rosto de forma mais ou menos disfarçada em vários dos personagens de seus quadros, o momento em que Grünewald toma conhecimento do massacre de camponeses ocorrido na batalha - segundo Sebald em seu poema, o dia em que Grünewald toma conhecimento do fato é justamente o dia 18 de maio, e Grünewald fica tão abalado que "durante semanas", escreve Sebald no poema, "usa um pano negro sobre o rosto". Em 18 de maio de 1525, Grünewald esconde o rosto que tantas vezes mostrou (e segue mostrando) em seus quadros.
Em Nach der Natur, Sebald faz de Grünewald alguém extremamente sensível, alguém que percebia no real algo que não pertencia diretamente ao real, mas que dele fazia parte de forma misteriosa, insondável - os corpos dos camponeses massacrados, por exemplo, são percebidos pelo Grünewald como ainda visíveis, perceptíveis. Os infernos estão abertos e em constante permutação com a vida na superfície, assim parece para Grünewald, segundo Sebald (também ele tão imbuído dessa sensibilidade para os espectros). Um pouco como Satanás e seu séquito em visita a Moscou, como um dia sonhou e realizou Mikhail Bulgákov
Satánas e seu séquito encontram poetas, editores, burocratas e todo tipo de pessoas tentando levar a vida em pleno regime comunista. Bulgákov levou quase dez anos para terminar o romance, ditando à mulher as últimas revisões semanas antes de morrer, em março de 1940. Bulgákov, que nasceu em 15 de maio de 1891, no dia da batalha de Frankenhausen, chegou a queimar uma versão inicial de O mestre e Margarida, mas a versão final sobreviveu e Bulgákov chegou a dar ao demônio em seu livro uma frase sucinta mas reveladora, que na Rússia se tornou proverbial: manuscritos não ardem. Quando morria Bulgákov, quando dava os últimos retoques em seu romance em 1940, do outro lado do mundo, em Buenos Aires, Bioy Casares finalizava também ele um livro, menor, mas que lida com temores e fantasias semelhantes.
Não é apenas o caso de Bulgákov e Bioy elaborarem fábulas acerca da irrealidade da realidade, e sim certa ênfase na capacidade de um determinado indivíduo de perceber tanto o fantástico (o demônio, os hologramas) quanto a insistência desse fantástico de passar ignorado pelo restante do mundo. Talvez A invenção de Morel possa ser lido não como o relato da passagem do desconhecido ao conhecido, o relato da progressiva familiarização do Fugitivo com a ilha, mas o relato de alguém que transfigura a própria visão de mundo ao perceber a porosidade desse mundo diante daquilo que não se pode controlar, explicar (não seriam os rostos dos hologramas o próprio rosto do Fugitivo, à maneira de Grünewald, mesclando próprio e alheio no registro de sua arte?).  

