segunda-feira, 31 de julho de 2023

Bardolatrias


O motivo dantesco da transformação/metamorfose é particularmente eloquente no caso da passagem de Virgílio a Beatriz, no caso da passagem do Purgatório ao Paraíso e no caso da passagem do latim à língua vulgar; no que diz respeito a Virgílio, essa ideia de transformação é refratada em diferentes situações, como aquela que diz respeito à transformação da Eneida em obra "santa" ou "religiosa", um texto sagrado nos moldes do Êxodo bíblico por exemplo (o que gera, no final, a grande transformação de um poema a outro, de um poeta a outro, a passagem que leva da Eneida pagã à Comédia cristã - Virgílio, como Moisés, não pode entrar na Terra Prometida). 

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Harold Bloom retoma esse desejo de transformação/metamorfose em seu livro monumental sobre Shakespeare, especialmente no que diz respeito à tentativa de transformar um texto secular em texto sagrado. Os textos de Shakespeare, argumenta Bloom, transformaram o próprio tecido que fabrica o que é o "humano", por isso sua obra "inventa o humano": a "Alta Bardolatria Romântica", como escreve Bloom, é apenas a mais organizada das seitas (Bardolatry is excessive admiration of William Shakespeare. Shakespeare has been known as "the Bard" since the eighteenth century. One who idolizes Shakespeare is known as a bardolator), pois a "perene supremacia" de Shakespeare é incontornável, informando nossa linguagem e nossa psicologia.  

quinta-feira, 27 de julho de 2023

Arrigo Beyle



1) Leio o livrinho de Romain Colomb, no original Notice sur la vie et les ouvrages de H. Beyle, mas na edição italiana a que tive acesso simplesmente Stendhal, mio cugino, Stendhal, meu primo, cheio de anedotas e revelações sobre Stendhal: o ferimento no pé em um duelo; como gostava de manter as unhas das mãos sempre muito longas e muito limpas; como a mãe de Stendhal lia Dante e Tasso em voz alta em casa em sua infância (filiação italiana absolutamente atípica na França de fins do século XVIII); como o escritor não gostava da calvície que o ameaça cada vez mais ano após ano – e como penteava o cabelo para frente, para esconder as entradas, o que se percebe claramente nos retratos. 

2) Evidentemente se destaca a figura de Napoleão, como já se destacava também em Vertigem, de Sebald, que dedica a primeira parte de seu primeiro romance à figura de Stendhal (é no confronto com o livro de Sebald que leio o livro de Colomb): é gritante também a diferença de densidade e estilo entre Colomb e Sebald, o modo como Sebald consegue condensar, já no parágrafo de abertura, sensações, medos, perspectivas, temores e fatos biográficos, com maestria e gravitas (Colomb, por sua vez, é paratático: de uma coisa a outra sem coesão ou preocupação, dispersando anedotas sem costurá-las). Colomb enfatiza como a derrota/retirada na Rússia afetou a saúde de Stendhal, prejudicando seus pulmões e seu coração, uma debilidade que o teria levado à morte prematura em 23 de março de 1842, aos 59 anos.

3) Colomb relata uma série de percepções de Stendhal com relação à língua e, especialmente, seu sotaque (o que faz pensar naquilo que Derrida escreveu sobre René Char e seu incômodo com o sotaque do poeta), de como ele chegou, ainda jovem, a Paris e fez todo o esforço possível para se livrar do sotaque de origem - mantendo, contudo, "um tom decidido e apaixonado" que revela "imediatamente a força dos sentimentos" (algo que Stendhal diz ser típico do Midi, o sul da França mediterrânica e atlântica). Em torno disso, a relação de Stendhal com as línguas, seu aprendizado do inglês, do alemão e especialmente do italiano - chegando ao ponto de instruir seus herdeiros que sua lápide deveria conter o nome Arrigo Beyle (e de fato está lá, no cemitério de Montmartre), seguido da frase: milanese, scrisse, amò, visse

sábado, 22 de julho de 2023

A lanterna de Virgílio



1) No canto XXII do Purgatório, Dante estabelece um diálogo entre dois modelos seus de poetas do passado, de um lado Estácio, do outro Virgílio, comprimidos na encosta da montanha. Entre os muitos detalhes luminosos da passagem, está uma lição de leitura, ou melhor, de "má leitura" ou de leitura "equivocada": Virgílio, que morre antes do nascimento de Cristo, pergunta a Estácio como este se tornou cristão (Publius Papinius Statius nasce em Nápoles por volta do ano 45 e morre por volta do ano 96); e Estácio responde que foi precisamente a poesia de Virgílio que o guiou pelo caminho da conversão (com isso Dante mostra que a poesia de seu guia maior pode ser cristão, de certa forma, avant la lettre).

2) A imagem criada por Dante é eloquente: na conversa que tem com Virgílio, quando explica como se deu sua conversão, Estácio afirma que o poeta maior e anterior segurou uma lanterna nas costas, algo que não tinha qualquer serventia para si próprio, mas que certamente ajudou aqueles que vinham atrás - ou seja, o próprio Estácio e outros poetas que viveram as primeiras décadas do cristianismo (uma imagem que ecoa naquela do Angelus Novus da tese IX Walter Benjamin; lembrando que Benjamin não só leu o livro de Auerbach sobre Dante - Dante como poeta do mundo terreno - como o cita em seu ensaio sobre o surrealismo, ambos de 1929 (ensaio de Benjamin e livro de Auerbach)). Estácio, portanto, força uma leitura de Virgílio e, nessa violência com o texto, inscreve sua própria experiência, a transformação de sua própria vida.

