quinta-feira, 29 de setembro de 2016

Benjamin visita Brecht

1) Dos diários de Brecht aos diários de Walter Benjamin, portanto, com um desvio por Lukács, Fredric Jameson e Kafka (Benjamin e Lukács se conheciam desde 1913). As conversas acontecem em 1934 e 1938, quando Benjamin vai visitar Brecht em Svendborg (na nota escrita por Jameson a cidade aparece na tradução como Svedenborg). Tanto em 1934 quanto em 38 eles conversam sobre Kafka (em 6 de julho de 1934 Benjamin escreve que, para Brecht, Kafka era um visionário que antecipou o que viria sem de fato vê-lo, e que a precisão de Kafka era a precisão de um "homem impreciso", um "sonhador"). 
2) A edição citada por Fredric Jameson dos diários de Benjamin (Walter Benjamin, Understanding Brecht. Londres: NLB, 1973, que acompanha a edição alemã de 1966, Versuche über Brecht) é, na verdade, composta dos textos que dedicou a Brecht, sendo o último deles - "Conversations with Brecht" - a transcrição dos diários. Essa edição apresenta a facilidade de reunir as entradas de 1934 e 1938, algo que se perde na organização dos Selected Writings de Benjamin em volumes. Em Understanding Brecht, contudo, uma das anotações de Benjamin está faltando, aquela de 6 de março de 1938 (porque ele ainda não está na casa de Brecht) - nessa edição, 1938 começa em 28 de junho (porque é 22 o dia de sua chegada).
3) As entradas de 6 de março e 28 de junho, no entanto, estão interligadas - o que faz do primeiro parágrafo da entrada do dia 28 um pouco confuso sem a presença da entrada anterior, na qual Benjamin conta seus sonhos recentes, que "nos últimos tempos" tem "marcado profundamente o andamento dos meus dias" (mais um caminho em direção a Kafka). No final da entrada de 6 de março, Benjamin fala de um sonho no qual vê uma paisagem, uma paisagem que contempla e que também percorre, como um mapa mas também como um ambiente. Era uma "terra devastada", marcada por montanhas e de alguma forma, escreve Benjamin, "eu sabia que era o labirinto do meu canal auditivo". "Mas o mapa era, ao mesmo tempo", escreve ele, "o mapa do inferno" (daí a estranheza do primeiro parágrafo de 28 de junho, pois Benjamin retoma o tema do labirinto tal como aparece em outro sonho, "um labirinto de escadas", um labirinto "que não estava coberto por todos os lados"). (Benjamin, Selected Writings, vol. 3, 1935-1938. Ed. Howard Eiland, Michael W. Jennings. Harvard Press, 2006, 335-336).       

terça-feira, 27 de setembro de 2016

Brecht + Lukács

"Deve ficar claro", escreve Fredric Jameson, "que a posição de Brecht a respeito de tais prazeres da cultura de massas atravessa a velha oposição entre populismo e elitismo de uma forma inesperada; sua função não é o prazer, mas pensar historicamente estética e cultura". Essa ênfase de Brecht o situa "obliquamente entre as tradições do modernismo artístico", escreve Jameson, e continua:
Brecht poderia ser um rude filistino como é o próprio Lukács quando se refere às correntes mais herméticas do modernismo; mas rejeitou a condenação que este faz das técnicas então experimentais em nome de um supostamente decadente "formalismo", propondo discutir o assunto em termos da "realidade" mais do que do "realismo". (...) esse antiquado debate parece ter sido substituído por outro, muito diferente, que opõe literatura em geral (realismo juntamente com modernismo) à cultura de massa, ou, em outras versões, ao visual ou ao espacial, ao televisual ou ao eletrônico. O pensamento de Brecht sobre o modernismo precisa ser umfunkioniert (reconstruído e readaptado, um de seus termos favoritos) (...) o conteúdo filosófico do esteticamente moderno deve ser encontrado na crítica da representação propriamente dita. (Fredric Jameson, Brecht e a questão do método. Trad. Maria Sílvia Betti. São Paulo: Cosac, 2013, p. 61-62).
Ao mencionar a crítica de Lukács das "correntes mais herméticas do modernismo", Jameson puxa uma nota de rodapé interessante: diz que, partindo das ideias de Brecht acerca de Lukács, "o caso de Kafka é mais complexo", pois "as observações perversas de Brecht sobre o fascismo de Kafka (para Benjamin, durante a estada deste último em Svedenborg: Walter Benjamin, Understanding Brecht. Londres: NLB, 1973, p. 108) precisam ser postas em perspectiva com sua apreciação posterior da antecipação, por Kafka, do movimento nazista; a observação posterior tem algo a ver com passividade e vitimização - entretanto, ela nos proporciona a suposta parábola chinesa 'das atribuições da utilidade': 'Numa mata há diversas espécies de troncos de árvore... dos mirrados eles nada fazem: estes escapam às atribulações da utilidade'". 