quarta-feira, 14 de dezembro de 2016

Esferas, vida-morte

1) Já nas primeiras páginas de Esferas I Sloterdijk fala de Nietzsche e da Gaia ciência, referência recorrente ao longo de todo o livro. Nietzsche, "o magistral formulador daquelas verdades com as quais não se pode viver", escreve Sloterdijk, "mas que tampouco se pode pretender ignorar, para não ofender a probidade intelectual", "articulou conclusivamente o que o mundo em seu todo deve se tornar para os empreendedores modernos com base nessa percepção: 'uma porta abrindo-se para mil desertos, vazios e glaciais'. Viver na época moderna significa pagar o preço da ausência de camadas protetoras" (p. 25).
2) Poucas páginas adiante, Sloterdijk fala de Nietzsche como esse "Diógenes trágico", concluindo que "pode-se considerar a civilização técnica, sobretudo sua aceleração no século XX, como a tentativa de sufocar as questões levantadas pelos testemunhos cruciais de Nietzsche em um manto de conforto" (p. 28). O trecho todo é construído como um comentário de Sloterdijk ao fragmento 125 da Gaia ciência; a exposição decorrente, contudo, especialmente quando Sloterdijk comenta as várias mortes que são necessárias para assegurar a ficção da individualidade do sujeito sob a benção da razão instrumental, toda essa exposição de Sloterdijk, portanto, é um desdobramento de uma parte do fragmento 109 do mesmo livro de Nietzsche:
Guardemo-nos de dizer que há leis na natureza. Há apenas necessidades: não há ninguém que comande, ninguém obedeça, ninguém que transgrida. Quando vocês souberem que não há propósitos, saberão também que não há acaso: pois apenas em relação a um mundo de propósitos tem sentido a palavra "acaso". Guardemo-nos de dizer que a morte se opõe à vida. O que está vivo é apenas uma variedade daquilo que está morto, e uma variedade bastante rara. Guardemo-nos de pensar que o mundo cria eternamente o novo. (Friedrich Nietzsche, A gaia ciência. tradução, notas e posfácio de Paulo César de Souza, Cia das Letras, 2001, p. 136).
A articulação entre o diagnóstico de Sloterdijk acerca do século XX - tentativa de sufocar as questões levantadas por Nietzsche - e a intuição do próprio Nietzsche acerca da coexistência entre morte e vida me fez pensar em Sebald e em seu percurso não como escritor, mas como crítico e pensador da literatura. 
3) Em 1973, Sebald termina sua tese de doutorado, O mito da destruição na obra de Alfred Döblin, que sai em livro em 1980. 

Na leitura muito particular de Sebald, Döblin surge como alguém ainda nostálgico do "manto de conforto" oferecido tanto pela nação quanto pela ideia de destruição total da nação, ou ainda a vida sob a expectativa messiânica de um evento, uma chegada revolucionária. Para Sebald, a fuga desse modelo - e, consequentemente, textos literários que podem ser associados ao projeto de Sloterdijk de rompimento do tal manto de conforto - está em Kafka e Beckett. Ao oferecer esses nomes como contrapontos ao trabalho de Döblin, Sebald cita uma frase de Molloy, o romance que Beckett publica em 1951: “viver é também se decompor”. Na tradução de Léo Schlafman:
É na tranquilidade da decomposição que me recordo desta longa emoção confusa que foi minha vida, e que a julgo, como se diz que Deus nos julgará e com a mesma impertinência. Decompor também é viver, eu sei, eu sei, não me atormente, mas não estamos sempre presentes. (Samuel Beckett, Molloy, Nova Fronteira, 1988, p. 23)

domingo, 11 de dezembro de 2016

Esferas, livro e deserto

Joel-Peter Witkin
1) Na primeira das dez "Digressões" intercaladas aos capítulos de Esferas I - Bolhas, Peter Sloterdijk fala da "Transmissão de pensamentos". A mente isolada, "tesouro cheio de representações", cerne inexpugnável da subjetividade, argumenta Sloterdijk, é uma novidade em termos "paleopsicológicos", "uma recente penugem sobre maciças camadas de realidades psicológicas mais antigas" (a força imagética dessa metáfora, tão característica do estilo de Sloterdijk). A noção de que haveria um interior privado no qual o sujeito poderia fechar a porta atrás de si, escreve Sloterdijk, "não surge antes da primeira vaga individualista na Antiguidade". E, ainda assim, não conseguimos nos movimentar fora desse espaço da inviolabilidade do pensamento, por mais recente que seja.  
2) A culpa, segundo Sloterdijk, é da escrita: a escrita "é o que torna possível que indivíduos se retirem da sociedade para se completarem a si mesmos com as vozes dos autores: quem pode ler também pode ser só. Apenas a alfabetização permite a anacorese: o livro e o deserto estão ligados" (a obra de Jacques Derrida cintila sob a sugestão desse comentário: da Farmácia de Platão - os indivíduos que "se retiram" da sociedade; a relação entre leitura e solidão - até Mal de arquivo - completar o "si" com as "vozes dos autores"; a articulação livro e deserto, arquivo e vazio).
3) Além disso, a argumentação de Sloterdijk nessa digressão se aproxima das questões levantadas por Derrida na Gramatologia: a "transmissão de pensamento" de que fala Sloterdijk é um dos tantos nomes da metafísica da presença, na medida em que, culturalmente, o Ocidente tem a necessidade de manter seus "finados reis divinos" e "deuses", que "mantiveram em marcha a história do mundo como uma série de guerras entre esses grupos de possessão fundados na telepatia e na psicose da influência, mais bem conhecidos como 'culturas'". A transmissão de pensamento liga-se, como procedimento, forçosamente à presença de um iniciado, um mestre - um sistema hierarquizante de isolamento do sujeito, um modelo de dependência, contrário àquele da escrita, que forneceria uma fenomenologia do isolamento comunicativo/produtivo. É significativo, portanto, que Sloterdijk encerre a Digressão com uma menção a Freud e à cena analítica, dentro da qual o próprio Freud, segundo Sloterdijk, eram reativadas certas "funções paleopsicológicas" (Peter Sloterdijk, "Digressão 1: Transmissão de pensamentos", in: Esferas I: bolhas, trad. José Oscar de Almeida Marques. São Paulo: Estação Liberdade, 2016, p. 240-243).