3) Estácio ainda pergunta a Virgílio por onde andam outros escritores importantes e caros a ele, como Terêncio e Plauto; estes e vários outros, responde Virgílio (como é o caso de Homero, por exemplo), estão no primeiro círculo do Inferno, onde também estou, acrescenta Virgílio. Alguns gregos estão lá também, continua Virgílio, como Eurípides, Simônides, Agatão. "Juntos conversamos com frequência sobre poesia". Essas insondáveis conexões entre tempos e textos, entre presenças e indivíduos (como Sordello e Virgílio, que se cumprimentam efusivamente sem se conhecer, apenas porque compartilham a cidade de origem), são possíveis porque Dante concebe um logos suprahistórico cristão que tudo organiza.

sábado, 8 de julho de 2023

A travessia



1) A recorrência do motivo da travessia em Sebald, algo que evoca Homero, Ulisses, a Divina comédia, e assim por diante: em Vertigem, um dos elementos de ligação entre os quatro capítulos é a evocação do caçador Graco de Kafka (um morto-vivo que roda o mundo sem poder aportar sua embarcação em lugar nenhum); ainda em Vertigem, a frase inicial do romance diz respeito precisamente a uma travessia, "em meados de maio de 1800", quando Napoleão e seus trinta e seis mil homens atravessaram o "Grande São Bernardo", empreitada considerada até então "como praticamente impossível".

2) No final de Os emigrantes, no capítulo de Max Aurach/Max Ferber (também a travessia de um nome, de uma identidade, de um afastamento com relação a Frank Auerbach), o narrador viaja a Bad Kissingen e pega uma balsa, tirando (e mostrando) uma fotografia da funcionária que guia a embarcação (uma passagem que vem imediatamente depois da visita ao cemitério, como um retorno da terra dos mortos); em Os anéis de Saturno, o narrador pega um pequeno barco para ir até Orford Ness, antigo espaço de testes secretos do governo britânico durante a guerra fria (uma paisagem pós-apocalíptica, escreve o narrador, talvez a imagem do nosso mundo depois do fim). 

3) De uma perspectiva biográfica, há certamente a travessia que leva do professor ao escritor, os decisivos anos da década de 1980, nos quais Sebald começa a publicar seus exercícios narrativos em revistas. É possível pensar ainda em uma travessia anterior, igualmente decisiva, aquela do Canal da Mancha, que o leva como jovem professor/estudante a Manchester em 1966 (essa primeira travessia leva também do alemão ao inglês, uma travessia linguística, contudo, que não é completada, que não é levada a suas últimas consequências, já que Sebald sempre utilizará o alemão como sua língua de trabalho, de narração).

quarta-feira, 5 de julho de 2023

Benjamin e o romance

A cozinha da casa de Goethe em Frankfurt

1) Em um fragmento não publicado durante sua vida, intitulado “Lendo romances” (Rua de mão única), escrito por volta de 1928, Walter Benjamin aponta que romances devem ser “devorados”, que são “um prazer de consumo”: o leitor deve absorver o que acontece. Nesse ponto, Benjamin alcança um de seus típicos aforismos certeiros: “A arte do romance, assim como a arte da cozinha, começa no momento em que a matéria crua termina”. No caso do romance, a “matéria crua” é a experiência direta, que a literatura usa, transforma, transcende. Se existe uma Musa do romance, continua Benjamin, ela precisa ser uma espécie de “fada da cozinha” (Küchenfee), devendo atuar sobre a matéria crua do mundo, transformando-a em algo “com gosto” ou “sabor”: criar um romance é criar um prato – processos, fases de cocção, tempero.

2) Para Benjamin, o romance é sempre a experiência do outro, traduzida em linguagem complexa e mediada pela concatenação das estruturas formais. Por isso é diverso de uma peça de teatro ou da leitura de um poema, instâncias estéticas que, para acontecer, dependem de uma experiência existencial (estar diante do palco; sentir em si a articulação meticulosa entre métrica, ritmo, rima). A experiência do romance como um todo – como a estrutura complexa que se apresenta em seu todo apenas no ponto final – faz parte da construção existencial de seu protagonista, mas jamais estará em sobreposição plena com ela. Disso decorre a diferença incontornável entre o romance e as formas orais, entre o romance como gênero (e forma) e a narrativa como força, potência ou virtualidade (aquilo que Benjamin tenta rastrear em Nikolai Leskov no ensaio sobre o “contador de histórias”, por exemplo).

3) Benjamin não se dedica ao romance com o mesmo afinco que reserva à poesia, por exemplo, porque o romance é uma forma que não permite a repetição, não permite a interminável retomada (típica do conto oral, da criança que pede à mãe: “de novo”), não permite sequer o resumo – pois o romance sempre inviabiliza as tentativas de esquematização. Nesse sentido, o romance não pode existir para além do “fim” que é inscrito na última página, como uma pedra tumular, uma lápide (a “morte” está estruturalmente inscrita no romance, e por isso Benjamin evita essa forma de arte, algo que se percebe nas entrelinhas de um famoso aforismo em Imagens do pensamento: “toda a obra acabada é apenas a máscara mortuária da sua intenção”).