domingo, 5 de fevereiro de 2023

A costa da Bretanha



1) Na sétima seção de seu relato-conferência O monolinguismo do outro, Jacques Derrida recupera uma espécie de Bildung colonial, ou seja, fragmentos de sua infância escolar na Argélia dos anos 1930 e 1940: nem uma palavra sobre a Argélia, sua história ou geografia, escreve Derrida; por outro lado, todas as crianças sabiam de memória os afluentes do Sena e aprendiam a traçar de olhos fechados a costa da Bretanha (o que me faz pensar em outro conjunto de cenas de aprendizado, aquelas que Sebald coloca na última parte de Os emigrantes, dedicada a Max Aurach/Max Ferber, na qual o personagem conta ao narrador sobre uma foto tirada por seu pai no seu segundo ano de escola, mostrando o menino com o lápis na mão, curvado sobre o caderno de escrita).

2) O único momento benigno nas cenas de aprendizado, continua Derrida, está reservado para a literatura: era a oportunidade de acesso a um mundo sem continuidade sensível com o mundo efetivo, cotidiano (suas paisagens culturais e naturais); mas essa descontinuidade termina por revelar uma segunda descontinuidade, embutida na primeira, escreve Derrida: para aprender a "literatura francesa" é preciso recalcar a "literatura argelina" (só se entra na literatura francesa perdendo o sotaque, escreve Derrida). Essa "neutralidade" do francês sem marca de origem é algo que Derrida recebe na infância e leva para o resto da vida; ele confessa: qualquer tipo de sotaque (sobretudo os meridionais) parece incompatível com a solenidade da palavra pública.

3) Ele chega, por fim, ao ponto extremo do ciclo: o aluno se transforma em professor e, nessa posição, deve usar a palavra, a voz, a presença (e vale a pena comentar neste ponto como a retrospectiva autobiográfica de O monolinguismo do outro é também uma retrospectiva, contagiada pela anamnese da autobiografia, dos principais conceitos mobilizados por Derrida em sua obra - palavra, voz, presença). Derrida diz que teve que se esforçar para falar baixo; uma vez professor, teve que reaprender o uso da voz e começar a falar baixo - algo difícil em sua família, aponta Derrida (a cada vez, portanto, que toma a palavra como professor, Derrida retoma a cena familiar da língua - as vozes altas em família - e a cena inaugural da coerção educacional: falar baixo, evitar o sotaque e assim por diante).  

Nenhum comentário:

Postar um comentário