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sexta-feira, 29 de novembro de 2024

Um único epíteto


Na quarta seção de "O imortal", o conto que Borges publica pela primeira vez em fevereiro de 1947, na revista Anales de Buenos Aires, e que depois, em 1949, reaparecerá no seu livro O aleph, o autor escreve que ser imortal é insignificante: todas as criaturas o são, pois ignoram a morte (exceto o homem, que tem a morte como horizonte permanente). Dada a abstração da imortalidade, o narrador de Borges chega à conclusão de que, num prazo infinito, a todo homem acontecem todas as coisas; as virtudes anulam as infâmias, e vice-versa, seja do passado, seja do futuro. E nesse ponto, costurada à reflexão abstrata e metafísica, surge um comentário literário, uma brevíssima interpretação, um fugaz juízo de valor, muito ao estilo de Borges: esse jogo de equivalências tende ao equilíbrio, escreve Borges, e talvez o rústico Poema do Cid seja o contrapeso exigido por um único epíteto das Églogas ou por uma sentença de Heráclito.

Essa aparição relâmpago de Virgílio é reveladora, especialmente em um conto que fala tanto de Homero, que depende tanto da fortuna póstuma e milenar das palavras e da figura mítica de Homero. Virgílio aparece em vários momentos da obra de Borges, mas nesse ponto específico de "O imortal" ele não é nominalmente mencionado, algo que certamente não contribui para a contagem estatística da presença de Virgílio na obra de Borges - mas a ênfase é decisiva: "um único epíteto das Églogas", é o que basta (é possível também insistir que Borges trabalha, em vários momentos, a partir de uma triangulação canônica que, para ele, é inquestionável: Homero, Virgílio, Dante).

domingo, 3 de novembro de 2024

1919, 1929



1) No sexto parágrafo de seu ensaio sobre o surrealismo, Walter Benjamin cita Erich Auerbach, ou melhor, cita o livro de Auerbach sobre Dante (lançado em 1929, o mesmo ano do ensaio de Benjamin), especificamente a parte na qual Auerbach fala dos poetas do "estilo novo" como pertencentes a uma "sociedade secreta", dedicados a "aventuras do amor" e buscando "dádivas" que mais se assemelham a iluminações. "Iluminações", evidentemente, é a palavra-chave, já que Benjamin busca aproximar Dante e sua "sociedade secreta" da cena surrealista, que ele tenta interpretar a partir de um horizonte semelhante (a partir de Rimbaud).


2) No parágrafo seguinte, Benjamin aprofunda sua análise dos temas caros aos surrealistas - em suma, uma valorização daquilo que não é valorizado normalmente pela sociedade (roupas com mais de cinco anos, as primeiras fábricas, as primeiras construções de ferro e assim por diante), o que mantém, no pano de fundo, a aproximação com Dante e seu círculo (que revitalizam poeticamente relações cotidianas que passam inadvertidas pelas pessoas "normais"). Em seguida, surge uma segunda referência muito recente dada por Benjamin: um ensaio de Pierre Naville, "A revolução e os intelectuais", publicado em francês em 1926.

3) Naville e Auerbach surgem no ensaio de Benjamin mostrando sua faceta de intelectual atualizado e de pensador versátil e predisposto aos saltos - de Dante ao surrealismo, dos Demônios de Dostoiévski às passagens de Paris, de uma carta de Isidore Ducasse ao "aperfeiçoamento pacífico" da Força Aérea alemã. Benjamin escreve no calor da hora, marcando 1919 como uma data definidora - ele fala do início do surrealismo, mas é também o ano do Tratado de Versalhes e dos assassinatos de Rosa Luxemburgo e Karl Liebknecht (algo decisivo no debate sobre "pessimismo" e "otimismo" que Benjamin, muito rapidamente, apresenta no ensaio sobre o surrealismo, mas que vai aparecer também em textos como "Teorias do fascismo alemão", "Melancolia de esquerda", "Experiência e pobreza", etc).



sábado, 26 de outubro de 2024

Os danados



1) No prefácio do segundo volume de Mito e tragédia na Grécia Antiga (trad. Bertha Gurovitz, Brasiliense, 1991, p. 16-17), Vernant e Vidal-Naquet comentam, rapidamente, uma tradução ao francês do Édipo Rei de Sófocles. "Quando, no Édipo Rei de Sófocles", eles escrevem, "o servidor de Laio compreende que o homem que tem diante de si, soberano de Tebas, é a própria criança que, com os pés feridos, ele entregou ao pastor do rei de Corinto, ele lhe diz, de acordo com a tradução de Jean e Mayotte Bollack: 'Se és o homem que ele (o pastor de Corinto) diz que és, sabes que nasceste danado'" (são os versos 1180-1181). 

2) O problema está na palavra "danado". O que faz essa palavra aqui, perguntam Vernant e Vidal-Naquet, com a "teodiceia cristão" que veicula e sua aproximação com uma "predestinação agostiniana ou calvinista" que nada tem a ver com a "angústia trágica". A tradução (aqui e em qualquer parte; mas aqui Vernant e Vidal-Naquet denunciam o anacronismo daninho) é já uma interpretação e um deslocamento - leva Sófocles em direção a Dante, aos danados do Inferno, ao pecado, à culpa e ao medo tal como construídos pela tradição cristã. "O texto grego diz", simplesmente, informam Vernant e Vidal-Naquet, "sabes que nasceste para um destino funesto".

