quinta-feira, 29 de dezembro de 2022

Invecchiare



1) Leio a versão italiana de uma conferência apresentada em 1954 por Gottfried Benn, depois publicada na revista Merkur, intitulada "A velhice como problema para os artistas" (em alemão: Altern als Problem für Künstler; na tradução italiana: Invecchiare come problema per artisti). É o tema do "estilo tardio", que terá uma enunciação pioneira no ensaio de Adorno sobre Beethoven de 1938, passando por Edward Said (seu livro póstumo, Estilo tardio, de 2006, não cita o texto de Benn) e, mais recentemente, por Giorgio Agamben (escrevi um artigo sobre o tema, "O estilo tardio em Giorgio Agamben", disponível aqui).

2) Benn começa costurando referências esparsas vistas recentemente - Lorenzo Lotto, uma obra póstuma de Kant, Hokusai, Hölderlin - até se deter em Goethe, o grande "antepassado", que além de ter envelhecido refletiu sobre o envelhecimento (e sobre todo o resto, parece indicar nas entrelinhas Benn; algo de semelhante se encontra nos comentários de Kundera sobre Goethe (uma "invenção do humano" como aquela que Bloom cria a partir de Shakespeare)). O amor e o desejo parecem gerar um curto-circuito na "sabedoria" do "estilo tardio": "Goethe amou Ulrike aos setenta e cinco anos de idade", escreve Benn, e tinha o firme propósito de se casar com ela, reconfigurando assim as bases de uma rotina sólida e de uma "canonização" em vida.

3) Em seguida ao resgate de Goethe, Benn fala de André Gide e de seus diários, contando rapidamente uma passagem que define como "quase grotesca": aos 72 anos Gide se apaixona, na Tunísia, por um menino de 15 anos; descreve as noites de amor que o fazem lembrar de sua juventude; "quase penoso" é o efeito de uma "observação", continua Benn: na primeira vez que viu o menino, vestido de "serviçal" no hotel, Gide ficou tão tocado pela sua timidez e "ternura" que não conseguiu lhe dirigir a palavra (mesmo aos 72 anos, com tanta experiência, comenta Benn, Gide experimenta uma espécie de "regressão dos instintos", novamente a ideia do "curto-circuito" do estilo tardio).  

quarta-feira, 28 de dezembro de 2022

Olhar longínquo


"Não sou especialmente atraído pela filosofia de Wittgenstein, mas tenho uma paixão pelo homem. Tudo o que li sobre ele tem o dom de me emocionar. Muitas vezes achei traços comuns entre ele e Beckett. Duas aparições misteriosas, dois fenômenos que nos deixam satisfeitos por serem tão desconcertantes, tão inescrutáveis. Num e noutro a mesma distância das pessoas e das coisas, a mesma inflexibilidade, a mesma tentação do silêncio, do repúdio final do verbo, a mesma vontade de atingir fronteiras nunca imaginadas. Em outra época seriam atraídos pelo Deserto. Sabe-se hoje em dia que Wittgenstein, em certa fase, pensara em entrar para um convento. Quando a Beckett, imaginamo-lo perfeitamente, alguns séculos atrás, numa cela inteiramente nua, sem a menor mácula de um adorno, nem mesmo de um crucifixo. Divago? Lembrem-se então do olhar longínquo, enigmático, 'inumano' que tem em certas fotos"

(E. M. Cioran, "Beckett" (1976), Exercícios de admiração, trad. José Thomaz Brum, Rocco, 2011, p. 92)


"Não me lembro mais ao certo quais animais vi então no Nocturama de Antuérpia. Provavelmente morcegos e gerbos do Egito ou do deserto de Góbi [...] De resto, dos animais mantidos no Nocturama só me ficou na lembrança que alguns deles tinham olhos admiravelmente grandes e aquele olhar fixo e inquisitivo encontrado em certos pintores e filósofos que, por meio da pura intuição e do pensamento puro, tentam penetrar a escuridão que nos cerca"

(W. G. Sebald, Austerlitz [2001], trad. José Marcos Macedo, Cia das Letras, 2008, p. 8-9)

sábado, 17 de dezembro de 2022

Um jornal de 1910


 

"A programação incluía uma excursão de ônibus a um local sagrado: a casa de Tolstói em Iásnaia Poliana, apenas duzentos quilômetros ao sul de Moscou, o que, pelos padrões russos, é muito perto. Tudo ali está disposto exatamente como se o dono da casa tivesse acabado de deixar o escritório. As pantufas estão à sua espera, o tinteiro está cheio na escrivaninha. Nela vi também um jornal de 1910 e algumas cartas que o destinatário provavelmente já não estava lá para ler. Nos movemos por esse museu de reconstituições rigorosas como se viajássemos no tempo. A encenação é tão perfeita que quase não ousamos admitir a verdade: naturalmente estamos diante de uma falsificação feita para nos comover"

Hans Magnus Enzensberger, "Notas sobre um primeiro encontro com a Rússia (1963)", Tumulto, trad. Sonali Bertuol, Todavia, 2019, p. 19.

quarta-feira, 14 de dezembro de 2022

Nulla dies sine linea



1) Lendo os trabalhos de Mark Nixon sobre as cadernetas, cadernos, inéditos, anotações, esboços, versões prévias, fragmentos manuscritos, etc, de Beckett, uma série de detalhes vão aparecendo: o caderno que Beckett mantinha somente para anotar e comentar os sonhos que teve (com um período de visitação intensa de Napoleão, por conta da leitura que Beckett fez do livro de 1829 de J. G. Lockhart, The History of Napoleon Bonaparte; uma frase de Napoleão que aparece nos sonhos de Beckett, e que ele registra em seu caderno, é: "Entrarei na posteridade com o Código nas mãos").

2) É também durante a viagem de Beckett pela Alemanha que se inicia seu processo de distanciamento das "convenções" da narrativa - algo que, evidentemente, Beckett já tinha no horizonte desde o início, muito por conta de sua leitura comprometida e detalhada dos trabalhos de James Joyce e Marcel Proust (sobre quem publica um estudo em 1930). No dia 11 de janeiro de 1937, no caderno de número 4, Beckett escreve a seguinte fórmula: Try + be in future less beastly + circumstantial.

3) Para Beckett, o diário estava longe de ser um divertimento ou um passatempo - era uma tarefa, uma obrigação, algo que ele forçava sobre si próprio (no caso específico dos seis cadernos escritos durante a viagem à Alemanha, de setembro de 1936 a março de 1937, é preciso levar em consideração também o esforço necessário para que eles sobrevivessem à II Guerra - sinal da importância que o próprio Beckett dava ao exercício). Além disso, Beckett é metódico no registro de tudo que faz - especialmente os museus que visita - em cada cidade que passa: Hamburgo, Braunschweig, Berlim, Halle, Weimar, Erfurt, Naumburg, Leipzig, Dresden, Freiberg, Bamberg, Würzburg, Nurembergue, Regensburg, Munique.

sexta-feira, 9 de dezembro de 2022

Beckett na Alemanha



1) No mesmo ano em que Ernst Jünger está viajando ao Brasil, 1936, Samuel Beckett parte para a Alemanha - as duas viagens se iniciam inclusive na mesma época, setembro/outubro (a primeira entrada de Jünger em seu diário - transformado no livro Viagem atlântica - é de 19 de outubro de 1936; de Beckett, 28 de setembro). Beckett também escreve um diário, um pouco mais extenso do que o de Jünger, já que sua viagem durou meses, se estendendo até o ano seguinte. O objetivo principal de Beckett com a viagem era o de praticar seu alemão e visitar minuciosamente os museus; acabou também acompanhando, de perto e em primeira mão, a consolidação do fascismo.

