sexta-feira, 31 de dezembro de 2021

Transatlânticos


1) Onde termina uma coisa e começa outra? Um problema de fronteiras, limiares, pertencimentos, etc. É disso que trata Ricardo Piglia quando propõe a inclusão de Gombrowicz no cânone da literatura argentina do século XX - ao falar "sobre o romance argentino", em 1986, Piglia fala do "romance polonês", de Transatlântico, "um dos melhores romances escritos neste país" (está em Formas breves): "Arl, Macedonio, Gombrowicz. O romance argentino se constrói nesses cruzamentos. O romance argentino seria um romance polonês: quero dizer, um romance polonês traduzido para um espanhol futuro, num café de Buenos Aires, por um bando de conspiradores liderados por um conde apócrifo" (p. 69).

2) O romance de Gombrowicz, escrito em Buenos Aires, foi publicado em 1953 em Paris, pelo Instytut literacki. A trama é muito próxima aos eventos da vida de WG: durante e logo após a II Guerra Mundial, Witold, um escritor polonês, conta de sua vida perdido na Argentina, sem dinheiro, sem perspectivas. O ano de 1953 acaba marcando outro ponto de convergência, paralelo ao romance de Gombrowicz: é o ano da viagem de Wilcock à Inglaterra, iniciando o percurso que leva ao seu estabelecimento definitivo na Itália a partir de 1957 (em seu Wilcock - os trechos de seus diários dedicados a ele -, Bioy Casares informa que Rodolfo viajou em 24 de maio de 1957).

3) Gombrowicz nasce em 1904, morre em 1969; Wilcock nasce em 1919, morre em 1978; aquilo que o primeiro escreveu em polonês faz parte da literatura argentina tanto quanto aquilo que o segundo escreveu em italiano (com eles, nessa década de 1950, se encerra também a preponderância dos navios nas viagens, algo que aparece também no relato de Thomas Mann sobre sua "travessia com Quixote", por exemplo - alguns relatos marcam 1958 como o ponto de transformação, com as operações da BOAC – British Overseas Airways Corporation entre Londres e Nova York).

domingo, 26 de dezembro de 2021

A grande abóbora



1) A frase de abertura de Entre los indios, de César Aira (história que leva a data 4 de maio de 2012 no final), registra a aparição do demoníaco entre os índios: La cabeza de Pillán (el diablo) asomaba lentamente de la tierra, como un gran zapallo, apartando piedras y pasto con un rumor de derrumbe. O efeito em cascata das referências que nos levaram até este ponto: estamos em plena evocação daquilo que é soterrado e ressurge, dos "frutos terrestres" (o poema em prosa que André Gide escreve em 1895, publica em revista em 1896 e em livro em 1897, espécie de "contracanto" alegre ao De Profundis de Oscar Wilde, escrito na prisão em 1897).

2) O diabo surge da terra como un gran zapallo, como uma abóbora, um fruto a ser colhido, repartido, compartilhado e consumido - como na cena da gravura do século XIII, presente em uma Bíblia judaica conservada na Biblioteca Ambrosiana de Milão, citada por Agamben no primeiro capítulo de O aberto, mostrando o banquete depois do Juízo Final, quando será servido o Leviatã aos convidados, cada um com uma coroa na cabeça, cabeças de animais por baixo das coroas. A irrupção do demoníaco - como em Grünewald ou Bulgakóv - serve também de ensejo para a criação de uma fábula sobre a irrealidade da realidade, com ênfase na capacidade de um determinado indivíduo de perceber tanto o fantástico quanto a capacidade desse fantástico de passar ignorado pelo restante do mundo (é o inframince duchampiano que Aira faz circular na ficção). 