3) Em nota de rodapé, os autores dão mais exemplos: no verso 823 - que eles traduzem como "Nasci para o mal?" -, o casal Bollack dá a tradução: "Sou um danado de nascença?"; "observemos finalmente", acrescentam eles, "o emprego do termo 'danação' para traduzir, no verso 828, o grego ômos daimôn, 'uma divindade selvagem'". Com relação aos versos 1180-1181, a tradução de Trajano Vieira para o português é a seguinte: Se és quem ele diz, crê: nasceste para a desventura. (Perspectiva, 2001, p. 97).

quarta-feira, 21 de fevereiro de 2024

Nomes identificáveis



1) No último capítulo das suas Meditações pascalianas (de 1997), Pierre Bourdieu usa como exemplo o Processo de Kafka: ele, Kafka, não só usa o tempo de forma extremamente significativa (o jogo de expectativas e frustrações, planos, retomadas, desistências e arrependimentos), mas busca o "ponto de vista dos pontos de vista", como coloca Bourdieu (sua longa e tortuosa argumentação ao longo das Meditações visa a escolástica e sua insistência na separação da razão como instância última e definitiva). Bourdieu ainda acrescenta que só Proust alcançou Kafka nesse esforço de busca pela multiplicidade de pontos de vista (com efeitos bem menos trágicos, completa).

2) Algumas dezenas de páginas antes de falar de Kafka, Bourdieu apresenta uma digressão sobre Baudelaire, argumentando que a fortuna crítica enorme ao redor do autor de Flores do Mal torna difícil de perceber a radicalidade de sua poética e o modo como inventa uma nova forma de "ser artista" no interior e a partir do Literário (nesse ponto ele aproveita alguns momentos de um livro anterior, As regras da arte, de 1992). É curioso que, no centro de um trabalho de crítica à escolástica, encontramos um exemplo precisamente da meticulosidade de tal método/escola, vinda do próprio crítico (Bourdieu mostra que é preciso saber com precisão quais eram os autores imediatamente anteriores e imediatamente contemporâneos de Baudelaire, algo que se perdeu na fortuna crítica posterior).

3) Esses dois momentos das Meditações convergem em direção ao ensaio de Walter Benjamin sobre Proust, no qual ele defende justamente que a Recherche deve ser lida à luz das intrigas sociais imediatamente anteriores e imediatamente contemporâneas à escrita do ciclo romanesco (em outras palavras, Benjamin defende a importância hermenêutica da fofoca e do chisme, para usar o termo de Edgardo Cozarinsky). Recuando no tempo, o mesmo pode ser dito de Dante: Lamartine criticava A divina comédia por seu lado mundano florentino, pois, no poema, figuram muitos nomes identificáveis unicamente pelos habitantes de Florença.

sábado, 28 de outubro de 2023

May Goulding


Na Antologia da Literatura Fantástica, Borges, Bioy Casares e Silvina Ocampo colocam duas passagens do Ulisses, de James Joyce: a primeira entrada é intitulada "Definição de fantasma":

O que é um fantasma?, perguntou Stephen. Um homem que se desvaneceu até se tornar impalpável, por morte, por ausência, por mudança de hábitos.

A segunda entrada é intitulada "May Goulding" e tem relação direta com a mãe de Stephen, presença fantasmática desde o início do romance (quando é postulada a "inelutável modalidade do visível" diante da mãe morta):

A mãe de Stephen, extenuada, surge rigidamente do chão, leprosa e turva, com uma coroa de flores de laranjeira murchas e um véu de noiva rasgado, o rosto gasto e sem nariz, verde de mofo sepulcral. O cabelo é liso, ralo. Fixa em Stephen as órbitas vazias aneladas de azul e abre a boca desdentada, dizendo uma silenciosa palavra.

A MÃE

(com o sorriso sutil da demência da morte)

Eu fui a bela May Goulding. Estou morta.

(Antologia da literatura fantástica: Jorge Luis Borges, Adolfo Bioy Casares, Silvina Ocampo [org.]. Tradução de Josely Vianna Baptista. São Paulo: Cosac Naify, 2013, p. 218-219)

*

Duas estratégias de justaposição de elementos convergem aqui: em primeiro lugar, a estratégia dos compiladores da Antologia de posicionar Joyce em contato com outros textos, não aqueles "habituais" quando se trata do Ulisses, afastando o romance da cena modernista, digamos, em direção ao reino do fantástico, do estranho, do sobrenatural (um deslocamento atípico como aquele que Borges faz em "Kafka e seus precursores"); em segundo lugar, está embutido nos trechos escolhidos o projeto de filiação de Joyce com textos do passado pelo viés do fantasma e da aparição, um encadeamento intertextual cujo desenho aponta saltos com uma extensão de 200 anos: a Comédia de Dante (1321), o Hamlet de Shakespeare (1599), o Tristram Shandy de Sterne (1759), o Ulisses de Joyce (1922).  

segunda-feira, 31 de julho de 2023

Bardolatrias


O motivo dantesco da transformação/metamorfose é particularmente eloquente no caso da passagem de Virgílio a Beatriz, no caso da passagem do Purgatório ao Paraíso e no caso da passagem do latim à língua vulgar; no que diz respeito a Virgílio, essa ideia de transformação é refratada em diferentes situações, como aquela que diz respeito à transformação da Eneida em obra "santa" ou "religiosa", um texto sagrado nos moldes do Êxodo bíblico por exemplo (o que gera, no final, a grande transformação de um poema a outro, de um poeta a outro, a passagem que leva da Eneida pagã à Comédia cristã - Virgílio, como Moisés, não pode entrar na Terra Prometida). 

