sexta-feira, 31 de janeiro de 2020

Um trocadilho de Nietzsche

Ecce homo é uma espécie de autobiografia crítica de Nietzsche na qual apresenta comentários sobre suas obras anteriores. No capítulo dedicado ao comentário de Humano, demasiado humano, Nietzsche retoma (mais uma vez) Wagner e busca dar a exata medida da novidade de sua percepção acerca do artista, comparando suas ideias com aquelas dos contemporâneos.

As vítimas da vez são dois críticos musicais, Karl Friedrich Nohl e Richard Pohl. Diante desses dois nomes sonoros, Nietzsche elabora a frase:

"Nohl, Pohl, Kohl com graça in infinitum!"

A frase de Nietzsche, comenta o tradutor Paulo César de Souza, não só produz efeito cômico ao montar os três sobrenomes em crescendo, como é paródia de um poema de Goethe, "Oráculo da primavera" (Frühlingsorakel), que termina com a imitação de um cuco: "Cou cou cou Cou Coucou / Cou, Cou, Cou, Cou, Cou, Cou, Cou, Cou, Cou / Mit Grazie in infinitum". Além disso, o substantivo comum Kohl significa "couve", "repolho", e é também usado coloquialmente no sentido de "bobagem" ou "conversa fiada" (Nietzsche, Ecce homo, trad. Paulo César de Souza, Cia das Letras, 1995, p. 73 e 126).

Não é por acaso que Nietzsche manipula os nomes aqui de forma encantatória - ele sabe que o poder sobre o nome é poder sobre o corpo, conhece as histórias arcaicas dos enigmas sobre os nomes das divindades (Nietzsche, como filólogo, sabe que a verdade de um nome está na sobreposição - e na complexa historicidade - de suas camadas). Faz pensar no que Benjamin fará 50 anos depois com o mesmo Goethe, com o Goethe das Afinidades eletivas, o Benjamin que escreve: Nada vincula tanto o ser humano à linguagem quanto seu nome.

segunda-feira, 27 de janeiro de 2020

Poetas no exílio



A emigração dos poetas

Homero não tinha lar
E Dante teve que abandonar o seu.
Li Po e Du Fu vagaram por guerras civis
Que engoliram 30 milhões de pessoas.
Eurípides ameaçaram com processos
E calaram Shakespeare no leito de morte.
Villon foi procurado não só pela musa
Mas também pela polícia. 
Chamado de "caro"
Lucrécio foi para o exílio
Heine idem, e assim também
Brecht sob o telhado de palha danês.



(Bertolt Brecht: Poesia, introdução e tradução de André Vallias, Perspectiva, 2019, p. 291)



quinta-feira, 23 de janeiro de 2020

A mente do moralista

Freud era fascinado pelas marcas de "desdivinização" no pensamento e na cultura, pelos eventos de ruptura de uma situação imaginária de tranquilidade e harmonia: ele dá os exemplos de Copérnico, Galileu e Darwin, responsáveis pelo aprofundamento da descentralização do sujeito (não mais centro do universo; não mais centro dos seres vivos).

Tal ruptura é internalizada por Freud: com a ideia do inconsciente, o sujeito já não é mais "senhor" em sua "própria casa", ou seja, a performance do sujeito responde muitas vezes a estímulos subterrâneos, enviados de complexos mecanismos de repressão e recalque, frequentemente organizados desde a infância. Outra figura de autoridade que Freud ajudou a questionar foi Kant: o imperativo da moral, que deve ser categórico e internalizado por igual entre todos, é disseminado entre incontáveis formas de adaptação diante da moralidade (que agora é historicamente situada, e não mais enviada do alto, eterna e imutável).

Não se trata mais de aplicar o universal a cada vida individual, mas de tornar o universal aplicável a cada caso específico. Nesse sentido, Freud também dissolve o projeto centralizador de Nietzsche, que fala da "vontade" como outrora se falava da "Verdade". Para Freud, as diferentes abordagens do sujeito diante do mundo são estratégias de autodescrição, autocriação, automodelagem; o trabalho psicanalítico envolve a elaboração consciente dessas estratégias inconscientes de sobrevivência, ou seja, transformar a performance automática em narrativa (Susan Sontag fala disso em seu primeiro livro, Freud: The Mind of the Moralist, de 1959, publicado com o pseudônimo "Philip Rieff").

sábado, 18 de janeiro de 2020

Stauffenberg

Na sexta lição de Elizabeth Costello (no livro de mesmo nome, publicado por J. M. Coetzee em 2003) a questão tratada é aquela do "problema do mal". Ela se declara "sob o mau feitiço" [under the evil spell] de um romance de Paul West, The Very Rich Hours of Count von Stauffenberg, sobre o oficial aristocrata (Claus Philipp Maria Schenk Graf von Stauffenberg, 1907-1944) que liderou o complô para matar Hitler em julho de 1944. Costello está impressionada com o romance e, ao mesmo tempo, horrorizada com a descrição da violência cometida pelo carrasco de Hitler na execução dos conspiradores. Segundo Costello, a representação da violência levada a cabo por West é obscena, não deveria ser pensada, escrita ou lida.
*
Em seu livro de 2017, Autoritratto nello studio, Agamben comenta que a mentalidade, o estilo e os interesses de Walter Benjamin não podem ser adequadamente compreendidos sem levar em consideração sua aproximação ao círculo de Stefan George. Aproximação e, em seguida, distanciamento, uma vez que muito cedo Benjamin se deu conta, escreve Agamben, que o círculo de George era composto de uma geração "predestinada à morte". Valorizavam uma "Alemanha secreta", mas, ainda assim, uma "Alemanha" (ou seja, um ideal nacional sobreposto à vida). Havia uma subterrânea solidariedade entre as duas Alemanhas (a secreta e a oficial), escreve Agamben, e um sinal dessa solidariedade "é o fato que o atentado a Hitler de 20 de julho de 1944, obra de um oficial que provinha do círculo de George, estivesse fadado a falhar" (p. 106-107). 