domingo, 25 de setembro de 2016

Diário de trabalho, 1

Fevereiro 39

O formalismo literário também não foi definido politicamente, isto é, não foi definido de modo algum. O bom Lukács filia-o simploriamente à decadência. A vanguarda literária é formada por burgueses decadentes, e fim de papo. O que se deve fazer é ignorá-los e ler os clássicos. Em parte nenhuma ele se ocupa dos formalismos das democracias e do Estado fascista. (Aumento da produção... dos meios de destruição, liquidação da luta de classes, em lugar da liquidação das classes etc.) O declínio da narrativa é visto como puro declínio. A montage é vista como um traço característico da decadência. Porque a unidade é rompida por ela, e o todo orgânico morre. Naturalmente se podia fazer também um estudo concreto da montage. (No filme Zuiderzee, de Ivens, que mostra a recuperação da terra fértil e a destruição paralela dos frutos da terra em outros lugares.) 

O outro pecado é o monólogo interior. Ninguém nunca examinou isto ou expôs seus defeitos reais (podia-se pegar o da mulher em Ulisses e o de Hitler que consta do Discurso em Coragem de Heinrich Mann). Não o teríamos então extirpado por completo como um estratagema artístico, mas presumivelmente teríamos mostrado suas imperfeições em condições concretas. Pois, é claro, como pura empatia isto deve ter gigantesco potencial de erro. Existe sem dúvida uma coisa como um movimento vazio e autógeno da forma, uma satisfação puramente formal de necessidades reais, uma violação dos fatos pelo tratamento generalizador etc. 

Mas pode-se também tratar questões formais formalisticamente, e isto é o que acontece no caso do destemido Lukács. Segundo esses marxistas as coisas estão neste pé: os realistas burgueses praticavam um realismo imperfeito, ainda tinham idola; tratemos de esquecê-los e tudo ficará em ordem. Seus fatos são aceitos e rearranjados. Marx não está mais equipado com as conclusões corretas do que Ricardo. Cholokhov é Balzac, depois de retirados os antolhos. Na realidade esses Cholokhovs não tem sequer um grama do materialismo de Balzac (uma notável infusão de romantismo, predileção pelos fatos, mania de colecionador, especulação etc) e tem inumeravelmente mais pontos cegos. A recomendação de estudar os realistas burgueses é totalmente formalista, já que não está ligada a nenhuma crítica conscienciosa da obra deles.

(Bertolt Brecht, Diário de trabalho: Volume I, 1938-1941. Trad. Reinaldo Guarany e José Laurenio de Melo. Rio de Janeiro: Rocco, 2002, p. 25-26).

quinta-feira, 22 de setembro de 2016

Diário de trabalho

25. 7. 38

Benjamin está aqui. Está escrevendo um ensaio sobre Baudelaire. Há boas ideias no texto. Ele mostra como a probabilidade de uma época sem história distorceu a literatura depois de 48. A vitória em Versalhes da burguesia sobre a comuna sofreu descontos antecipados. Chegou-se a um acordo com o mal. Que tomou a forma de uma flor. É útil ler isso. Estranhamente é o spleen que permite a Benjamin escrever isto. Ele usa como seu ponto de partida algo a que dá o nome de aura, que está ligada aos sonhos (devaneios). Diz ele: se você sente um olhar dirigido a você, mesmo nas suas costas, você o retribui (!). A expectativa de que aquilo para que você olha olhará de volta para você cria a aura. Supõe-se que isso está em decadência nos últimos tempos, junto com o elemento de culto na vida. Benjamin descobriu isso enquanto analisava filmes, onde a aura é decomposta pela reproduzibilidade da obra de arte. Uma carga de misticismo, embora sua atitude seja contra o misticismo. Este é o modo como o entendimento materialista da história é adaptado. É abominável. 

5. 10. 38

Do valor literário: que escritor é Gide, cujo belo livro sobre os prazeres terrenos o exército da frente popular francesa leva na mochila quando marcha! Ou então guarda o livro na mesinha de cabeceira e falta à marcha. E Hasek: seu grande livro está encolhendo hora após hora enquanto as zonas-V são ocupadas pelo exército de Hitler. Era o relato da vitória de um povo oprimido, o relato de Odisseu. Mas a vitória foi efêmera demais. Ele agora figura numa lista de livros suspeitos e trata de acontecimentos que as pessoas não conhecem mais. 

(Bertolt Brecht, Diário de trabalho: Volume I, 1938-1941. Trad. Reinaldo Guarany e José Laurenio de Melo. Rio de Janeiro: Rocco, 2002, p. 8-9; 21).

