segunda-feira, 13 de fevereiro de 2023

O sotaque de Char



1) Ainda na sétima seção de O monolinguismo do outro, quando Derrida fala de sua resistência com relação aos sotaques (e de como eles não tem a dignidade suficiente para acessar a palavra pública), ele acrescenta mais um elemento autobiográfico (depois de comentar sua vida escolar na Argélia dos anos 1930): quando escutou René Char ler seus próprios aforismos com um sotaque "ao mesmo tempo cômico e obsceno", Derrida experimentou "a traição de uma verdade" e o desmoronamento de uma "admiração de juventude" (o sotaque é incompatível com a dignidade da palavra pública e, acrescenta Derrida, com "a vocação da palavra poética").

2) O comentário é digno de nota porque Char é um indiscutível elo de ligação com Heidegger, fundamental para a formação de Derrida (é possível relembrar também a relação estreita de Héctor Ciocchini com Char e a tentativa de pensar um "humanismo contemporâneo" a partir de sua obra). Em uma entrevista publicada em novembro de 1985 (feita por Adriano Sofri), Giorgio Agamben conta como testemunhou um dos encontros entre Char e Heidegger - ocorrido em 1966, por conta do curso deste último na cidadezinha francesa de Le Thor (mesmo ano em que Derrida vai aos Estados Unidos, para o evento sobre o estruturalismo na Johns Hopkins, e apresenta o célebre texto "A estrutura, o signo e o jogo no discurso das ciências humanas").  

3) Conta Agamben: "Voltei para lá este ano, sabendo que encontraria um vilarejo já irreconhecível pelo turismo, mas, ao invés disso, encontrei o mesmo hotel, agora completamente abandonado, invadido pelo mato e com as janelas caídas, como se tivesse há vinte anos esperando por mim. Em 1968 aconteceu, no mesmo lugar, um seminário sobre Hegel. Dessa vez, éramos uns dez, entre poetas e filósofos. Era vida comum, o seminário aberto pela manhã, as refeições feitas em conjunto e as longas caminhadas pelo campo. O seminário não tinha absolutamente nenhuma formalidade e se baseava na leitura atenta dos textos. Heidegger lembrava no início que em um seminário não pode haver outra autoridade senão a coisa mesma".

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