3) A aparição de Pillán, anjo caído, como abóbora, como "fruto da terra", faz parte daquela conexão alto/baixo, serpente/raio, de que fala Warburg no Ritual da serpente (a "aparição" deve necessariamente tomar as feições dos frutos da estação, daí a importância da conjunção astronômica e da crítica pós-colonial: onde e quando, exatamente, aparece esse demônio?). O dispositivo do demônio que sai da terra é também aquele que garante o inesperado da ficção: é impossível saber com certeza os desdobramentos desse "fruto", desse "dom" - como acontece com as pedras preciosas que vem das entranhas da terra em Leskov ("Alexandrita"), ou os corais das profundezas do oceano em Joseph Roth (O Leviatã, 1938).

quarta-feira, 22 de dezembro de 2021

O salto


Durante seu longo comentário sobre Hegel em Meta-História, Hayden White interrompe o fluxo homogêneo da argumentação para estabelecer um paralelo com Paul Valéry (um salto de 100 anos), reiterando sua filiação intelectual com a cena modernista: a história "ensina precisamente nada", afirma Valéry "num tom muito mais amargo quase um século depois" de Hegel, escreve White. Hegel teria dado ênfase ao "precisamente" e não, como fez Valéry, ao "nada", continua White. O ensinamento da história, portanto, não está naquilo que é "preciso" em cada relato, mas nas "transformações da consciência" geradas pelas tentativas de construir os relatos (p. 113).

Valéry retorna rapidamente na argumentação de White algumas páginas depois, já no capítulo dedicado a Michelet. White traz o exemplo de Heine, que, "no exílio em Paris", inicia "uma ofensiva contra o saber acadêmico" engessado que seria seguida por Marx e Nietzsche, culminando na última década do século "numa revolta generalizada de artistas e cientistas sociais contra o fardo da consciência histórica em geral" (p. 150). Heine precede Nietzsche em sua defesa dos "direitos da vida" no presente diante das "pretensões do passado morto", um "ataque que correu o risco de se tornar um clichê na literatura dos anos de 1880 (Ibsen), 1890 (Gide, Mann) e no início da década de 1900 (Valéry, Proust, Joyce, D. H. Lawrence)" (p. 151).

domingo, 19 de dezembro de 2021

A ilha dos filósofos

"Eu me pergunto se se poderia conseguir criar um contato num caso simulado onde, digamos, quatro filósofos ingleses de primeira linha e quatro filósofos franceses de primeira ordem [quem define a "primeira linha", a "primeira ordem"?] fossem enviados para uma ilha deserta durante pelo menos três anos e fossem obrigados a falar entre si sobre questões filosóficas (não tenho nenhuma dúvida de que começariam a fazê-lo, mas seria preciso convencê-los a persistir a despeito de todos os obstáculos). Então, caso um deles não compreendesse o outro, se queixasse e não quisesse mais fazer concessões, poder-se-ia simplesmente pedir-lhes, como uma proeza, que tentassem falar na língua do outro. 

Não é possível provocar uma comunicação a não ser por uma crítica sistemática inteligível para pessoas que falam línguas diferentes. A tarefa mais difícil para os filósofos dos diversos campos é a da tradução. Talvez seja um caso sem esperança. Mas recuso-me a ser pessimista [uma afirmação que se desfaz em contradição naquilo que diz no final, ao comentar seu "condicionamento", como se fosse o cachorro de Pavlov]

Eu realmente compreendi o significado do que Kojève dizia a respeito de seu Hegel marxificado, e a propósito de Marcuse também. Muito embora nos tornássemos amigos e falássemos de música e de uma porção de outros assuntos, não consegui compreender uma palavra dos escritos filosóficos de um Theodor Adorno, que se admira muito na França, pelo que me disseram; nem, eu o confesso, de alguém próximo de meu amigo Alan Montefiore, Jacques Derrida [sempre o alvo preferido quando se trata de "incompreensão", o que não deixa de ser irônico tendo em vista que a filosofia de Derrida é a da "escuta" e a da "abertura ao outro" (e da tradução) por excelência]. Deve-se isto, provavelmente, ao meu condicionamento filosófico, do qual não posso me desfazer devido à minha idade avançada. No que me concerne, temo que não haja esperança" (Isaiah Berlin: com toda liberdade - entrevistas com R. Jahanbegloo, trad. Fany Kon, Perspectiva, 1996, p. 77-78).

quinta-feira, 16 de dezembro de 2021

A incerteza


1) Ao comentar, em seu livro Meta-História, a obra dos "quatro mestres" da "escrita histórica" do século XIX (Michelet, Ranke, Tocqueville e Burckhardt), Hayden White enfatiza como se trata de uma questão de "autoconsciência" por parte de quem escreve: poucos estavam "sensíveis ao elemento poético presente em todos os esforços de descrição narrativa", escreve ele, Droysen, Hegel e Nietzsche, "mas por poucos outros". É preciso deixar de lado - recalcar - qualquer "resíduo conceptual significativo" ou qualquer "preformação ideológica dos materiais", deixando a a história falar por si própria (p. 153). 