*

A ligação entre Gide e Benjamin, por sua vez, se dá por incontáveis fios; um dos fios possíveis é a entrevista que Benjamin fez com Gide em Berlim, em janeiro de 1928 (dez anos antes da temporada com Brecht na Dinamarca).

terça-feira, 13 de setembro de 2016

Problema no paraíso, 2

1) Lá pelas tantas, Zizek inicia um comentário a respeito de dois livros de Fredric Jameson - Representing Capital, de 2011, e Valences of the Dialetic, de 2009 (nas referências de Problema no paraíso o livro de Jameson está erradamente apontado como Violence of the Dialetic) - e seu diagnóstico acerca do "ponto extremo de unidade dos opostos na esfera econômica", ou seja, quanto mais produtividade, mais desemprego. Segundo Jameson, escreve Zizek, os desempregados devem fazer parte de uma categoria mais ampla, aquela dos "expulsos da história", "casos sem esperança ou terminais", aqueles que habitam as terras devastadas do planeta, no projeto continuado de manutenção das ruínas (via "guerra ao terror", desastres ecológicos e assemelhados). É necessária, portanto, a ampliação dessa categoria de excluídos, escreve Zizek, "como os espaços em branco dos mapas antigos" (os espaços em brancos dos mapas antigos sendo justamente o que despertou o interesse de Conrad pelas viagens e pela vida de capitão, como comenta Sebald em Os anéis de Saturno).
2) Zizek fala da necessidade de incluir um novo termo à proposta de Jameson - os "ilegalmente empregados", do mercado negro e as diferentes formas de escravidão. Isso permite a articulação dialética da posição de Jameson - os "excluídos" estão de fato "incluídos" a partir da perversa Aufhebung da exclusão (a simultânea suspensão/manutenção hegeliana). "Tomemos o exemplo do Congo de hoje", escreve Zizek, "por trás da fachada das 'paixões étnicas primitivas' mais uma vez explodindo no 'coração das trevas' africano, é fácil discernir os contornos do capitalismo global". 
3) No Congo, o Estado já não existe como unidade - chefes militares controlam parcelas do território, mantendo vínculos com corporações estrangeiras, que pagam pela exclusividade para a exploração dos recursos. "A ironia", escreve Zizek, "é que esses recursos minerais são usados em produtos de alta tecnologia, como laptops e celulares. Assim, em suma, esqueça o hábito de culpar pelos conflitos os 'costumes selvagens' das populações locais: basta tirar da equação as companhias estrangeiras de alta tecnologia e todo o edifício das 'guerras étnicas fomentadas por antigas paixões' irá desmoronar" (p. 30-31).  

segunda-feira, 5 de setembro de 2016

Problema no paraíso, 1

O jogo de paradoxos de Zizek tem como um de seus precursores o estudo conjunto de Adorno e Horkheimer, a Dialética do Esclarecimento. Inclusive a ideia da Igreja como a principal potência anticristã em atividade - Zizek cita a autocoroação de Napoleão e aquilo que o Papa Pio VII teria dito a ele: o senhor quer destruir a Igreja mas não vai conseguir: nós estamos tentando há séculos - foi levantada por Adorno e Horkheimer no "Excurso II", sobre Kant, Nietzsche e Sade. A obra deste último, no que tange à religião, afirmam os autores, "tira as consequências que a burguesia queria evitar", ou seja, "amaldiçoa o catolicismo, no qual vê a mitologia mais recente e, com ele, a civilização em geral". Sade, contudo, redireciona energias latentes, que já estão ali: Juliette, de Histoire de Juliette, ou les Prospérités du vice (publicado em 1801), "se dedica esclarecidamente, diligentemente, à faina do sacrilégio, que os católicos também tem no sangue desde tempos arcaicos".
Juliette professa "o gosto intelectual pela regressão", ou ainda, ""o prazer de derrotar a civilização com suas próprias armas" (uma fórmula que evoca aquela usada por Adorno e Horkheimer no prefácio de 1969 ao livro: "Crítica da filosofia que é, não quer abrir mão da filosofia", que por sua vez evoca outra do prefácio de 1944: "A aporia com que defrontamos em nosso trabalho revela-se assim como o primeiro objeto a investigar: a autodestruição do esclarecimento"). Juliette, à maneira de Zizek, se diverte caçando incoerências nos discursos estabelecidos - especialmente o religioso: "nada é mais cômico do que essa incoerência do dicionário católico: Deus, que quer dizer eterno; morto, quer dizer não eterno - Cristo, o Deus morto!" (Adorno e Horkheimer, Dialética do Esclarecimento: fragmentos filosóficos. Trad. Guido Antonio de Almeida. Zahar, 2006, p. 81-82). 
Eles escrevem também de Juliette: "Ela ama o sistema e a coerência", o que faz pensar em palavras recentes de Gayatri Chakravorty Spivak em entrevista, ao falar da desconstrução como uma crítica da "intimidade" e não da "distância": It’s critical intimacy, not critical distance. So you actually speak from inside. That’s deconstruction. My teacher Paul de Man once said to another very great critic, Fredric Jameson, “Fred, you can only deconstruct what you love.” Because you are doing it from the inside, with real intimacy. You’re kind of turning it around. It’s that kind of critique.