2) Os diários são muito diferentes: o de Jünger foi trabalhado posteriormente como livro, de modo que ele burila suas descrições fenomenológicas e dá o polimento que ofusca a "espontaneidade" do diário; o de Beckett é, em vários momentos, o acúmulo de notas esparsas, listas, nomes acumulados, roteiros, ruas, títulos de obras de arte e livros lidos e/ou comprados e assim por diante. Abaixo um fragmento das anotações de Beckett retirado do artigo "Beckett, German Fascism, and History: The Futility of Protest", de James McNaughton:


3) Os seis cadernos manuscritos que formam os "Diários Alemães" de Beckett estão depositados no arquivo da Beckett International Foundation, na Universidade de Reading (o material como um todo tem, aproximadamente, 120 mil palavras). Algumas das experiências desses meses alemães são retrabalhadas na ficção futura, como é o caso de sua visita aos afrescos de Tiepolo na Würzburg Residenz, que aparecem em Malone morre. Os diários de Beckett ainda não foram publicados, mas são analisados detidamente por Mark Nixon em seu livro de 2011, Samuel Beckett's German Diaries 1936-1937 (Using the diaries as the central point of focus, Nixon draws on unpublished manuscripts, notebooks, correspondence, reading notes from the 1930s to reflect on both Beckett's creative evolution prior to 1936 and the direction his writing took after his return to Dublin in April 1937).

domingo, 4 de dezembro de 2022

Outra escritura



1) Chegando a Salvador, durante sua viagem pelo Brasil em 1936, Ernst Jünger vai à "Cidade Alta" e depois desce para "explorar as ruas". Sempre a atenção às próteses, aos dispositivos e à difusão da técnica: ele escreve que para diante das "lojas de instrumentos dentários e cirúrgicos": "tive a impressão que seria difícil encontrar tais instrumentos na maioria das clínicas de Berlim" (de onde vem esses instrumentos? Dos Estados Unidos?). Em outra vitrine, Jünger reencontra as fotografias, comentadas alguns dias antes: "as pomposas molduras das fotografias de grupos de pessoas" (Viagem atlântica, trad. Marcos A. P. Ribeiro, Edusp, 2022, p. 98).

2) A suposição de Jünger é que se trata "da última turma de formandos em medicina"; os professores "com barretes e túnicas pretas profusamente adornadas com peliças brancas" ocupam o centro da imagem; "a impressão geral era que seguiam modelos de Oxford", comenta Jünger, "ainda que, algumas vezes, um senhor moreno sobressaísse" (Jünger descendo uma rua de Salvador em 1936 e parando diante da vitrine de um fotógrafo, encontrando a imagem de uma turma de formandos de uma universidade brasileira cujos ritos e pompas imitam aqueles de uma universidade inglesa fundada em 1096).

3) Outro dispositivo ligado aos signos que recebe a atenção de Jünger: os livros; mais especificamente os livros vistos na biblioteca de um "convento", "espécie de ermida à beira-mar", ocupada por religiosos de origem alemã. "Meu guia, dom Alfonso Zehnle, mostrou-me, inicialmente, a capela e a imagem barroca da Virgem", escreve Jünger. A biblioteca conta com uma "rica literatura sobre teologia antiga"; "lamentavelmente, a despeito das vaporizações periódicas com sulfeto de carbono, encontrei a maioria dos volumes estragados pela ação dos insetos". Surge abruptamente uma nova cena de leitura, uma decifração de algo que Jünger não entende: "Quando se abre uma das folhas desses livros, corroída pelos cupins, vemos aparecer os caracteres de outra escritura, da qual tudo, ao final, foi sacrificado - pena, papel, poesia e, também, o poeta. A advertência é particularmente forte nos trópicos" (p. 102). 

quarta-feira, 30 de novembro de 2022

Futuro perfeito


"Para a psicanálise, nada perece na mente. Como indivíduos, somos sempre assombrados. Lutando por uma analogia adequada, Freud comparou a mente a uma cidade cujas camadas históricas existem todas simultaneamente, sendo que cada estágio anterior persiste junto do estágio seguinte, que parece tê-lo enterrado ou deixado para trás. 

Vista nesse contexto, a psicanálise é uma contra-história, e canaliza aquilo que reprimimos do passado na direção de um futuro que se esforça para encontrar o próprio conhecimento. Freud sempre insistia em que o paciente, e não o analista, tem a chave para a sua verdade inconsciente. Em seus escritos pós-Segunda Guerra Mundial, nos anos 1950, Winnicott descreveu um paciente que havia ido buscar no futuro um pedaço de seu passado perdido, o único lugar em que ele talvez pudesse esperar encontrá-lo. 

Trata-se do tempo do futuro perfeito, no qual, para Lacan, a experiência da psicanálise se desdobra, como já vimos antes com relação à escrita modernista, que também solapa a lógica temporal ocidental dominante: o que terei sido no processo daquilo em que estou me tornando" 

(Jacqueline Rose, Sobre a violência e sobre a violência contra as mulheres, trad. Mônica Kalil, Fósforo, 2022, p. 256-257)

segunda-feira, 28 de novembro de 2022

Órion


1) Chegando ao Brasil em novembro de 1936, Ernst Jünger é um decifrador de signos: chega imbuído da tarefa de revisar exaustivamente tudo que vê, lê e experimenta. O primeiro campo de experimentação, não podia ser diferente, é o céu (o domínio do cacciatore celeste, para dizer com Roberto Calasso): "vi, pela primeira vez, o Cruzeiro do Sul, e sou obrigado a concordar com a maioria dos viajantes, que esta constelação não pode rivalizar com aquelas de nossos céus nórdicos. As altas luzes da Ursa Maior e de Órion, particularmente, não encontram competição no mundo dos astros" (Viagem atlântica, trad. Marcos A. P. Ribeiro, Edusp, 2022, p. 40).

2) O olho do decifrador de signos encontra um ambiente inédito, algo que ele só havia visto nos livros, e a diferença se faz notar: "desejei ter binóculos para decifrar a opulência de folhas e flores que se prodigalizavam nos troncos e nos longos ramos", escreve Jünger em 17 de novembro de 1936, em Santos, lamentando a limitação dos sentidos e exaltando a virtualidade de uma prótese (ele já havia tratado do tema ainda a bordo, no dia cinco: "As fotografias e as filmagens dos passageiros na amurada chegam ao ponto culminante no momento em que o navio passa muito perto da margem, quase a tocando. Durante esse momento, que deveria ser inteiramente dedicado à união do olho com as coisas, as pessoas se ocupam com tais esquemas de captura e seus aparelhos. Isso mecaniza a lembrança").   

3) Isso mecaniza a lembrança, escreve Jünger em seu comentário sobre as relações entre olho e prótese, condensando no próprio percurso de decifrador de signos os caminhos díspares de Walter Benjamin (que escreve a partir de Jünger o célebre ensaio sobre as "teorias do fascismo alemão") e Martin Heidegger (a correspondência publicada entre Jünger e Heidegger cobre o período de 1949 a 1975; além disso, Heidegger participa de um volume em homenagem a Jünger em 1955). É formidável como Jünger apresenta essa triangulação com Benjamin e Heidegger ("ser" e "tempo" atravessados e aproximados pela técnica, pela prótese, pelo dispositivo) a partir de um ponto extremo, um ponto extra-atlântico, latino-americano.

quarta-feira, 23 de novembro de 2022

Transatlântico


1) "É divertido notar que Borges e Gombrowicz se assemelham na celebração comum da grandeza do provincianismo que obriga a construir para si um universo próprio e uma língua. Ele ri de si mesmo quando se expressa sobre Transatlântico, texto para o qual escolheu um registro de língua quase intraduzível e uma temática que ataca diretamente os valores nacionais de seus raros leitores potenciais. Quando qualifica a produção dos grandes autores locais de 'literatura nacional', ele mostra o pouco interesse que lhes dedica. Claro, terá uma relação quase fraterna com Ernesto Sábato e uma real admiração por Virgilio Piñera, um escritor cubano que elege Buenos Aires para estadia, em diversas ocasiões, entre 1946 e 1958, e que tão cedo soube perceber o valor dos textos de seu amigo polonês.

2) "Mas, em geral, não entretém reais relações com eventuais contraditores ou cúmplices. Compreende-se que não busque a companhia de um Roger Caillois, exilado como ele em Buenos Aires durante a guerra e símbolo dessa cultura parisiense tão apreciada pelas elites locaias, mas que, em contrapartida, reconheça como irmãos de sangue Macedonio Fernández, Juan Carlos Onetti (o formidável escritor uruguaio vive na Argentina de 1945 a 1955) e, sobretudo, Roberto Arlt. Macedonio, como simplesmente é chamado pelos amigos, é um escritor excêntrico que marcou Borges. Poeta e romancista, será reconhecido somente após sua morte, em boa parte graças ao trabalho de seu filho Adolfo de Obieta, amigo de Gombrowicz.