2) O apego à possibilidade de eliminar todo "resíduo conceptual" é tão insistente que alcança um autor como W. G. Sebald, que em sua entrevista com James Wood em julho de 1997 (publicada na revista Brick) afirma o seguinte: I think that fiction writing, which does not acknowledge the uncertainty of the narrator himself, is a form of imposture and which I find very, very difficult to take. Any form of authorial writing, where the narrator sets himself up as stagehand and director and judge and executor in a text, I find somehow unacceptable. I cannot bear to read books of this kind. Retorna, no discurso e na poética de Sebald, a preocupação com os "modos de consciência" ativados na escrita da história. 

3) Ao analisar os Cursos sobre Estética de Hegel, Hayden White aponta que seu estudo da poesia começa por um exame da linguagem como "instrumento de mediação do homem entre sua consciência e o mundo"; prosa e poesia se diferenciam pelos "modos" diversos de apreensão do mundo, com o drama surgindo como um terceiro termo, dedicado a conceber a "modalidade do movimento": nesse ponto, continua White, Hegel analisa a história "como a forma de prosa mais próxima, por sua imediatez, da poesia em geral e do drama em particular. De fato, Hegel não só historicizou a poesia e o drama como também poetizou e dramatizou a própria história" (p. 102). Em suma, para Hegel, a história é uma "forma de arte literária" (p. 154), pois é só ao acessar a consciência de sua ficção/fabricação que a história se torna um "tipo particular" de proposição acerca do mundo.

domingo, 12 de dezembro de 2021

Beckett, 1961


Um volume publicado em 1998 reúne parte dos vários escritos esparsos de Harold Pinter, Nobel de Literatura em 2005: intitulado Various Voices. Prose, Poetry, Politics, cobre o período de 1948 a 1998. Dois dos textos são dedicados a Samuel Beckett, o primeiro de 1954, intitulado "Samuel Beckett", e o segundo de 1990, intitulado "A Wake for Sam", um tributo televisionado pela BBC. "Quanto mais ele esfrega meu nariz na merda, mais grato sou a ele", escreve Pinter sobre Beckett em 1954 (lembrando que Esperando Godot foi publicada em setembro de 1952 e apresentada pela primeira vez em janeiro de 1953). He leaves no stone unturned (p. 55).

No tributo de 1990, Pinter diz que só conheceu Beckett em 1961, em Paris: "ele foi extremamente amigável". Eu não imaginava que ele dirigisse tão rápido, escreve Pinter: "com seu pequeno Citroën ele me levou de bar em bar ao longo da noite, sempre muito veloz". Pararam finalmente às quatro da madrugada em um lugar em Les Halles onde tomaram sopa de cebolas. "Eu estava de tal forma sobrecarregado", escreve Pinter, "que deitei minha cabeça na mesa". Quando levantou, Beckett não estava mais lá - "talvez tenha sido tudo um sonho", pensa Pinter. Quase uma hora depois ele vê Beckett retornando com uma sacola: "Percorri toda a cidade atrás disso, finalmente encontrei", diz Sam. Dentro havia uma latinha de aspirinas, escreve Pinter, which indeed worked wonders (p. 56). 

quarta-feira, 8 de dezembro de 2021

Benjamin, Valéry


1) Ao comentar Baudelaire e o século XIX (a lírica, o capitalismo, a vida nas grandes cidades), Walter Benjamin estabelece um elo entre o autor das Flores do mal e o autor do Cemitério marinho, ou seja, Paul Valéry. Para Benjamin, Valéry retoma a tarefa de descrever a discrepância entre "vida natural" e "arte", salientada exponencialmente pela transformação nas "técnicas" de captura do real e produção das artes (parte dessa ruptura está sendo descrita também por Heidegger, mais ou menos na mesma época, até culminar em Ser e tempo, de 1927 - Le Cimetière marin é de 1920).