quinta-feira, 8 de dezembro de 2016

Esferas, o lugar existencial

Malevich
É impossível explicar detalhadamente a habitação nas esferas enquanto o Dasein for concebido de um impulso essencial para a solidão. A analítica do Onde existencial exige, consequentemente, que se coloquem entre parêntese todas as sugestões e sentimentos de uma solidão essencial para se certificar das estruturas profundas do Dasein acompanhado e completo. Ante essa missão, o primeiro Heidegger permaneceu um existencialista, no sentido problemático do termo. Ao voltar-se apressadamente para a questão do Quem, ele deixa para trás um sujeito existencial solitário, fraco e histericamente heroico, o qual julga que deve ser o primeiro a morrer e vive no lastimável desconhecimento dos motivos mais ocultos de sua integração às intimidades e solidariedades. Um "Quem" superestendido em um "Onde" confuso pode trazer más surpresas para si mesmo quando pretende, ocasionalmente, ancorar-se no primeiro povo que aparece. 
Heidegger em 1934
Quando Heidegger, durante a revolução nacional, quis, como grande personalidade, aproveitar-se da maré imperial, ele apenas mostrou que a especificidade existencial, desacompanhada de uma clarificação radical de sua situação no espaço da política, produz o ofuscamento. A partir de 1934, Heidegger sabia, ainda que apenas implicitamente, que sua mobilização no levante nacional-socialista constituíra um caso de "ser-sugado": o tempo, aqui, se tornara espaço. Quem se deixa sugar pelo turbilhão, embora pareça estar aqui, vive em outra esfera, em um cenário distante, em um "Lá" interior impenetrável. A obra posterior de Heidegger extrai discretamente as consequências desse lapso. Da história passada, o iludido revolucionário nacionalista espera para si pouca coisa; retirou-se das empreitadas das potências. Buscará futuramente sua salvação em exercícios de proximidade cada vez mais intimistas. 
Aferra-se obstinadamente à sua província anárquica e organiza visitas guiadas à casa do Ser - a linguagem -, qual um porteiro mágico equipado de pesadas chaves e sempre pronto a fazer um aceno cheio de sentido. Nos momentos mais agitados, ele invoca a sagrada esfera parmenídica do Ser, como se tivesse retornado ao eleata, cansado da historicidade como de um espectro funesto. A obra tardia de Heidegger não cessa de reencenar, do começo ao fim, as figuras de resignação de um aprofundamento regenerativo do pensamento, sem jamais alcançar o ponto desde o qual se poderia retomar a questão da instalação original do mundo.
O presente projeto "Esferas" pode também ser entendido como uma tentativa de resgatar - ao menos em um aspecto essencial - o projeto Ser e espaço do subterrâneo em que ficou secundariamente confinado na obra inicial de Heidegger. Somos da opinião de que o interesse de Heidegger pelo enraizamento, na medida em que se pode salvar algo dele, só terá suas legítimas pretensões atendidas mediante uma teoria dos pares, dos gênios, da existência completada. Ter tomado pé na dualidade existente: é essa a medida de autoctonia ou de ancoragem no real que deve ser preservada, mesmo se a filosofia continua a levar a cabo aplicadamente sua obra irrenunciável de desacoplamento da comunidade empírica. Para o pensamento, trata-se agora de reexaminar a tensão entre autoctonia (ab ovo e desde a comunidade) e libertação (em face da morte ou do infinito). 