3) "O escritor exilado parece ter apreendido o espírito de Macedonio e sabe quem ele é. Diz, por exemplo, o excêntrico argentino: 'A vida é o terror de um sonho'. Como nosso polonês, Macedonio engaja-se inteiramente em uma aventura extrema e sem concessões. Eles são tomados pela mesma febre, impulsionados pelas mesmas forças, mas não podem se cruzar: avançam, cada um, por um caminho solitário, obscuro e ainda não explorado" (Philippe Ollé-Laprune, Américas, um sonho de escritores, trad. Leila Costa, Estação Liberdade, 2022, p. 102-103).

sábado, 12 de novembro de 2022

Juventude



1) No romance Lições, o narrador de McEwan incorpora - intermitentemente - uma série de comentários sobre obras literárias: Roland, o protagonista, "adorou Juventude aos catorze anos, idade em que raramente se interessava pela leitura", indicando já desde o início do comentário que o relato de Conrad consegue, de certa forma, romper uma barreira prévia dos "hábitos de leitura" (ou falta deles) do rapaz (nesse sentido, McEwan também se enquadra na longa lista de leitores de Conrad que o incorporaram à ficção: Sebald em Os anéis de Saturno; Piglia em O caminho de Ida; Borges em "Manuscrito hallado en un libro de Joseph Conrad").

2) Tudo começa com uma cena de leitura: "Segurando o livro com as duas mãos, como numa prece, aberto na primeira página, ele se acomodou na cadeira mais próxima e não se mexeu por uma hora" (p. 133). O tempo passa e o tempo se perde durante a leitura - não se mexeu por uma hora. O modo como o livro é manipulado evoca a prece, o temor e a reverência - como no caso de Hegel e de sua "oração matutina" com a leitura do jornal. "Marlow, o alter ego de Conrad, é quem conta a história, esta é sua primeira aparição. Como acabou se tornando famoso, narrou também 'O coração das trevas', o conto seguinte no volume".

3) A "juventude" de que fala Conrad através de Marlow é retomada por McEwan através de Roland: "É o demônio, a juventude, que o sustenta. Curioso, resiliente, feroz em sua fome de experiência. 'Ah! Juventude!' é o refrão da história" (p. 134). E dentro da cena de leitura de McEwan há também o resgate de uma cena de leitura em Conrad - Marlow leitor de Byron: "O navio faz água, a tripulação a bombeia durante horas, porém é forçada a retornar a Falmouth. (...) O jovem Marlow consegue uma licença, vai a Londres, volta com as obras completas de Byron". Byron nasceu em 1788; Conrad em 1857; McEwan em 1948. Juventude foi publicado pela primeira vez em 1898; Marlow diz que a história se passa 22 anos antes, quando ele tinha 20 anos de idade. Falmouth fica a uma distância de 475 quilômetros de Londres. 

quarta-feira, 9 de novembro de 2022

Copiar-e-colar



1) Em um dos ensaios reunidos em seu livro Temas Lentos, Alan Pauls escreve sobre Mario Bellatin - um texto intitulado "El arte de vivir en arte", no qual Bellatin opera dentro de uma triangulação completada por César Aira e Héctor Libertella. Pauls começa com uma anedota: o dia em que Bellatin foi convidado por um jornal de Buenos Aires para fazer a resenha de um romance de Kawabata recém-traduzido na Argentina. A resenha entregue por Bellatin é uma montagem de frases que ele retira de outros textos, textos, contudo, escritos como resenhas aos livros do próprio Bellatin.

2) "Não há em todo o ensaio", escreve Pauls, "uma única palavra que fale do escritor japonês sem falar ao mesmo tempo do escritor mexicano, e não há uma única palavra que se possa dizer, em boa fé, que seja de autoria do mexicano". Bellatin finge ler Kawabata e, no processo do fingimento, lê a si mesmo através dos olhos da crítica; ocupa de forma momentânea uma posição dentro do "discurso crítico" e, dessa posição, atua como agente duplo: cria um artefato textual ready-made, um monstro de citações que conta duas histórias simultâneas - a história manifesta leva o nome "Kawabata", a história latente leva o nome "Bellatin". 

3) Existe um último elemento: ao fim do artigo, depois da "assinatura", Bellatin acrescenta uma advertência que traz à superfície todo o procedimento (o texto não é "meu", não é "sobre" Kawabata). O editor do jornal, no entanto, resolve eliminar a advertência e publicar o texto como se fosse um ensaio "normal", corriqueiro e tradicional, soterrando a advertência e o procedimento. "Graças à cautela do jornal", comenta Pauls, "que prefere eliminar a 'confissão' do artista, o gesto do artista perde as aspas que o tornavam visível como gesto e fica na intempérie, executado em primeiro grau, como se fosse mais um acting de preguiça, um desafio para leitores ou um 'delito cultural', e não uma prova de habilidade na arte antiga, hoje tão na moda, de copiar-e-colar", 

terça-feira, 8 de novembro de 2022

Projeto vital


1) Ainda em Lições, McEwan coloca seu protagonista diante do passado, visualmente, materialmente. O século XXI já está mais do que iniciado e o protagonista é um idoso; a segunda esposa morreu recentemente e ele está organizando as fotografias: "olhou para as fotos que cobriam três quartos do largo tapete verde iraniano de Daphne. Arrumá-las em ordem cronológica, antes um projeto vital adequado para o período de lockdown, parecia agora inútil. Todos sabiam que a memória não funcionava assim, não era ordenada" (p. 508).

2) A cena do protagonista de McEwan diante das fotos faz pensar em André Malraux escolhendo as imagens para seu livro Le Musée Imaginaire, editado pela primeira vez em 1947, mas que retorna em 1951 como primeiro tomo de um projeto mais amplo de Malraux, Les Voix du silence. Aquilo que em Malroux diz respeito à comunidade e ao coletivo, em McEwan, por outro lado, diz respeito ao núcleo familiar, a uma história "privada" das imagens (as imagens que interessam a Malraux são aqueles que, grosso modo, pertencem a todos; as imagens que interessam a Roland, o protagonista de McEwan, pertencem a ele, que é, ao mesmo tempo, curador, projetor e plateia).

3) Como interpretar esse paralelo? Oscilo entre um juízo que vê na cena privada uma sorte de diluição da potência epistemológica do gesto de Malraux (que até certo ponto pode ser aproximado do gesto de Warburg no Atlas Mnemosyne) e um juízo que generosamente vê na cena de Roland diante de suas fotos um esforço de McEwan de articular geral e particular, subjetivo e histórico, dentro de um bolsão de crítica-ficção no interior do romance (como faz Barthes em Fragmentos de um discurso amoroso, como faz Freud na Interpretação dos sonhos?). A rapidez da cena e a falta de aproveitamento narrativo são elementos que fortalecem o primeiro juízo; o segundo, por sua vez, é contemplado pela frase: Todos sabiam que a memória não funcionava assim, não era ordenada.  

quinta-feira, 3 de novembro de 2022

Lições


1) Os romances de Ian McEwan, em geral, costumam apresentar uma sorte de camada metaficcional, que serve ao autor/narrador como oportunidade para a discussão "ensaística" ou "crítica" do fazer literário. Em Lições, seu último romance, de 2022, essa camada é oferecida pela personagem Alissa, esposa do protagonista Roland, que o abandona - deixando com ele o bebê do casal, Lawrence - para seguir seu projeto de se tornar uma grande escritora (algo que se realiza: a carreira de Alissa se desenvolve e ganha corpo ao longo do romance de McEwan, sempre pela perspectiva distanciada de Roland - o marido abandonado que é, ao mesmo tempo, leitor).

2) Esse conjunto de fatos torna possível a McEwan fazer essa mistura peculiar - um marido abandonado deve dar conta de seus afetos conflitantes para melhor (ou pior) ler os romances da mulher que o abandonou. Ele lê os romances e busca neles ecos da vida passada, da vida compartilhada, do casamento no período prévio ao abandono - é sempre, portanto, uma leitura viciada, comprometida, tendenciosa (como é, grosso modo, toda leitura: o exemplo extremo de McEwan leva em direção à validade da tese geral do comprometimento de toda leitura). 

3) "Passados cinco curtos anos, os livros e prêmios na Alemanha e em todo o mundo se acumularam", escreve o narrador sobre a carreira de Alissa, e continua: "Ela reescreveu e ressuscitou um dos romances que Roland havia datilografado e sido rejeitado pelos editores de Londres. (...) Não havia nada, material ou emocional, que ela não fosse capaz de descrever de maneira vívida. E, contudo, apesar de toda a intensidade do tempo que tinham passado juntos (...) nada estava na sua escrita, nem disfarçado ou deslocado. A experiência comum dos dois fora erradicada com um trator de sua paisagem criativa, incluindo o sumiço dela" (McEwan, Lições, trad. Jorio Dauster, Cia das Letras, 2022, p. 332-333).

sexta-feira, 28 de outubro de 2022

Recuerdos


1) Em um dos ensaios de seu livro Figurações, Sylvia Molloy fala de Sarmiento e de sua tendência de transformação da "vida" em "texto" (para que assim possa servir de modelo, possa entrar na tradição, possa perdurar). "Recuerdos, a escrita de si mesmo em Recuerdos", escreve Molloy sobre Recuerdos de provincia (de 1850), "é também tradução, transposição de textos ou relatos de outros ao relato do eu. Ler o outro não é somente apropriar-se das palavras do outro, é existir por meio do outro, ser o outro" (p. 56). As memórias de Sarmiento são, em grande medida, memórias de um leitor, de um feroz autodidata, que desafia o saber tradicional com sua "máquina de aprender" (a expressão é de Sarlo e Altamirano no ensaio "Una vida ejemplar").