2) Em Benjamin, Valéry aparece como um atualizador das intuições de Baudelaire: tanto sua poesia quanto suas reflexões sobre as "crises" do "espírito" indicam uma insuficiência do humano diante da proliferação de dispositivos, técnicas e tecnologias - como a arte pode operar como uma sorte de estação de gravação de estímulos? Como uma sorte de arquivo de inscrições que já não passam pela subjetividade criadora para existir, mas pela pura troca de emissões organizada entre os dispositivos e a partir dos dispositivos? A essa primeira triangulação - Baudelaire/Valéry/Benjamin - corresponde uma segunda, posterior, Foucault/Deleuze/Agamben, que organizam algumas das relações entre dispositivo e criação.

3) Algo na experiência de leitura da obra de David Markson passa por esses elementos. Seus "romances" não são apenas feitos de fragmentos que desafiam o gesto automático do leitor de "fazer sentido" (de articular em um todo provisório a manifestação dos fragmentos); em paralelo a isso, Markson também torna o sujeito do fragmento "fantasmático" ou "espectral", sem fundo ou substância (cuja materialidade é a bobina da máquina de escrever ou a caixa de sapatos onde guardava as fichas antes da montagem-transformação em "romance"). Antes de remeter a uma voz autoral centralizada, os fragmentos de Markson remetem à própria disposição do fragmento na página, ao movimento de arquivamento desses fragmentos em um todo nunca realizável ou atualizável, sempre em devir, em processo.

segunda-feira, 6 de dezembro de 2021

Monsieur Wilde

"Em 1891, quando Oscar Wilde era o que Paris chamava 'le great event', ele conheceu Proust, que o convidou para jantar. Na noite em questão, Proust chegou em casa com alguns minutos de atraso. 'O cavalheiro inglês está aqui?', ele perguntou ao criado. 'Sim, senhor, ele chegou cinco minutos atrás; ele mal tinha entrado na sala quando perguntou onde ficava o banheiro, e ainda não saiu de lá'.

Proust correu para o final do corredor. 'Monsieur Wilde, o senhor está passando mal?', o anfitrião ansioso perguntou da porta. 'Ah, aí está o senhor, Monsieur Proust', Wilde respondeu, aparecendo majestosamente. 'Não, eu não estou nem um pouco doente. Achei que ia ter o prazer de jantar sozinho com o senhor, mas me levaram para a sala de visitas. Eu olhei para a sala e no fundo estavam os seus pais, e me faltou coragem. Até logo, meu caro Monsieur Proust, até logo...' Depois, os pais de Marcel disseram a ele que, examinando a sala de visitas, Wilde tinha exclamado: 'Como a sua casa é feia!'"

(Julian Barnes, O homem do casaco vermelho, trad. Léa Viveiros de Castro, Rocco, 2021, p. 155)

quinta-feira, 2 de dezembro de 2021

Jogos


Em suas Philosophical Investigations - livro póstumo publicado em 1953 -, Ludwig Wittgenstein defende a ideia de que não é possível (ou recomendável) pensar isoladamente o significado das palavras: as palavras atuam dentro de jogos linguísticos, colocando em movimento certas formas de vida; são esses "jogos" e essas "formas de vida" que devem ser investigados. O que faz a linguagem quando é usada em determinada situação, para além do estrito significado de cada palavra e frase? A combinação dos termos e o posicionamento desses termos dentro de um "jogo" (um contexto, uma situação de troca, diálogo, exposição) extrapola o significado dicionarizado de cada termo capturado individualmente (the meaning of a word is its use in the language, seção 43).

*

Todo uso da linguagem está inserido em um jogo, que repercute por sua vez na organização de uma forma de vida - o uso da linguagem está ligado ao modo como se vê o mundo e como se descreve seus processos e elementos. Duchamp, por exemplo, a partir de 1914, define "objetos cotidianos" (pá de tirar neve, escorredor de garrafas) como "obras de arte", agindo tanto sobre os termos como sobre os objetos, mas deixando claro desde o início que tal operação não funciona em qualquer momento, em qualquer contexto, diante de qualquer comunidade (o procedimento de Duchamp não pode ser simplesmente "repetido": é preciso que palavras, objetos, jogos linguísticos e formas de vida estejam na conjunção precisa para que a "mágica" aconteça).