*

Harold Bloom retoma esse desejo de transformação/metamorfose em seu livro monumental sobre Shakespeare, especialmente no que diz respeito à tentativa de transformar um texto secular em texto sagrado. Os textos de Shakespeare, argumenta Bloom, transformaram o próprio tecido que fabrica o que é o "humano", por isso sua obra "inventa o humano": a "Alta Bardolatria Romântica", como escreve Bloom, é apenas a mais organizada das seitas (Bardolatry is excessive admiration of William Shakespeare. Shakespeare has been known as "the Bard" since the eighteenth century. One who idolizes Shakespeare is known as a bardolator), pois a "perene supremacia" de Shakespeare é incontornável, informando nossa linguagem e nossa psicologia.  

quinta-feira, 27 de julho de 2023

Arrigo Beyle



1) Leio o livrinho de Romain Colomb, no original Notice sur la vie et les ouvrages de H. Beyle, mas na edição italiana a que tive acesso simplesmente Stendhal, mio cugino, Stendhal, meu primo, cheio de anedotas e revelações sobre Stendhal: o ferimento no pé em um duelo; como gostava de manter as unhas das mãos sempre muito longas e muito limpas; como a mãe de Stendhal lia Dante e Tasso em voz alta em casa em sua infância (filiação italiana absolutamente atípica na França de fins do século XVIII); como o escritor não gostava da calvície que o ameaça cada vez mais ano após ano – e como penteava o cabelo para frente, para esconder as entradas, o que se percebe claramente nos retratos. 

2) Evidentemente se destaca a figura de Napoleão, como já se destacava também em Vertigem, de Sebald, que dedica a primeira parte de seu primeiro romance à figura de Stendhal (é no confronto com o livro de Sebald que leio o livro de Colomb): é gritante também a diferença de densidade e estilo entre Colomb e Sebald, o modo como Sebald consegue condensar, já no parágrafo de abertura, sensações, medos, perspectivas, temores e fatos biográficos, com maestria e gravitas (Colomb, por sua vez, é paratático: de uma coisa a outra sem coesão ou preocupação, dispersando anedotas sem costurá-las). Colomb enfatiza como a derrota/retirada na Rússia afetou a saúde de Stendhal, prejudicando seus pulmões e seu coração, uma debilidade que o teria levado à morte prematura em 23 de março de 1842, aos 59 anos.

3) Colomb relata uma série de percepções de Stendhal com relação à língua e, especialmente, seu sotaque (o que faz pensar naquilo que Derrida escreveu sobre René Char e seu incômodo com o sotaque do poeta), de como ele chegou, ainda jovem, a Paris e fez todo o esforço possível para se livrar do sotaque de origem - mantendo, contudo, "um tom decidido e apaixonado" que revela "imediatamente a força dos sentimentos" (algo que Stendhal diz ser típico do Midi, o sul da França mediterrânica e atlântica). Em torno disso, a relação de Stendhal com as línguas, seu aprendizado do inglês, do alemão e especialmente do italiano - chegando ao ponto de instruir seus herdeiros que sua lápide deveria conter o nome Arrigo Beyle (e de fato está lá, no cemitério de Montmartre), seguido da frase: milanese, scrisse, amò, visse

sábado, 22 de julho de 2023

A lanterna de Virgílio



1) No canto XXII do Purgatório, Dante estabelece um diálogo entre dois modelos seus de poetas do passado, de um lado Estácio, do outro Virgílio, comprimidos na encosta da montanha. Entre os muitos detalhes luminosos da passagem, está uma lição de leitura, ou melhor, de "má leitura" ou de leitura "equivocada": Virgílio, que morre antes do nascimento de Cristo, pergunta a Estácio como este se tornou cristão (Publius Papinius Statius nasce em Nápoles por volta do ano 45 e morre por volta do ano 96); e Estácio responde que foi precisamente a poesia de Virgílio que o guiou pelo caminho da conversão (com isso Dante mostra que a poesia de seu guia maior pode ser cristão, de certa forma, avant la lettre).

2) A imagem criada por Dante é eloquente: na conversa que tem com Virgílio, quando explica como se deu sua conversão, Estácio afirma que o poeta maior e anterior segurou uma lanterna nas costas, algo que não tinha qualquer serventia para si próprio, mas que certamente ajudou aqueles que vinham atrás - ou seja, o próprio Estácio e outros poetas que viveram as primeiras décadas do cristianismo (uma imagem que ecoa naquela do Angelus Novus da tese IX Walter Benjamin; lembrando que Benjamin não só leu o livro de Auerbach sobre Dante - Dante como poeta do mundo terreno - como o cita em seu ensaio sobre o surrealismo, ambos de 1929 (ensaio de Benjamin e livro de Auerbach)). Estácio, portanto, força uma leitura de Virgílio e, nessa violência com o texto, inscreve sua própria experiência, a transformação de sua própria vida.