*
(Peter Sloterdijk, "Digressão 4: a teoria heideggeriana do lugar existencial", in: Esferas I: bolhas, trad. José Oscar de Almeida Marques. São Paulo: Estação Liberdade, 2016, p. 308-309).

terça-feira, 6 de dezembro de 2016

Giotto e Boccaccio

Giotto fixou o instante fecundo desse reencontro [entre São Joaquim e Sant'Ana] como uma testemunha presente em espírito. Seu casal eleito não se saúda em um mundo vazio de homens: seis testemunhas circundam a cena principal e a retêm, como uma imagem interna, com seus olhos profanos. Não é apenas o observador que percebe o que o pintor quer dar a entender, a própria imagem está cheia de olhos que assistem ao acontecimento representado e o colocam em um espaço público imanente à imagem.
Por isso, o pintor Giotto já é mais novelista que contador de legendas; sua História Sagrada está mais próxima de um jornal da Terra Santa que de uma leitura monástica. Suas cenas não se desenrolam sob os olhos de teólogos dos mistérios e de eremitas, mas diante de uma sociedade urbana e cortês que quase não distingue mais entre história sagrada e secular na escolha de seus assuntos de conversação. A novela, como a sociedade dos tempos modernos, vive do que é interessante. Assim, aquilo que os observadores percebem diante do quadro também é visto pelos circundantes em seu interior. 
Quarenta anos antes de Boccaccio, Giotto redescobriu os "direitos humanos" do olho a ver imagens divertidas; no espírito da novela se anuncia a moderna repartição social do conhecimento de fatos que estimulam nossa inteligência afetiva e participativa. Os afrescos põem em ação uma vivacidade narrativa que ultrapassa o horizonte de suas fontes escritas, em particular da simplista literatura legendária, e dirige-se para o movimentado mundo do início dos tempos modernos. Poder-se-ia arriscar a afirmação de que Giotto já teria colocado o princípio de divertir o olho acima da lei da contemplação religiosa. Isto se mostra de modo particularmente notável no ponto mais candente do quadro da saudação. De fato, ali onde os rostos dos santos esposos entram em contato, o pintor, por um artifício óptico, faz aparecer um terceiro rosto. Para percebê-lo, deve-se desviar o olhar das duas figuras principais e dirigi-lo, em observação descentrada, para o campo em meio aos dois rostos. Aqui, e aqui apenas, é verdadeiro o dito de Lévinas: encontrar um ser humano significa manter-se desperto por um enigma. 
(Peter Sloterdijk, Esferas I: bolhas, trad. José Oscar de Almeida Marques. São Paulo: Estação Liberdade, 2016, p. 135-136)

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Somente o seu Decameron fixa, pela primeira vez após a Antiguidade, um certo nível estilístico, dentro do qual a narração de acontecimentos reais da vida presente se pode converter numa diversão culta; não mais serve como exemplo moral, e também não mais serve à despretensiosa vontade de rir do povo, mas ao divertimento de um círculo de pessoas jovens, distintas, e cultas, damas e cavaleiros que se deleitam com o jogo sensível da vida, e que possuem sensibilidade, gosto e opinião refinados (Erich Auerbach, Mimesis: a representação da realidade na literatura ocidental. Vários tradutores, Perspectiva, 2009, p. 188).