2) Ao estudar a história da Grécia "até decorar", passando à história de Roma e assim por diante, Sarmiento declara que "sente-se" sucessivamente "Leônidas e Brutus, Aristides e Camilo, Harmódio e Epaminondas", e isso "enquanto vendia erva-mate e açúcar". A partir dessas vidas célebres do passado, Sarmiento alcança (e traduz) as vidas cotidianas do presente, seu presente, sua época, seu contexto - o presbítero José, o frei Justo Santa María, Domingo o orador, uma espécie de "panteão provincial", como escreve Molloy, que acrescenta: "Mas como no caso de Kafka e seus precursores, esses parentes teriam pouco a ver entre si (e menos interesse para o leitor de Recuerdos) se Sarmiento não tivesse existido" (p. 57).

3) A partir do registro das vidas e da absorção das vidas alheias ao próprio trajeto subjetivo (algo que é incorporado ao texto), Sarmiento promove uma sorte de atualização da ideia de Warburg (que seria enunciada algumas décadas depois) de que "Atenas e Oraibi" podem ser "primas" (modificando o verso do Fausto de Goethe: do Harz à Grécia, todas são primas/Atenas e Oraibi, todas são primas). Da mesma forma que Borges vai a Kafka para reler textos do passado, Molloy vai a Borges (e sua estratégia de leitura) para revisitar Sarmiento e sua relação peculiar com as vidas alheias ao seu redor, transfiguradas pelo contato que o jovem Sarmiento tem com os textos antigos (traduzidos e transformados pelos manuais, já que ele não lê no original), um percurso que permite, finalmente, ler Sarmiento com Warburg.

quarta-feira, 26 de outubro de 2022

O interlocutor


"Quanto a meu filho primogênito, por muito tempo pensei que não podia tê-lo como interlocutor, pois filhos não podem ser interlocutores, uma vez que costumam ser hipercríticos e implacavelmente severos conosco. Se isso não acontece, acontece o contrário, e é pior: consciente ou inconscientemente, eles tendem a nos mitificar. No entanto, em determinado momento descobri que este meu filho, do jeito estranho dele, é meu interlocutor. É um interlocutor assim: submeto-lhe o que escrevo, ele lê e imediatamente me cobre de ofensas e injúrias. O estranho é que suas injúrias não me ferem de maneira nenhuma e me dão vontade de rir. Ele também fica com vontade de rir, mas nem por isso desiste de proferir suas ofensas com uma prepotência divertida e selvagem. Riso e alegria jorram de seus olhos de carvão, de sua cabeça negra, crespa e selvática. Acredito que me ofender seja um dos prazeres de sua vida. Escutar suas ofensas certamente é um dos meus"

(Natalia Ginzburg, "Interlocutores" (agosto de 1970), Não me pergunte jamais, trad. Julia Scamparini, Ayiné, 2022, p. 224-225)

domingo, 16 de outubro de 2022

EB


"Crack Wars [livro de Avital Ronell], como já mencionei, não trata do crack propriamente. Mas do estado alterado filtrado pelas lentes de Emma Bovary, a decididamente nada heroica heroína do romance infame de Flaubert, publicado em 1856 e julgado por obscenidade em 1857, acusado de injetar veneno no corpo social. Apesar do fato de a única droga de verdade no romance ser o arsênico do suicídio de Emma (fornecido pelo odioso, anticlerical e empreendedor monsieur Homais, o farmacêutico da cidade), Ronell lê o romance como uma história que trata fundamentalmente de 'drogas ruins', ao lado de uma angústia suicida e uma violência interiorizada. 

Ao posicionar Emma Bovary e seus vícios comportamentais no centro da sobreposição que envolve 'a liberdade, as drogas e a condição do vício', Ronell sugere implicitamente que, entre todos os informantes disponíveis, 'EB' - com sua maternidade tóxica, as questões alimentares, seus hábitos de leitura ordinários, o esbanjamento, a religiosidade falha, o romantismo burguês, o adultério histericizado e as pulsões de morte - é uma rica fonte de informação para uma investigação sobre questões prementes da liberdade, do cuidado, da nutrição, do desejo e da ansiedade que têm compelido algumas figuras da filosofia, desde Kant e Nietzsche até Heidegger. Apoio esse sábio gesto feminista, em que uma fêmea humana é tratada, sem cerimônias, como um pivô da condição humana. Esse não tem sido um gesto comum"

(Maggie Nelson, Sobre a liberdade: quatro canções sobre cuidado e repressão, trad. floresta, Cia das Letras, 2022, p. 186-187)

*

"Não vejo que sentido pode ter, diz Renzi, escrever algo sobre Asja Lacis. Existem outras mulheres mais interessantes que podem servir de tema para uma narrativa. Por exemplo?, pergunto. Por exemplo, responde ele, a filha de Madame Bovary. Alguém deveria escrever uma biografia da filha de Madame Bovary. Na última página do livro começa outro romance, diz Renzi, e se levanta para ir buscar o livro de Flaubert. 'Uma vez vendido tudo, sobraram doze francos e setenta e cinco centavos, que serviram para pagar a viagem da senhorita Bovary à casa de sua avó. A boa senhora morreu naquele ano; como o tio Roualt estivesse paralítico, uma tia encarregou-se da órfã. É pobre e a manda ganhar a vida como fiandeira de algodão' [Elle est pauvre et l’envoie, pour gagner sa vie, dans une filature de coton]. A vida de uma operária têxtil que é a filha de Madame Bovary, diz Renzi, esse tema me interessa mais do que a história da amante de Walter Benjamin"

(Ricardo Piglia, "Notas sobre literatura em um Diário", Formas breves, trad. José Marcos Mariani de Macedo, Cia das Letras, 2004, p. 77-78)


terça-feira, 11 de outubro de 2022

Entre línguas


"Conta George Steiner que sua mãe, burguesa vienense, começava uma frase em um idioma e terminava em outro, 'os idiomas voavam pela casa toda'. Este voo linguístico, que Steiner apresenta como um ir e vir totalmente natural, o voo linguístico direto, sem escalas, típico da classe ilustrada, nem sempre é tão confortável para os outros: assim como os trabalhosos deslocamentos linguísticos dos menos afortunados, aqueles que vivem entre um idioma postergado e outro idioma que não dominam de todo. Para este pobre de língua, não existe voo direto: existem as incômodas, desconcertantes (e por vezes humilhantes) escalas. Vazios do dizer" (Sylvia Molloy, Viver entre línguas, trad. Julia Tomasini, Mariana Sanchez, Relicário, 2018, p. 42)

"Alan Pauls conta que, quando pequeno, invejava os cantores europeus que cantavam músicas em espanhol com sotaque: Ornella Vanoni, Nicola di Bari, Domenico Modugno, nomes aos que não posso deixar de acrescentar o de Vikki Carr com seu inesquecível Y volveré. De minha parte, lembro como eu e minha irmão nos divertíamos escutando no rádio o fortemente acentuado e possivelmente não compreendido inglês da memorável Lilian Red, nascida Nélida Esther Corriale, lady crooner de Héctor y su Gran Orquestra de Jazz, quem cantava que amava alguém 'with all my rádensoul'. Levei um bom tempo para perceber que se tratava do tão manjado heart and soul; era muito mais misterioso rádensoul, algo assim como uma poção oriental, provocativa, talvez obscena para a menina que eu era na época" (p. 45)

quinta-feira, 6 de outubro de 2022

Mortos e mortes



1) Como de hábito, Sciascia foca sua atenção nos momentos em que os extremos quase se tocam, momentos em que a traição quase toca o heroísmo, momentos em que a falta de consideração pela vida quase toca o sacrifício abnegado em direção ao outro. Em I pugnalatori, há uma passagem na qual Sciascia fala das "mudanças de regime" e de como, nessas situações, os "confidentes" da polícia se multiplicam: a polícia arrisca "não entender mais nada", pois existem "os velhos que querem construir méritos novos", "os novos que querem suplantar os velhos" e também os "diletantes", que se adaptam aos ventos na medida em que sopram (p. 24).