3) Estácio ainda pergunta a Virgílio por onde andam outros escritores importantes e caros a ele, como Terêncio e Plauto; estes e vários outros, responde Virgílio (como é o caso de Homero, por exemplo), estão no primeiro círculo do Inferno, onde também estou, acrescenta Virgílio. Alguns gregos estão lá também, continua Virgílio, como Eurípides, Simônides, Agatão. "Juntos conversamos com frequência sobre poesia". Essas insondáveis conexões entre tempos e textos, entre presenças e indivíduos (como Sordello e Virgílio, que se cumprimentam efusivamente sem se conhecer, apenas porque compartilham a cidade de origem), são possíveis porque Dante concebe um logos suprahistórico cristão que tudo organiza.

sábado, 8 de julho de 2023

A travessia



1) A recorrência do motivo da travessia em Sebald, algo que evoca Homero, Ulisses, a Divina comédia, e assim por diante: em Vertigem, um dos elementos de ligação entre os quatro capítulos é a evocação do caçador Graco de Kafka (um morto-vivo que roda o mundo sem poder aportar sua embarcação em lugar nenhum); ainda em Vertigem, a frase inicial do romance diz respeito precisamente a uma travessia, "em meados de maio de 1800", quando Napoleão e seus trinta e seis mil homens atravessaram o "Grande São Bernardo", empreitada considerada até então "como praticamente impossível".

2) No final de Os emigrantes, no capítulo de Max Aurach/Max Ferber (também a travessia de um nome, de uma identidade, de um afastamento com relação a Frank Auerbach), o narrador viaja a Bad Kissingen e pega uma balsa, tirando (e mostrando) uma fotografia da funcionária que guia a embarcação (uma passagem que vem imediatamente depois da visita ao cemitério, como um retorno da terra dos mortos); em Os anéis de Saturno, o narrador pega um pequeno barco para ir até Orford Ness, antigo espaço de testes secretos do governo britânico durante a guerra fria (uma paisagem pós-apocalíptica, escreve o narrador, talvez a imagem do nosso mundo depois do fim). 

3) De uma perspectiva biográfica, há certamente a travessia que leva do professor ao escritor, os decisivos anos da década de 1980, nos quais Sebald começa a publicar seus exercícios narrativos em revistas. É possível pensar ainda em uma travessia anterior, igualmente decisiva, aquela do Canal da Mancha, que o leva como jovem professor/estudante a Manchester em 1966 (essa primeira travessia leva também do alemão ao inglês, uma travessia linguística, contudo, que não é completada, que não é levada a suas últimas consequências, já que Sebald sempre utilizará o alemão como sua língua de trabalho, de narração).

quinta-feira, 29 de junho de 2023

Crise e transformação



1) No quarto capítulo de seu livro The Benjamin Files, Fredric Jameson aponta "a mais característica atenção" de Benjamin àquilo que considera "histórico na história": os momentos de "crise e transformação" (p. 67). Rupturas, limites e fronteiras; pontos de clivagem entre o que já foi e o que ainda não é; em suma, mais uma elaboração da fábula de Kafka sobre o homem que quer construir uma casa com o material de outra e termina com duas casas semi-destruídas.

2) Auerbach, quando publica seu livro sobre Dante na década de 1920, também apresenta um momento de crise e transformação, falando do momento em que o mundo de Dante já não faz mais sentido para um de seus sucessores, Petrarca. Em outro momento do mesmo livro, ainda circulando ao redor dessa questão (a convivência tensa entre o discurso crítico e os momentos de ruptura ou de incompreensão), Auerbach fala da consciência histórica limitada da Idade Média e, por consequência, de Dante. Trata-se de uma ausência de "historicismo estético", uma inovação de Vico (segundo Auerbach, que também fala de Vico no livro sobre Dante, e também salientando a incompreensão de Vico em particular - e de seu século em geral - diante da Comédia). 

3) É possível lembrar o exemplo dado por Roberto Calasso em seu livro sobre Kafka, chamado simples e efetivamente de K. Calasso cita uma passagem de um caderno de 1922 (que está em Nachgelassene Schriften und Fragmente II): "A escrita se nega a mim", escreve Kafka. "Investigação e descoberta de elementos tão mínimos quanto possível. Com eles quero depois me construir. Como alguém que tem uma casa insegura e quer construir outra, segura, ao lado, com o material da antiga. Mas a coisa fica séria se, durante a construção, suas forças o abandonarem e então, em vez de uma casa insegura mas completa, ele ficar com uma casa semidestruída e outra pela metade, ou seja, com nada" (K., tradução de Samuel Titan Jr., Companhia das Letras, 2006, p. 25).

sábado, 24 de junho de 2023

Convicção


1) É digno de nota o modo como Auerbach - em seu livro Dante como poeta do mundo terreno - liga o gênio de Dante à sua obsessão, sua fixidez, sua megalomania, sua liberdade de acreditar que estava fazendo algo novo e grandioso, inédito e transformador - a profunda convicção de que era melhor que seus contemporâneos, que era tão bom quanto Virgílio. Com isso, fica posta a questão da relação entre obra e megalomania, algo que Harold Bloom também aponta como decisivo no caso de Shakespeare e sua "invenção do humano" (em certa medida, é o que Bloom vai identificar em todos os poetas fortes em A angústia da influência). 