Suas características mais evidentes, quando o comparamos com narrações mais antigas, são a segurança com que os fatos multipartidos são por ele dominados, tanto na sua visão, quanto na articulação sintática, e a flexibilidade com que adapta o nível do tom e o tempo da narrativa aos movimentos internos e externos dos acontecimentos (p. 190-191).

Sem Dante, tal riqueza de tonalidades e de perspectivas dificilmente teria sido possível. Mas da visão figural-cristã, que preenchia a imitação dantesca do mundo terreno e humano e lhe conferia a sua força e profundidade, nada mais aparece no livro de Boccaccio. As suas personagens vivem sobre a Terra, e só sobre a Terra; vê a abundância de aparições, de maneira imediata como um rico mundo de formas terrenas. E tinha direito a fazê-lo, pois não tinha de escrever nenhuma obra grande, grave e sublime; com muito mais direito do que Dante, chama o estilo do seu livro umilissimo e rimesso (introdução ao quarto dia), pois escreve realmente para diversão dos incultos, para consolo e divertimento das nobilissime donne que não vão a Atenas, Roma ou Bolonha para estudar. Com muito humor e graça se defende, no seu posfácio, contra aqueles que dizem que fica mal um homem grave e série escrever um livro com tantas piadas e gracejos (p. 195). 

domingo, 4 de dezembro de 2016

Todo e resto

1) Já no começo de Fragmentos de um discurso amoroso Barthes apresenta esse tópico que será recorrente, tópico que já mencionei, a relação entre interior e exterior e a modificação recíproca de cada uma dessas esferas a partir da intervenção - sempre intempestiva, extemporânea, abrupta - da carga de pathos que o olhar do artista (ou do crítico, ou de quem quer que seja) apresenta. "Esqueço todo o real que, em Paris, excede seu charme", escreve Barthes, e continua: "a história, o trabalho, o dinheiro, a mercadoria, a dureza das grandes cidades; nela vejo apenas o objeto de um desejo esteticamente retido. Do alto do Père-Lachaise, Rastignac lançava à cidade: Agora é entre nós dois; eu digo a Paris: Adorável!".
2) A ligação entre indivíduo e cidade vem dois parágrafos depois, quando Barthes escreve que "o sujeito amoroso percebe o outro como um Todo (à semelhança da Paris outonal) e, ao mesmo tempo, esse Todo parece-lhe comportar um resto, que ele não pode dizer". Na oscilação entre Todo e resto se dá o discurso amoroso, nesse intervalo em que se "imagina que o outro quer ser amado, como ele próprio gostaria de ser", escreve Barthes (um sistema de reciprocidade, de confluência e sobreposição entre Todo e resto), e continua: "o outro de que estou enamorado me designa a especialidade de meu desejo".
3) A virada desse argumento é sutil e complexa, pois Barthes vai usar Lacan (uma frase do primeiro Seminário: "não é todos os dias que se encontra o que é próprio para dar a vocês a imagem exata do desejo de vocês") para comentar "a diferença entre a transferência analítica e a transferência amorosa" e, em seguida, vai usar Proust para lançar o "grande enigma" do qual "jamais descobrirei a chave": "por que desejo Fulano?" ("cena da especialidade do desejo: encontro de Charlus e de Jupiano no pátio do Palácio de Guermantes (no início de Sodoma e Gomorra)"). Antecipando as ideias sobre o punctum (mas também resgatando o que escreve sobre o barômetro de Flaubert em "O efeito de real"), Barthes insinua que a diferença entre a transferência analítica e a amorosa é que esta última se dá na operação do detalhe: "O que, nesse corpo amado, tem vocação de fetiche para mim? Que porção, talvez incrivelmente tênue, que acidente? A forma de uma unha, um dente um pouco partido obliquamente, uma mecha, um modo de separar os dedos falando, fumando?" (Fragmentos de um discurso amoroso, trad. Márcia Valéria de Aguiar, Martins Fontes, 2003, p. 10-12).