2) "As aparências enganam" é, frequentemente, a fórmula que condensa o procedimento de Sciascia - algo que ele constrói a partir de elementos multifacetados como a "carta roubada" de Poe, a "crônica italiana" de Stendhal e os "jogos de espelhos" de Pirandello (como em Enrico IV, o louco fingidor que decide fingir a loucura definitivamente). Isso aparece também no modo como Sciascia lê os textos: em I pugnalatori, comentando um escrito do procurador Giacosa, Sciascia ressalta o uso de um advérbio, "inexplicavelmente", um "advérbio que normalmente se utiliza quando existe uma claríssima explicação" (o seu relatório some, e não havia cópia - é precisamente esse desaparecimento que é "inexplicável" (p. 64)).

3) O evento que dá o ponto de partida a I pugnalatori, de resto, multiplica o elemento que frequentemente está no centro das preocupações de Sciascia: o crime, a morte. Ao contrário dos livros sobre Raymond Roussel e Aldo Moro, por exemplo, fixados em um único cadáver, a história dos "apunhaladores" conta com potenciais 13 vítimas, que duplicam quando os culpados são executados (menos o delator do grupo, que é condenado à prisão perpétua). Em Sciascia, a morte é combinada frequentemente à mise-en-scène do tribunal: em 1912+1, Maria Tiepolo mata Quintilio Polimanti, Sciascia analisa a imprensa e o processo; Portas abertas, Palermo, 1937: um homem mata três pessoas, o regime fascista quer a pena de morte, o juiz responsável pelo processo, no entanto, é contrário.

domingo, 25 de setembro de 2022

Palermo, 1862



1) Leio mais um dos tantos projetos característicos de Leonardo Sciascia: I pugnalatori, "os apunhaladores", um livrinho de 1976 sobre um caso jurídico de 1862: em Palermo, 13 pessoas são apunhaladas nas ruas quase que de forma simultânea. Um dos apunhaladores é seguido e capturado; depois de dois dias decide confessar os detalhes e entregar seus cúmplices, até mesmo o mandante: um homem rico e poderoso, Romualdo Trigona, príncipe de Sant'Elia, senador do Reino. Sciascia mescla os registros de estilo e gênero, como de hábito: narrativa detetivesca, investigação histórica, trabalho de arquivo, especulação filosófica...

2) Na "nota do autor" que fecha o volume, Sciascia escreve que um de seus objetivos é que o livro interesse às pessoas sobretudo por sua "relação com as coisas de hoje", indiretamente reverberando a ideia de Croce (e depois de Hayden White) de que toda história é "história contemporânea". Em vários momentos ao longo do relato Sciascia faz referência à situação política da Itália no momento, especialmente à estratégia "de tensão" e de "exasperação dos extremismos" (que culminará dois anos depois no affaire Aldo Moro, a respeito do qual Sciascia também escreveu - por isso a importância de I pugnalatori, que de certa forma mostra a preparação do terreno para a obra futura). 

3) Um dos pontos principais do relato diz respeito à falta de equilíbrio da "justiça" diante dos pobres (os apunhaladores) e do rico, do príncipe (que seria o mandante). Esse mistério insolúvel - o príncipe foi, de fato, o mandante? estava atuando no interior do governo visando um "golpe", uma restauração bourbônica - é "como um vértice, uma sublimidade, uma apoteose do jogo duplo", escreve Sciascia, tocando com isso um tema que compartilha (entre tantas outras coisas) com Borges: o mistério de Judas ser tão necessário para a eficácia da ficção quanto Jesus; o tema "do traidor e do herói" como especulação sobre a metamorfose dos pontos de vista e dos discursos ao longo da história ("muitos secretos conspiradores do passado estão imortalizados nas placas comemorativas como artífices do Risorgimento", escreve Sciascia).

sábado, 17 de setembro de 2022

Canonização



1) Outro ponto importante levantado por Giorgio Agamben em seu livro O Reino e o Jardim - além da relação inventiva que Dante estabelece com a filosofia de seu tempo, como comentei em outra postagem - diz respeito às armadilhas da canonização: "o paraíso terrestre de Dante é a negação do paraíso dos teólogos", escreve Agamben, e continua: "e é ao menos singular que, apesar desta evidente e peremptória contrariedade, se continue a interpretar Dante através de Tomás e a teologia escolástica - mais uma prova, se houvesse necessidade, do fato que nada torna tão obscura e ilegível uma obra quanto sua canonização" (5.8). 

2) Como escreve Borges em seu ensaio "Sobre os clássicos", incluído em Outras inquisições (1952): "Não importa o método essencial das obras canonizadas; importam a nobreza e número de problemas que suscitam". E continua: "Finjamos que os detratores de Goethe têm razão, finjamos que o valor de suas obras é avaliável em zero. Um fato continua incólume: um goetheano é uma pessoa interessada pelo universo, interessada em Shakespeare e em Espinosa, em Macpherson-Ossian e em Lavater, na poesia dos persas e na conformação das nuvens, em hexâmetros, em arquitetura, em metais, no cravo cromático de Castel e em Denis Diderot, na anatomia, nos alquimistas, nas cores, nos graciosos labirintos da arte e na evolução dos seres em tudo, é lícito afirmar, salvo nas matemáticas. O mundo limitável ou consentido pela palavra de Goethe não é menos versátil que o mundo".

3) Por fim, Borges alcança Dante: "Quase o mesmo diremos do mundo de Dante Alighieri, que abrange os mitos helênicos, a poesia virgiliana, a órbita aristotélica e platônica, as especulações de Alberto Magno e de Tomás de Aquino, as profecias hebraicas e, (desde Asín Palacios) as tradições escatológicas do Islam. O de Shakespeare confina com o de Homero, com o de Montaigne, com o de Plutarco, e antecipa em seu âmbito as involuções de Dostoiévski ou de Conrad, a ansiedade verbal de um James Joyce ou de um Mallarmé".

segunda-feira, 12 de setembro de 2022

Poesia e invenção



1) A passagem na qual Laura Boella comenta (e critica) o uso que faz Thomas Bernhard da figura de Ingeborg Bachmann em seu romance Extinção, no qual a poesia parece surgir como uma plataforma privilegiada para o trabalho posterior (e, de certa forma, superior) do comentário filosófico, se encaixa muito bem no comentário que faz Giorgio Agamben acerca da Divina Comédia, de Dante, em seu livro O Reino e o Jardim (4.1): muitas vezes a crítica insiste em "reconduzir" as ideias de Dante àquelas "dos teólogos seus contemporâneos", em particular Tomás de Aquino.

2) Mesmo um dos melhores intérpretes de Dante, continua Agamben, como é o caso de Charles Singleton, afirma que mais do inventar suas teorias, Dante as aceita - como se a mente de Dante (que se definiu várias vezes como filósofo, anota Agamben) não fosse, em termos de originalidade, capacidade inventiva e coerência, "infinitamente superior àquelas dos filósofos escolásticos seus contemporâneos, inclusive Tomás" (ainda 4.1). Em seguida, Agamben fala da inventio como "parte integrante da prática poética"; se assim não fosse, seria reduzida à "fútil tarefa" de revestir de "expedientes retóricos" ideias encontradas em outros lugares.

3) Parece restar, portanto, mesmo diante de Dante, um pressuposto de que a poesia seria um discurso a ser "aberto", "esclarecido", "esmiuçado" pelo discurso filosófico. Agamben argumenta o oposto: é a poesia de Dante que reconfigura a filosofia/teologia de sua época. A "originalidade" e "capacidade inventiva" de Dante ficam mais evidentes, continua Agamben, em sua descrição do paraíso terrestre, que não só rompe com os postulados canônicos de Agostinho, mas também reconfigura o próprio texto bíblico: sua descrição do rio que nasce no Paraíso dá a entender que foi introduzido "em um segundo momento" (pois se divide em dois, e não em quatro, como afirma o Gênesis), substituindo o cenário estabelecido na Bíblia.  

quarta-feira, 7 de setembro de 2022

Voz humana



1) Em seu livro recente, Con voce umana: arte e vita nei corpi di Maria Callas e Ingeborg Bachmann, Laura Boella resgata uma espécie de cena inaugural: o momento no qual Bachmann viu Callas cantar ao vivo pela primeira vez, em janeiro de 1956. Para Boella, esse momento redefine o universo criativo de Bachmann, envolvida em uma tensa passagem da poesia à prosa. Três elementos passam a ser levados em consideração por Bachmann de forma sempre entrelaçada - corpo, voz e presença -, uma sorte de reconfiguração poética alavancada pela "aparição" de Callas. 