2) A história do romance no século XX é um desdobramento (e uma intensificação) dessa percepção que Auerbach tem de Dante e que Bloom tem de Shakespeare: logo no início do século, os projetos artísticos de James Joyce e Thomas Mann se desenvolvem sob o signo da desmedida, da audácia, do desejo de renovar as ambições estéticas a cada novo livro (no caso de Joyce, esse movimento fica condensado na passagem do Ulisses para o Finnegans Wake; no caso de Mann, é reiterado várias vezes, de Buddenbrooks em 1901 para A montanha mágica em 1924, com o ciclo José e seus irmãos de 1933 a 1943, com o Doutor Fausto em 1947).

3) Nas últimas décadas do século XX, outros dois casos emblemáticos: em primeiro lugar, Thomas Bernhard, que fez da desmedida de seu ódio (e de vários outros ugly feelings correlatos) o motor de sua ficção e, sobretudo, de seu estilo (desde Perturbação, de 1967, até seu último romance, imenso, pantanoso e inesgotável, Extinção, de 1986); em segundo lugar, Roberto Bolaño, que repete a inconclusão de Joyce (em Finnegans Wake) com 2666, lançado postumamente em 2004, continuação e complexificação da cartografia obsessiva de Os detetives selvagens, de 1998. 

quarta-feira, 14 de junho de 2023

Fluidez e projeto



1) É preciso ter sempre em mente a enormidade do projeto de Balzac em A comédia humana, o modo como atualiza a "narração universal" de Dante e, ao mesmo tempo, depende fortemente das inovações tecnológicas de seu tempo, de sua contemporaneidade, das novas configurações sociais e econômicas (a expansão monstruosa das cidades e dos capitais), etc. Um projeto de proliferação narrativa e editorial como o de César Aira, por exemplo (que deliberadamente joga com a dimensão mercantil da literatura: livros por editoras multinacionais mastodônticas e, simultaneamente, livros por editoras caseiras com capas de papelão feitas à mão), não pode ser entendido sem a mobilização do modelo de Balzac.

2) Em Balzac, a cisão entre narração e julgamento ganha o primeiro plano da narrativa: ao contrário de Goethe, por exemplo, Balzac confere à narrativa uma fluidez que é decorrência de sua suspensão da "tomada de posição", da opinião direta, do juízo de valor, da lição de moral e assim por diante. Os valores não são o horizonte em vista para os personagens de Balzac, como muitas vezes são para Goethe; em Balzac, ao contrário, os valores muitas vezes são obstáculos absorvidos aos discursos dos personagens em seus relatos de sucesso ou insucesso (a legitimidade das escolhas é irrelevante, sequer surge como tema da narrativa).

3) Uma diferença importante entre Stendhal (1783-1842) e Balzac (1799-1850): no primeiro, os valores estão sempre em questão, fazendo parte da dinâmica de progressão da narrativa (uma vez que a tensão entre a realidade e os valores - ou os ideais - é o que dá substância à trajetória do protagonista, como Julien Sorel em O vermelho e o negro), muitas vezes servindo de material de reflexão para a voz narrativa, que suspende a peripécia para comentar (às vezes chamando o leitor como testemunha). Em Balzac, a tensão entre realidade e ideal não é matéria de comentário, e sim uma sorte de posição textual em declive: a partir disso, algo se movimenta, algo se desloca, o suspense se cria e a narrativa (mastodôntica, sem centro fixo, "cem mil romances", proliferativa, sem qualquer intenção de finalização) passa a ocupar novos territórios.

segunda-feira, 29 de maio de 2023

Os dois registros


Em um texto de 1965 intitulado "A vontade de Dante de ser poeta", Pasolini comenta expressões utilizadas na Comédia que "pertencem a um círculo linguístico de periferia ou de bairro de má fama", de "gente simples e plebeia", talvez "até entregue a uma vida bandida", utilizadas por Dante para "reviver psicológica e socialmente a realidade de suas personagens de baixa extração e sem cultura", como, por exemplo, a expressão

ed elli avea del cul fatto trombetta. (Inferno, XXI, 139)

traduzida por Emanuel França de Brito, Maurício Santana Dias e Pedro Falleiros Heise (Cia das Letras, 2021, p. 303) da seguinte forma:

e este ali mesmo fez do cu trombeta.

E na tradução de Italo Eugenio Mauro (ed. 34):

do seu traseiro o som de uma trombeta.