terça-feira, 14 de janeiro de 2020

De Kafka a Bulgakov

Ainda em seu livro sobre a renúncia de Bento XVI (O mistério do mal), Agamben comenta a partir de Paulo essa característica da Igreja que, no fundo, é uma característica da linguagem e do pensamento: Cristo e Anticristo convivem como substâncias no interior de uma mesma entidade, mal e bem, coesão e implosão. O evento messiânico é aquele que suspende essa tensão, resolvendo-a tanto historicamente quanto metafisicamente: de certa forma, o advento do Messias instaura a completude do arco hermenêutico e, assim, tudo fará sentido, tudo se explicará e a impureza da mescla entre bem e mal será eliminada.

A ficção de Kafka, por exemplo, é muitas vezes lida - por Benjamin, Blanchot, Agamben - como um reflexão sobre essa completude impossível do arco hermenêutico (o morto que nunca chega ao fim da escada; a porta que nunca se abre; o castelo que nunca é alcançado, etc). Um contemporâneo de Kafka (1883-1924), Mikhail Bulgakov (1891-1940), rompe essa incompletude não pela via messiânica redentora de Paulo, mas na ruptura da harmonia pelo viés contrário: Satanás e seu séquito estão em visita a Moscou, encontram poetas, editores, burocratas e todo tipo de pessoas tentando levar a vida em pleno regime comunista. Bulgákov levou quase dez anos para terminar O mestre e Margarida, ditando à mulher as últimas revisões semanas antes de morrer, em março de 1940.

A epígrafe de Bulgakov vem do Fausto de Goethe:

-...mas, quem é você, afinal? 
- Sou a parte da força que quer sempre o mal, mas sempre faz o bem

Não é disso que fala Agamben através de Paulo e dos Pais da Igreja? Goethe, como de hábito, funciona como uma espécie de centro de gravidade da tradição, absorvendo e reconfigurando em si camadas infindáveis de sentido: uma "força" guarda em si "mal" e "bem"; além disso, "querer" e "fazer" estão em íntima correlação, ainda que permaneçam em tensão (por isso Judas precisa trair; por isso Jó precisa sofrer, etc).


segunda-feira, 6 de janeiro de 2020

Instituições

Se a literatura é uma instituição - uma "estranha instituição", como diz Jacques Derrida, justamente porque está sempre às voltas com a própria dissolução -, deve ser encarada como a instituição que torna possível todas as instituições, uma arqui-instituição (se o limite da linguagem é o limite do mundo, como escreveu Wittgenstein no Tractatus, o limite da linguagem como instituição marca o limite da própria constituição potencial das instituições).

Em seu livro sobre a renúncia de Bento XVI (O mistério do mal), Agamben escreve que o gesto da renúncia lançou luzes para o corpo dual da Igreja, espécie de contradição constitutiva da própria instituição, que guarda em si, simultaneamente, duas naturezas: uma maléfica e outra benéfica, ou ainda, o Cristo e o Anticristo. "Esse homem, que era chefe da instituição que arroga a si ter o mais antigo e significativo título de legitimidade, colocou em questão, com sua decisão, o próprio sentido do título" (trad. Silvana de Gaspari e Patricia Peterle, UFSC/Boitempo, 2015, p. 12).

É precisamente do mais alto da legitimidade da instituição que deve vir o gesto de rompimento com a dinâmica estabelecida na e pela instituição (de forma paradoxal evocando o gesto primeiro de Jesus, com seu sacrifício - algo da ordem do dispêndio absoluto sem chance de retorno ou capitalização de que fala Georges Bataille). Na exposição de Agamben (lendo historicamente o gesto de Bento XVI e suas raízes teológicas em Paulo (Segunda Epístola aos Tessalonicenses), Agostinho e Ticônio), a Igreja funcionaria como uma espécie de dispositivo de retardamento dos próprios ensinamentos escatológicos, dizendo uma coisa e fazendo outra, em uma perpétua estratégia de auto-cancelamento, que é também, paradoxalmente, sua única forma de sobrevivência terrena (nessa perspectiva, para retornar a Derrida, seu discurso é autoimune, ataque protetor contra si mesmo, ou mesmo farmacológico, veneno e remédio em sobreposição constante). 

sexta-feira, 3 de janeiro de 2020

Movimentos

"Os primeiros anos do século XX foram definidos com razão como a 'era dos movimentos'. Não somente os partidos cedem o lugar aos movimentos (assim como o movimento operário, o fascismo e o nazismo também se definem como 'movimentos'), tanto à direita quanto à esquerda do ordenamento político, mas também nas artes, nas ciências e em todo o âmbito da vida social os movimentos substituem a tal ponto as escolas e as instituições que é praticamente impossível fornecer uma lista exaustiva (é significativo que, em 1914, quando Freud buscou um nome para sua escola, tenha decidido ao fim por 'movimento psicanalítico').

Característica comum aos movimentos é uma decidida tomada de distância com relação ao contexto histórico no qual se produzem e à visão de mundo da época e da cultura à qual se contrapõem. Nesse sentido, também o movimento litúrgico participa dessa reação contra o individualismo humanista e a racionalização do mundo que definem muitos movimentos que se seguiram à Primeira Guerra Mundial" 

(Giorgio Agamben, Opus Dei, trad. Daniel Nascimento, Boitempo, 2013, p. 41).