2) Boella resgata também Thomas Bernhard e o papel de Bachmann em seu romance Extinção. Franz-Josef Murau fala já nas primeiras páginas de uma amiga, Maria, austríaca como ele, de Klagenfurt, a cidade de Bachmann. Apesar da estima recíproca, o narrador mantém um laivo de ambivalência com relação a Maria: ele tem um sonho recorrente no qual a amiga aparece como uma espécie de figura de ópera, recém chegada de Paris para o encontro com Murau, seu aluno Gambetti, o filósofo Zacchi e o rabino Eisenberg. Maria chega por último, extravagante e luminosa, rompendo a harmonia do grupo.

3) O fato o objetivo do encontro do grupo (dentro do sonho de Murau) seja o de discutir a relação entre a poesia de Maria e a filosofia é um claro aceno "a um dos tantos clichês aplicados à obra" de Bachmann, escreve Boella, "a propósito da qual as pesquisas sobre a influência de Wittgenstein ou de Heidegger frequentemente tomou o lugar de uma leitura atenta de seus escritos". Boella também identifica, em filigrana, certa incompreensão da parte de Bernhard acerca da passagem de Bachmann da poesia para a prosa (ela projetava um "grande afresco da modernidade", seguindo o "modelo de Balzac, de Proust, de Musil"). 

terça-feira, 30 de agosto de 2022

Metáforas da crítica



1) Resenhando o primeiro romance de Italo Calvino, Il sentiero dei nidi di ragno (Einaudi, 1947), em 26 de outubro de 1947, Cesare Pavese escreve que o jovem autor é como um "scoiattolo della penna", um "esquilo da pena" ou da "escritura", por conta de sua astúcia e movimentação: Calvino usa de agilidade para subir em lugares difíceis e, assim, observar as situações de ângulos pouco usuais (no caso específico do romance e da resenha de Pavese, o contexto da luta da resistência italiana contra os nazistas durante a II Guerra Mundial). 

2) Mais de dez anos depois, na edição de março-abril de 1958 de Mondo operaio - supplemento scientifico-literario (Roma), Alberto Asor Rosa escreve uma resenha intitulada "Calvino do sonho à realidade", comentando os livros O barão nas árvoresA especulação imobiliária. A crítica é, em geral, negativa, afirmando de variadas formas que Calvino não faz uso pleno das estratégias narrativas que escolhe e dos temas que desenvolve em seus livros - e o texto da resenha se encerra da seguinte forma: "Calvino colocou a carne no fogo: um pecado que tenha renunciado a assá-la até o final". 

3) Poucos meses depois da morte de Calvino (19 de setembro de 1985), na edição de novembro de 1985 de Il Ragguaglio librario, Ines Scaramucci publica um texto intitulado "De Calvino a Bacchelli", no qual comenta as coletâneas de ensaios de Calvino (com ênfase para Coleção de areia, lançada no ano anterior). Scaramucci resgata uma entrevista na qual o autor fala da extrema "fadiga" da atividade de escritura: "trabalho como um animal", diz Calvino, cita Scaramucci, "é o caso de dizer que ganho meu pão com o suor da minha fronte" (os três textos foram lidos na "antologia da crítica" preparada por Giorgio Baroni em seu livro Italo Calvino: introduzione e guida, Le Monnier, 1988).

(a postagem pode ser lida em conjunto com as "monstruosidades da crítica" e com "o crítico como criminoso")

segunda-feira, 29 de agosto de 2022

O salto



1) No início da segunda parte de Os emigrantes, dedicada à figura de Paul Bereyter, o professor, o narrador de Sebald inicia uma longa rememoração de sua própria infância e de como chegou a ser aluno de Bereyter. O narrador-criança, portanto, chega na nova cidade e vai ao seu primeiro dia de aula, sendo recebido calorosamente pelo professor Bereyter: o professor nota o desenho tricotado em seu blusão e faz disso uma ocasião para reforçar os ensinamentos do dia anterior; a cena é também ocasião para uma performance do olhar, tão recorrente na obra de Sebald, quando várias pessoas se reúnem ao redor de uma imagem (ou várias) e vão, aos poucos, decompondo seus elementos, analisando sua estrutura e assim por diante.

2) Não é só a imagem tricotada no blusão que é separada, mas também a palavra que faz referência à imagem do salto do animal, que em poucas linhas é apresentada em cinco variações: springenden Hirschdie Hirschsprungsageeines Hirschsprungsmeinem Hirschsprungpulloverdes Hirschsprungmusters. A repetição escolar está no centro da cena, bem como o esforço dos alunos diante da tarefa de reproduzir o desenho no pulôver - algo que aparecerá também no último capítulo de Os emigrantes, com Max Aurach/Ferber, o pintor de Manchester, que mostrará ao narrador uma fotografia sua quando criança, escrevendo algo com o rosto muito próximo ao papel. 

3) A singularização das palavras desempenha uma função importante na narrativa de Sebald - uma reiteração por vezes carregada de angústia que remete diretamente ao estilo de Thomas Bernhard (modelo que Sebald comenta e exalta em entrevistas). Logo no início de Austerlitz, por exemplo, ao chegar na fortaleza de Breendonk, o narrador aponta como o cheiro (de sabão e "limpeza") do lugar o leva diretamente "aos terrores da infância" e a uma das palavras preferidas de seu pai, que repetia com frequência, Wurzelbürst, a "bizarra palavra", escreve o narrador, que indica uma escova (limpeza, ordem e asseio como elementos que, na obra de Sebald, se articulam com o pó, a ruína, a tumba).

domingo, 21 de agosto de 2022

Antiga voz


1) No início de seu livro O princípio responsabilidade, Hans Jonas cita uma “antiga voz”, o canto do coral da peça Antígona, de Sófocles (faz muita falta na edição brasileira um índice remissivo, para saber se Sófocles reaparece ao longo da argumentação), buscando aí uma arcaica “nota tecnológica” (pois esse é o cerne do argumento de Jonas em seu livro: como a promessa da tecnologia se transforma em ameaça e, com isso, solicita uma reflexão ética renovada).

2) O coro-coral de Sófocles canta as maravilhas da natureza, indicando, contudo, que a maior é o homem; por mais espumoso que seja o mar, o homem avança; por mais dura que seja a terra, com suas ferramentas o homem abre sulcos e planta sementes; o engenhoso ser humano prende com suas redes os mais ligeiros animais; com o mesmo engenho domestica os animais agrestes, fazendo do cavalo um companheiro, do touro um servidor; por mais que tenha descoberto remédios para muitas doenças, contudo, o homem é impotente diante da morte (o grande marco de passagem contra o qual não há engenho possível).

3) De certo, havia o horizonte infinito da natureza, de seus recursos e mistérios (como testemunham os deuses, ficções que cristalizam a abstração do infinito). Já com Marx surge a ideia do capital como aventura autoimune, como dinâmica de expansão que acarreta, necessariamente, sua implosão (um Saturno que devora não os filhos, mas a si próprio – Erisícton, aquele que quanto mais come mais fome sente, que Anselm Jappe resgata em A sociedade autofágica), desembocando em outro profeta do negativo, Kafka, que escreve que “há esperança, esperança infinita, só não para nós” (não por acaso Kafka surge no livro de Jonas, como contra-argumentação diante do “princípio esperança” de Ernst Bloch).

sábado, 13 de agosto de 2022

As vozes



1) Uma das coisas que mais impressiona o leitor quando entra em contato com Os detetives selvagens, de Roberto Bolaño, é a intensidade de cada capítulo, especialmente aqueles que dão conta dos testemunhos da longa seção "Los detectives salvajes (1976-1996): muitas vezes as cenas, as falas, os personagens, os dramas se acumulam e se lançam em incontáveis direção sucessivamente, sem que haja, ao fim, qualquer tipo de costura rigorosa que organize todo esse esforço (é da ordem propriamente do carnavalesco (e da polifonia) de Bakhtin ou do dispêndio de Bataille, algo que não se explica pela soma de suas partes ou por qualquer sistema pragmático ou concatenado de explicação narrativa). 

2) Voltamos a Urenda falando de Belano, uma frase que serve de miniaturização (Agamben: a miniaturização é a cifra da História) do ethos do romance: Su historia era bastante incoherente. Uma incoerência, contudo, que também não é homogênea ou sistêmica, também não pode ser tomado como um fio organizativo possível - também a incoerência é uma máscara, um recurso, um dispositivo da dinâmica ficcional (ao falar com Urenda, Belano comenta que una vez tuve un duelo, com un tal Iñaki Echavarne, um envio a uma das cenas mais célebres do romance, contada nos testemunhos de Susana Puig, Guillem Piña e Jaume Planells).