Outra coisa interessante que aponta Pasolini é o modo como o relato de Dante se desenvolve em dois registros, um rápido, o outro lentíssimo. Ele dá o exemplo do episódio de Pia dei Tolomei (Purgatório, V, 130-136), que mal começa já termina, "talvez a pessoa nem perceba que o leu", como um fragmento de libreto de ópera, "mais sugere do que expõe os sentimentos e os fatos". Contudo, com a releitura, continua Pasolini, o "ritmo é o do outro registro": o ritmo lentíssimo, "atemporal", que "se inscreve num tempo que não é o da leitura e tampouco o dos fatos, mas sim o tempo meta-histórico da poesia: seu ralenti de epígrafe sublime, seu interminável dó de peito casto e quase murmurado", "fora do tempo das coisas".

sexta-feira, 26 de maio de 2023

Chamados suplicantes




1) Em seu livro sobre Dante (Dante como poeta do mundo terreno), Erich Auerbach escreve que o recurso artístico preferido de Dante é a "apóstrofe", ou seja, a interrupção súbita do discurso que o orador ou o escritor faz, dirigindo-se a alguém ou a algo, real ou fictício (como a voz que fala com Auxilio Lacouture em Amuleto, de Roberto Bolaño: che, Auxilio, qué ves?); ou ainda, palavra ou sintagma nominal que iniciam um enunciado, para indicar o destinatário da mensagem (como na frase inicial do conto "Biografia de Matviéi Rodiónytch Pávlitchenko", de Isaac Babel, em O Exército de Cavalaria: "Conterrâneos, camaradas, meus irmãos de sangue!").

2) Para Auerbach, a apóstrofe em Dante não é mero artifício técnico, mas expressão natural da força do seu espírito. Esse dispositivo diz respeito à súplica e à evocação, buscando um salto abrupto da posição da escrita em direção à posição da leitura, como uma abreviação do tempo e do espaço; Auerbach diz que nos versos de Dante que fazem uso da apóstrofe é possível reconhecer uma "convocação enfática", às vezes uma "evocação clamorosa" ou um "chamado suplicante". Nesse sentido, é possível relembrar a frase de Herman Melville em Bartleby, the Scrivener: "Ah Bartleby! Ah Humanity!"; ou Paulo em sua primeira epístola aos Coríntios (15:55): Onde está, ó morte, a tua vitória?.

3) Mas é só na Divina Comédia que essa forma encontraria plena expressão, escreve Auerbach: "Seria preciso transcrever cem versos da Divina comédia, ou quem sabe mais, se quiséssemos dar uma ideia do quão rico é seu grande poema em termos de apóstrofes (...) Fazem parte dessa longa lista ordens imperiosas e pedidos ternos, súplicas em face da mais profunda dor e demandas altivas, apelos patéticos e exortações pedagógicas, saudações amigáveis e reencontros doces; algumas dessas apóstrofes são preparadas com grande antecedência, espalhando-se, após toda uma progressão de períodos, por vários versos impressionantes" (Dante como poeta do mundo terreno, trad. Lenin Bárbara, ed. 34, 2022, p. 64-65).

sábado, 17 de setembro de 2022

Canonização



1) Outro ponto importante levantado por Giorgio Agamben em seu livro O Reino e o Jardim - além da relação inventiva que Dante estabelece com a filosofia de seu tempo, como comentei em outra postagem - diz respeito às armadilhas da canonização: "o paraíso terrestre de Dante é a negação do paraíso dos teólogos", escreve Agamben, e continua: "e é ao menos singular que, apesar desta evidente e peremptória contrariedade, se continue a interpretar Dante através de Tomás e a teologia escolástica - mais uma prova, se houvesse necessidade, do fato que nada torna tão obscura e ilegível uma obra quanto sua canonização" (5.8). 

2) Como escreve Borges em seu ensaio "Sobre os clássicos", incluído em Outras inquisições (1952): "Não importa o método essencial das obras canonizadas; importam a nobreza e número de problemas que suscitam". E continua: "Finjamos que os detratores de Goethe têm razão, finjamos que o valor de suas obras é avaliável em zero. Um fato continua incólume: um goetheano é uma pessoa interessada pelo universo, interessada em Shakespeare e em Espinosa, em Macpherson-Ossian e em Lavater, na poesia dos persas e na conformação das nuvens, em hexâmetros, em arquitetura, em metais, no cravo cromático de Castel e em Denis Diderot, na anatomia, nos alquimistas, nas cores, nos graciosos labirintos da arte e na evolução dos seres em tudo, é lícito afirmar, salvo nas matemáticas. O mundo limitável ou consentido pela palavra de Goethe não é menos versátil que o mundo".

3) Por fim, Borges alcança Dante: "Quase o mesmo diremos do mundo de Dante Alighieri, que abrange os mitos helênicos, a poesia virgiliana, a órbita aristotélica e platônica, as especulações de Alberto Magno e de Tomás de Aquino, as profecias hebraicas e, (desde Asín Palacios) as tradições escatológicas do Islam. O de Shakespeare confina com o de Homero, com o de Montaigne, com o de Plutarco, e antecipa em seu âmbito as involuções de Dostoiévski ou de Conrad, a ansiedade verbal de um James Joyce ou de um Mallarmé".

segunda-feira, 12 de setembro de 2022

Poesia e invenção



1) A passagem na qual Laura Boella comenta (e critica) o uso que faz Thomas Bernhard da figura de Ingeborg Bachmann em seu romance Extinção, no qual a poesia parece surgir como uma plataforma privilegiada para o trabalho posterior (e, de certa forma, superior) do comentário filosófico, se encaixa muito bem no comentário que faz Giorgio Agamben acerca da Divina Comédia, de Dante, em seu livro O Reino e o Jardim (4.1): muitas vezes a crítica insiste em "reconduzir" as ideias de Dante àquelas "dos teólogos seus contemporâneos", em particular Tomás de Aquino.

