terça-feira, 14 de janeiro de 2020

De Kafka a Bulgakov

Ainda em seu livro sobre a renúncia de Bento XVI (O mistério do mal), Agamben comenta a partir de Paulo essa característica da Igreja que, no fundo, é uma característica da linguagem e do pensamento: Cristo e Anticristo convivem como substâncias no interior de uma mesma entidade, mal e bem, coesão e implosão. O evento messiânico é aquele que suspende essa tensão, resolvendo-a tanto historicamente quanto metafisicamente: de certa forma, o advento do Messias instaura a completude do arco hermenêutico e, assim, tudo fará sentido, tudo se explicará e a impureza da mescla entre bem e mal será eliminada.

A ficção de Kafka, por exemplo, é muitas vezes lida - por Benjamin, Blanchot, Agamben - como um reflexão sobre essa completude impossível do arco hermenêutico (o morto que nunca chega ao fim da escada; a porta que nunca se abre; o castelo que nunca é alcançado, etc). Um contemporâneo de Kafka (1883-1924), Mikhail Bulgakov (1891-1940), rompe essa incompletude não pela via messiânica redentora de Paulo, mas na ruptura da harmonia pelo viés contrário: Satanás e seu séquito estão em visita a Moscou, encontram poetas, editores, burocratas e todo tipo de pessoas tentando levar a vida em pleno regime comunista. Bulgákov levou quase dez anos para terminar O mestre e Margarida, ditando à mulher as últimas revisões semanas antes de morrer, em março de 1940.

A epígrafe de Bulgakov vem do Fausto de Goethe:

-...mas, quem é você, afinal? 
- Sou a parte da força que quer sempre o mal, mas sempre faz o bem

Não é disso que fala Agamben através de Paulo e dos Pais da Igreja? Goethe, como de hábito, funciona como uma espécie de centro de gravidade da tradição, absorvendo e reconfigurando em si camadas infindáveis de sentido: uma "força" guarda em si "mal" e "bem"; além disso, "querer" e "fazer" estão em íntima correlação, ainda que permaneçam em tensão (por isso Judas precisa trair; por isso Jó precisa sofrer, etc).


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