3) Já no fim de seu relato, Urenda conta do momento em que acorda e vê Belano e outro personagem fumando e conversando. Ele diz: Transcribir lo que se dijeran es de alguna manera desvirtuar lo que yo sentí mientras los escuchaba. Essa é outra cifra de outro eixo fundamental do romance: o intervalo entre fala e escrita, entre testemunho e registro, entre ideia e realização (a ambivalência do romance que, ao mesmo tempo, "registra" ideias, relatos e sentimentos de uma geração com o mesmo gesto que os "desvirtua"). O dilema de Urenda diante da possibilidade de registrar a fala de Belano é a miniaturização do dilema bem mais amplo dessa entidade - Bolaño? - que arma o romance Os detetives selvagens sobre a "tarefa-renúncia" (no sentido ambíguo que dá Walter Benjamin quando fala da tradução em "Die Aufgabe des Überstzers") de registrar os depoimentos por escrito.  

terça-feira, 9 de agosto de 2022

Belano em Luanda

1) Uma das premissas mais importantes do pensamento pós-colonial é que não basta simplesmente inverter os termos, aquilo que está "embaixo" agora está "no alto", aquilo que era valorado positivamente agora é tomado de forma negativa, e assim por diante; é preciso que seja instaurado um sistema de referências em permanente oscilação, como faz Roberto Bolaño em um romance como Os detetives selvagens: corpos latino-americanos se deslocam no tempo e no espaço, colocando em relato as experiências de seus deslocamentos e ocupando, dessa forma, pontos estratégicos de uma investigação acerca de uma herança (de trauma e violência) e de uma possibilidade de futuro (Sión, a terra prometida, a flecha que nunca chega no alvo).

2) O modo como Xosé Lendoiro, por exemplo, em Roma, dando seu testemunho em outubro de 1992, pontuando seu relato com frases em latim, dando conta da passagem de Arturo Belano pela Espanha, por Barcelona, pela Catalunha, um relato ao mesmo tempo comovente, ridículo e solene diante da literatura (la poesía, esa mala pécora que me ha acompañado a traición durante tantos años); ou Jacobo Urenda, falando de Paris em junho de 1996, contando de quando conheceu Arturo Belano em Luanda, em Angola, um argentino e um chileno, e como Urenda fala que sempre que volta a Paris dessas viagens é como se não estivesse de volta, é como se "ainda estivesse sonhando" (a oscilação, sempre: ...seguimos conversando. O tal vez no. Tal vez allí nos separamos).

3) Ainda Urenda (que é fotógrafo, como el Ojo Silva, de Putas assassinas), que fala de Arturo Belano: Antes de marcharme tuvimos una última conversación. Su historia era bastante incoherente. Trata-se, sem dúvida, de uma incoerência que não é exclusiva de Belano, mas estrutural, sistêmica - uma história contraditória que mescla o subjetivo e o coletivo. Essa "incoerência" é a diáspora, a dispersão e o exílio, mas também uma espécie de cifra que leva o leitor - de forma detetivesca - a uma lógica não-cartesiana e não-fundacional, errática e descontínua (mi generación leyó a Marx y a Rimbaud hasta que se le revolvieran las tripas), ligada à pulsão e ao inconsciente (incoerente como a chaleira de Freud, por exemplo: eu devolvi a chaleira em perfeito estado, ela já estava com um buraco quando peguei e, além do mais, eu nunca peguei emprestada qualquer chaleira).   

sábado, 30 de julho de 2022

Sobriedade



1) "Havia pouco, no banco, ele tinha dito também que todos os anos que passaram a ensinar lhe tinham feito mais mal que bem. E comparou o seu caso com o ensino de Freud. As suas lições, como se fossem vinho, tinham embriagado as pessoas. Não sabiam usá-las com sobriedade. Seria eu capaz de compreender? Oh, sim, tinham descoberto uma fórmula. Exatamente" (O. K. Bouwsma, Conversas com Wittgenstein, 1949-1951, trad. Miguel Serras Pereira, Relógio D'Água, 2005, p. 55)

2) Wittgenstein no fim da vida - morre em 1951, aos 62 anos - observa seu percurso e lamenta a "herança" que deixa (ou, ao menos, aquilo que alguns fizeram do pharmakon que ele ofereceu: é interessante que ele fale de seu trabalho como um "vinho" que "embriaga", muito na linha de Sócrates e Platão, o único filósofo que lia (segundo o próprio Bouwsma em seu relato)). Sempre a história do pensamento como história de um endereçamento - a troca de cartas, mensagens, o recebimento enviesado de uma herança: Platão, Sócrates e o cartão-postal em Derrida; Sloterdijk lendo Heidegger pelo viés da carta em Regras para o parque humano...

3) "Eles não sabem que estamos trazendo a peste" (ou seja, a fórmula), disse Freud quando atravessou o oceano pela primeira vez para falar sobre psicanálise nos Estados Unidos. O mistério do ensinamento reside sobre um paradoxo: para ser efetivo, o mestre deve ser esquecido, suplantado, deixado para trás; o ápice da responsabilidade com relação ao destino dos discípulos toca o extremo oposto, da radical diferença entre o ponto de partida e o ponto de chegada. George Steiner: "Ensinar com grandiosidade é despertar dúvidas no aluno, é treiná-lo para divergir. É preparar o discípulo para partir. O verdadeiro Mestre deve, no final, estar só" (Lições dos mestres, trad. Maria Alice Máximo, Record, 2005, p. 128).

sexta-feira, 15 de julho de 2022

Cem vezes cada frase


"Enquanto andávamos, falou também da maneira como trabalhava. Trabalhava por surtos. Havia ocasiões em que se sentia tão em baixo que quase não podia acreditar que tivesse escrito o que escrevera. E tinha estado doente desde março e, agora, pela primeira vez desde essa altura, estava a começar a fazer alguma coisa" (p. 53)

"Começou a falar de Os irmãos Karamazov. Deve ter lido cem vezes cada uma das frases do livro. Aliocha não tinha espessura, mas Smerdiakov, pelo seu lado, era profundo. Era um personagem que Dostoiévski conhecia de fato. Era real. A seguir, disse que o livro deixara de lhe interessar muito. Mas que gostaria de voltar a Crime e castigo. E falou dos pormenores desse livro, a casa onde é cometido o assassinato, o quarto, a entrada, as escadas, etc. Mas o que o impressionava, o que lhe parecia mais extraordinário, era que Raskolnikov se tivesse esquecido de fechar a porta à chave. Isso, sim, era formidável! Depois de todos os preparativos que fizera" (p. 54-55)

"W. ficou para jantar. A vivacidade do seu espírito, a sua imaginação, é espantosa. Falou de Shakespeare em Stratford, do teatro, do novo uniforme de Gretchen, da mulher que queria que os filhos dessem expressão às suas personalidades, da própria tia que recomendara à mãe dele uma receita e que depois lhe mandara de casa duas amostras de bolo - uma de bolos feitos como devia ser e outra de bolos feitos como não devia ser, e uma vez mais da Doutora Louise Mooney, sua médica em Ithaca. Depois de jantar, já na sala, falou-me de Rush Rhees. De uma representação do Lear organizada por estudantes em Cambridge - o melhor Shakespeare que ele alguma vez vira" (p. 112) 

(O. K. Bouwsma, Conversas com Wittgenstein, 1949-1951, trad. Miguel Serras Pereira, Relógio D'Água, 2005)

sábado, 9 de julho de 2022

Névoas

1) O trabalho que Edward Said faz a partir de Joseph Conrad (Joseph Conrad and the Fiction of Autobiography, de 1966, é o marco inicial, mas Conrad aparece ao longo de todo o percurso de Said, que, de resto se dedicou a um trabalho semelhante no contato com vários outros autores) visa, em grande medida, rever criticamente a posição de autores como Habermas, para os quais a modernidade é um fenômeno exclusivamente europeu (o conceito que celebra o "progresso" é, na verdade, fruto de uma dialética de atração e repulsa diante do outro, do estranho e do estrangeiro, dos limites daquilo que se apresenta como o fora: Oriente, Índias, Américas, África, o fim do mundo, o coração das trevas...).