2) Mesmo um dos melhores intérpretes de Dante, continua Agamben, como é o caso de Charles Singleton, afirma que mais do inventar suas teorias, Dante as aceita - como se a mente de Dante (que se definiu várias vezes como filósofo, anota Agamben) não fosse, em termos de originalidade, capacidade inventiva e coerência, "infinitamente superior àquelas dos filósofos escolásticos seus contemporâneos, inclusive Tomás" (ainda 4.1). Em seguida, Agamben fala da inventio como "parte integrante da prática poética"; se assim não fosse, seria reduzida à "fútil tarefa" de revestir de "expedientes retóricos" ideias encontradas em outros lugares.

3) Parece restar, portanto, mesmo diante de Dante, um pressuposto de que a poesia seria um discurso a ser "aberto", "esclarecido", "esmiuçado" pelo discurso filosófico. Agamben argumenta o oposto: é a poesia de Dante que reconfigura a filosofia/teologia de sua época. A "originalidade" e "capacidade inventiva" de Dante ficam mais evidentes, continua Agamben, em sua descrição do paraíso terrestre, que não só rompe com os postulados canônicos de Agostinho, mas também reconfigura o próprio texto bíblico: sua descrição do rio que nasce no Paraíso dá a entender que foi introduzido "em um segundo momento" (pois se divide em dois, e não em quatro, como afirma o Gênesis), substituindo o cenário estabelecido na Bíblia.  

sexta-feira, 27 de maio de 2022

T. S. Eliot, 1948


1) Em um dos números da revista Lo Smeraldo, que sai em Milão em 30 de maio de 1950 ("Invito a T. S. Eliot", disponível, entre outros lugares, na coletânea Sulla poesia, Mondadori, 1997, p. 457-465), Eugenio Montale relembra uma visita que fez ao escritório de T. S. Eliot em Londres. Antes disso, contudo, relembra também a homenagem feita a ele em Roma, em 1948, "na casa da princesa de Bassiano". Montale registra uma cena interessante: quando Eliot entra no salão, alguns não o reconhecem, dada a difusão ainda baixa das "fotografias de autor". 

2) Eliot recebe no seu escritório da Russell Square, endereço da editora Faber and Faber; Montale escreve que fez a visita com outros dois amigos, que não são nomeados, "poucos meses antes de reencontrá-lo em Roma"; o escritório é pequeno, cheio de livros, e chama a atenção de Montale (de novo as imagens) duas fotografias de grande porte: o Papa (Pio XII, à época) e Virginia Woolf. O encontro havia sido marcado com 15 dias de antecedência pelo British Council, e Montale reconhece nos modos de Eliot não apenas "os deveres da etiqueta", mas também sua "técnica da conversação", um saber perguntar e responder, uma "abertura de alma", alguém que sente "que pode aprender algo" mesmo do "leitor mais desconhecido".

3) Eliot é o único poeta que consegue ler em voz alta seus poemas sem fazer a audiência rir, escreve Montale. Declara ainda que, depois da conferência de Eliot em Roma (sobre Edgar Allan Poe), ele "leu algumas de suas líricas": "ninguém entendia, todos entendiam". Eliot não é um "poeta puro" como Valéry, continua Montale, mas um autor que constrói a poesia a partir de evocações, citações, palimpsestos: A terra desolada "é um denso tecido de citações que vão da Bíblia a Shakespeare, do Rig Veda às lendas de Artur, de Dante a Wagner". Valéry "foi um rio"; Eliot, por sua vez, escreve somente "depois de uma profunda acumulação interior".  

sábado, 30 de abril de 2022

Agruras



1) A arte ambiciona reproduzir a natureza, lugar e matriz de toda perfeição? Ou é uma sublimação da matéria, um aperfeiçoamento, um processo de eliminação das impurezas, de fixação de um momento extra-ordinário, atemporal, mágico? Partindo de uma célebre dicotomia, cimentada pelo trabalho dos Quatro Grandes Filólogos (Auerbach, Curtius, Spitzer, Vossler), é possível dizer que as duas perguntas correspondem a dois encaminhamentos canônicos da história da literatura: o dantismo e o petrarquismo.

2) O primeiro é o reconhecimento do cosmo como "grande obra", escrita pela mão de Deus. Daí decorre o trabalho do poeta, perene imitação, dedicada, tenaz, comprometida. Quanto mais distante da revelação divina, pior será o trabalho do poeta (uma criação afastada, de certa forma, da Criação). O percurso que decorre de Petrarca, por outro lado, diz respeito à poesia como sublimação das agruras humanas (o significante não está aí por acaso: faz pensar nas Agruras do verdadeiro tira, de Bolaño), harmonização de um drama visando transformar a dor em beleza.

