domingo, 4 de dezembro de 2022

Outra escritura



1) Chegando a Salvador, durante sua viagem pelo Brasil em 1936, Ernst Jünger vai à "Cidade Alta" e depois desce para "explorar as ruas". Sempre a atenção às próteses, aos dispositivos e à difusão da técnica: ele escreve que para diante das "lojas de instrumentos dentários e cirúrgicos": "tive a impressão que seria difícil encontrar tais instrumentos na maioria das clínicas de Berlim" (de onde vem esses instrumentos? Dos Estados Unidos?). Em outra vitrine, Jünger reencontra as fotografias, comentadas alguns dias antes: "as pomposas molduras das fotografias de grupos de pessoas" (Viagem atlântica, trad. Marcos A. P. Ribeiro, Edusp, 2022, p. 98).

2) A suposição de Jünger é que se trata "da última turma de formandos em medicina"; os professores "com barretes e túnicas pretas profusamente adornadas com peliças brancas" ocupam o centro da imagem; "a impressão geral era que seguiam modelos de Oxford", comenta Jünger, "ainda que, algumas vezes, um senhor moreno sobressaísse" (Jünger descendo uma rua de Salvador em 1936 e parando diante da vitrine de um fotógrafo, encontrando a imagem de uma turma de formandos de uma universidade brasileira cujos ritos e pompas imitam aqueles de uma universidade inglesa fundada em 1096).

3) Outro dispositivo ligado aos signos que recebe a atenção de Jünger: os livros; mais especificamente os livros vistos na biblioteca de um "convento", "espécie de ermida à beira-mar", ocupada por religiosos de origem alemã. "Meu guia, dom Alfonso Zehnle, mostrou-me, inicialmente, a capela e a imagem barroca da Virgem", escreve Jünger. A biblioteca conta com uma "rica literatura sobre teologia antiga"; "lamentavelmente, a despeito das vaporizações periódicas com sulfeto de carbono, encontrei a maioria dos volumes estragados pela ação dos insetos". Surge abruptamente uma nova cena de leitura, uma decifração de algo que Jünger não entende: "Quando se abre uma das folhas desses livros, corroída pelos cupins, vemos aparecer os caracteres de outra escritura, da qual tudo, ao final, foi sacrificado - pena, papel, poesia e, também, o poeta. A advertência é particularmente forte nos trópicos" (p. 102). 

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