2) Trata-se, portanto, de documentar e descrever a falência de um projeto (um projeto de "iluminar" e "emancipar" que pressupõe uma vasta zona de sombra, de cegueira - blindness and insight, como diria Paul de Man; “Névoas há que olho nenhum dispersa”, como diz a epígrafe de Jean Paul em Os emigrantes, de Sebald). É possível dizer que, em parte, a descrição dessa falência começa já no fim do século XIX (precisamente o campo cronológico coberto por Conrad), quando Nietzsche fala da herança grega como uma deturpação de um saber prévio, heterogêneo e "oriental" e quando Freud inicia a prospecção do inconsciente (a ideia de que a vida consciente recebe interferência de processos "invisíveis" - exatamente como a vida "moderna" é informada pelas violências coloniais, que permanece distantes, recalcadas).

3) É possível também resgatar outro texto de Said por esse perspectiva, Freud e os não-europeus, no qual ele parte das ideias de Freud sobre Moisés e o monoteísmo para chegar em uma discussão acerca dos limites do projeto ocidental do "progresso", do "iluminismo" e da "democracia" (Said como "um humanista à moda antiga que foi forçado pelas exigências da sua história pessoal a participar de tipos de trabalho intelectual que contestavam a tradição na qual ele foi criado", como escreve Terry Eagleton). Um trabalho incipiente de reinvenção da matriz conceitual ocidental para além de sua circunscrição tradicional (a partir da América Latina, por exemplo), a partir da qual se percebe que mesmo um projeto inesgotável como o de Joyce é incompleto (Jewgreek is greekjew. Extremes meet - o contraste com Warburg é instrutivo: Atenas e Oraibi, todas são primas).

segunda-feira, 4 de julho de 2022

Metempsicose



1) Em seu romance Cauterio (Anagrama, 2022), Lucía Lijtmaer conta duas histórias paralelas, um capítulo para cada uma em alternância, até a condensação final, mágica (o final é uma atualização da metempsicose - a migração das almas através dos tempos - que Joyce coloca em questão em Ulisses e que, entre tantos, Ricardo Piglia também resgata em seu comentário de O último leitor). A estrutura de Cauterio faz pensar também em Palmeiras selvagens, de Faulkner (publicado em 1939 com o título escolhido pelo editor da Random House, que Faulkner não aprovou - preferia o título escolhido por ele, If I Forget Thee, Jerusalem).

2) Duas histórias de duas mulheres, uma delas na Espanha dos últimos anos, a outra em Londres e, em seguida, no "Novo Mundo", durante o século XVII (Deborah Moody, figura histórica, fundadora da cidade de Gravesend). Moody, contudo, é resgatada por Lijtmaer sobretudo por conta de seu envolvimento com a "bruxaria" em Salem, com o esforço de construção de uma comunidade de apoio mútuo entre mulheres (que envolvia também um conjunto de estratégias de leitura e interpretação emancipatória da Bíblia). Um detalhe revelador da trama: uma mulher é presa e condenada à morte pelo assassinato de um de seus filhos, que leva ao mar e o afoga; sua justificativa é a seguinte (p. 170):

"No podía seguir viviendo con la incertidumbre de que mis acciones pudieran representar tanto mi salvación como mi condena. Quería saber la verdad, y saberla cuanto antes." No le hizo falta decir mucho más. Margaret había ahogado a su hija para tener la certeza de que iba a ir al infierno.

3) Além de comentar de forma ficcional - enviesada e, por isso, cognitivamente estimulante - o clima peculiar de paranoia religiosa dos "pioneiros", a cena também evoca alguns juízos freudianos: em "Criminosos por sentimento de culpa" (de Alguns tipos de caráter encontrados na prática psicanalítica, 1916), Freud fala que a culpa precede o crime - o sujeito mata para ser punido, porque deseja, desde antes do crime, a punição. Em Moisés e o monoteísmo, Freud fala da importância dos impulsos assassinos (e suas respectivas punições) para a formação das instituições sociais. Piglia condensa essas reflexões de Freud em uma frase de Nome falso: "Não foi por acaso que Freud escreveu: a distorção de um texto é semelhante a um assassinato: o difícil não é cometer o crime, mas esconder o rastro".


domingo, 3 de julho de 2022

Ao redor do fogo


1) Em seu livro Exterminate all the Brutes, Sven Lindqvist retorna àquele que costuma ser uma figura-chave em todo discurso sobre o imperialismo europeu de fins do século XIX, Joseph Conrad (o livro de Lindqvist é de 1992, original em sueco; a tradução ao inglês saiu em 1996, depois, portanto, do lançamento de Os anéis de Saturno, no qual também Sebald retorna a Conrad e toca muitos dos temas de Lindqvist - genocídio, violência, a dialética do "iluminismo", a hipocrisia do discurso "civilizatório" europeu).

2) Lindqvist faz um trabalho interessante de rastrear os textos que estavam circulando nos últimos anos do século XIX, lidos por Conrad e absorvidos na tessitura geral de Heart of Darkness. Resgata, por exemplo, R. B. Cunningham Graham, amigo de Conrad, com quem se correspondeu extensamente, também ele escritor - publica o romance Mogreb-el-Acksa em 1898: um narrador se dirige a um círculo de amigos ao redor do fogo para relatar cenas da violência colonial (Lindqvist aponta que o narrador de Graham é uma sorte de "equivalente à cavalo" de Marlow e seu "círculo de marinheiros" - e podemos também ir em direção a um dos "inícios" da literatura, os poetas orais que contavam os versos de Homero ao redor do fogo). 

3) A ficção, portanto, como a expansão de círculos concêntricos de "conversações" - primeiro Graham, depois Marlow no interior do romance de Conrad e, por fim, a própria postura de Conrad diante de seus leitores na revista Blackwood's (onde a história é originalmente publicada). Penso no modo como, alguns anos depois (1936), Joseph Roth utiliza e subverte essa estrutura em Confissão de um assassino: dentro de um restaurante em Paris, durante uma noite, um exilado russo conta sua história de vida a um grupo indistinto e heterogêneo; o grupo não está ligado por laços, por uma confraria, estão reunidos ali por acaso, tomando um trago em uma noite fria; o narrador não é um amigo, não é alguém escolhido, ele se vale do acaso para exercitar a escuta e, em seguida, a escrita do relato (Roth opera no registro baudelaireano da cidade anônima e das relações fugazes, diverso daquele registro ainda um pouco "aristocrático" de Graham e Conrad).  

terça-feira, 28 de junho de 2022

Ano zero


1) Ainda no mesmo ensaio dedicado a Ernesto de Martino ("Verso 'La fine del mondo'. Sull'ultimo progetto di De Martino", La lettera uccide, Adelphi, 2021), Carlo Ginzburg recupera parte de uma intervenção sua feita em uma mesa-redonda em 1979. Tudo começa, explica Ginzburg, com a introdução escrita por Renato Solmi para a edição italiana de Minima Moralia, de Adorno; nesse texto, Solmi propõe uma convergência entre Il mondo magico (de Ernesto de Martino) e Dialética do Esclarecimento, de Adorno e Horkheimer. Aproveitando a sugestão de Solmi, Ginzburg propõe, na referida mesa-redonda (depois publicada no número 40 da revista Quaderni storici), uma categoria chamada "livros do ano zero" (p. 202).

2) A categoria faz homenagem ao filme de Roberto Rossellini, Germania anno zero, de 1948. Além dos livros de Ernesto de Martino e de Adorno/Horkheimer, Ginzburg faz referência às teses sobre o conceito de história, de Walter Benjamin, Apologia da história, de Marc Bloch, Une histoire modèle, de Raymond Queneau, Paura della libertà, de Carlo Levi, "todos escritos nos anos 40", escreve Ginzburg, e continua: "A ameaça de uma possível vitória do nazismo gerou o impulso para repensar a história desde as raízes, ou - no caso de Bloch - a repensar desde as raízes os objetivos e limites do conhecimento histórico" (p. 202).

3) Queneau escreve seu livro durante a ocupação nazista da França ("C'est en juillet 1942 que j'ai commencé d'écrire..."), mescla de diário íntimo e ensaio historiográfico que rumina os modelos de "eterno retorno" de Vico, Hegel e Nietzsche; Carlo Levi começa a escrever Paura della libertà entre 1939 e 1940, sorte de ensaio-romance, reflexão histórico-filosófica-antropológica sobre o fascismo e a guerra (na década de 1970, quando comenta o livro de Levi em Quaderni storici, Ginzburg faz referência à segunda edição, de 1975, que sai logo após a morte do autor; em 2018, que é também o ano que indica Ginzburg como aquele da última revisão de seu ensaio sobre Ernesto di Martino, a editora Neri Pozza lança uma terceira edição do livro de Carlo Levi, agora com uma introdução de Giorgio Agamben).