3) Não é por acaso que um dos últimos grandes petrarquistas tenha sido Baudelaire, com sua vida completamente absorvida pelo século XIX - nascido em 1821, morto em 1867. Com o "maneirismo" da sua poesia acreditava poder criar "as flores do mal", a beleza ainda possível no caos da cidade, uma beleza impura, heterogênea - "artificial" como os "paraísos" que ele contrastava com o inferno de sua contemporaneidade (por esse percurso, é possível novamente chegar a Bolaño, também ele petrarquista, que faz poesia do sofrimento: La palabra coño, metamorfoseada en la palabra arte, le había salvado la vida - sem esquecer, evidentemente, a epígrafe baudelairiana de 2666).

sexta-feira, 18 de fevereiro de 2022

Literatura / Criatura


1) A literatura e os corpos, ou ainda, no caminho indicado por Auerbach em Mimesis, a literatura e seu contato com a dimensão criatural, a relação da linguagem com a "criatura" (em Rabelais e Montaigne, por exemplo). Tudo isso ressurge com força na Itália das décadas de 1960 e 1970, com grandes leitores de Auerbach em atividade (La Divina Mimesis, por exemplo, obra inacabada que Pasolini começa a escrever em 1963 - e que sairá de forma póstuma em 1975 - indica desde o título essa peculiar mescla de Dante com Auerbach, além de testemunhar a presença decisiva de Mimesis para a formação de Pasolini). 

2) Calvino e Sciascia, por exemplo, escrevem sobre o caso de Aldo Moro (comentei um pouco aqui), com ênfase na brutalidade criatural do surgimento de seus restos mortais, dentro do porta-malas de um carro em uma rua de Roma. O corpo morto de Moro em 1978 estabelece um paralelo com o corpo morto de Mussolini em 1945, o primeiro ligado à dissolução do poder da democracia cristã (um poder discreto, ramificado e insidioso), o segundo ligado à dissolução do contato entre o Duce e o povo (um poder feito de gestos exagerados e transmissões radiofônicas, de propaganda insistente e presença permanente).

3) O destino dos cadáveres tem sido um tema recorrente na literatura argentina: em 1998, Paola Cortés Rocca e Martín Kohan publicam Imágenes de vida, relatos de muerte: Eva Perón: cuerpo y política, um livro sobre o mais famoso desses cadáveres, comentando uma série de textos que dele se ocuparam - os dois romances de Tomás Eloy Martínez; a peça de Copi de 1969, Eva Perón; o conto de Borges, "El simulacro", publicado originalmente em 1956 (hoje no livro El hacedor); "Esa mujer", conto de Rodolfo Walsh (do livro Los oficios terrestres, de 1965); "Eva Perón en la hoguera", poema de Leónidas Lamborghini; "El cadáver de la Nación", poema de Néstor Perlongher; "La señora muerta", conto de David Viñas publicado no livro Las malas costumbres, de 1963, e assim por diante (um pouco mais sobre tudo isso aqui).  

terça-feira, 9 de novembro de 2021

O ímã ama o ferro


1) Isaiah Berlin insiste na importância de "separar o joio do trigo" na obra de Vico, separar os momentos de arroubo fantasista dos momentos de genialidade e originalidade. O trabalho é difícil muito por conta da ambivalência dos escritos de Vico, seu estilo barroco, a reiteração por vezes contraditória das ideias (uma auto-aplicação das noções de corsi e ricorsi, da evocação espiralada da história, talvez). Vico refuta a ideia da tradução sem resíduos e, ao mesmo tempo, defende o caráter incontornável das traduções, das passagens, das adaptações, reiterações, repetições (não tanto do conteúdo daquilo que está sendo traduzido, mas o imperativo do próprio gesto tradutório: a matéria se transforma (nem tudo que está no grego pode estar, ipsis litteris, no latim), mas o gesto de promoção da transformação é sempre o mesmo).

2) Existem similaridades, ecos e paralelos, mas não uma identidade central que permaneça através dos tempos e espaços (Vico rejeita o princípio "iluminista" das verdades eternas e inalteráveis, e também o idealismo "neoplatônico" de parte dos renascentistas; embora reconheça, de forma ambivalente, a atuação de uma força divina superior). É o que permite que, para Vico, Dante seja uma espécie de novo Homero, sem que sua obra seja, de fato (sem resíduos ou sem diferença), uma repetição da épica grega: são duas épocas dominadas pelos "sacerdotes"; os deuses do Olimpo são substituídos pelos santos cristãos; a linguagem poética é mobilizada como instrumento de coesão comunitária, para além da centralidade institucional (a passagem do latim para o vulgar em Dante; a aglutinação de diversas experiências "regionalistas" visando um todo "grego" em Homero).

3) Com Vico também ganha destaque uma noção muito particular de "filologia", ou seja, a percepção de que a história da linguagem é a história dos indivíduos que usam a linguagem, que já não é mais pensada como algo estático e imutável, e sim cambiante, oscilante, feita de camadas heterogêneas de sentido. O modo de utilizar a linguagem tem repercussões sobre o modo de organização da religião, do direito, da vida social, da organização militar, dos laços familiares e assim por diante (quando encontra uma expressão como "o ímã ama o ferro", Vico reflete que não necessariamente isso indica um uso metafórico ou "poético" da linguagem - é preciso entender o contexto geral da língua dentro do qual se insere essa expressão específica, que pode ser corriqueira, banal).