sábado, 22 de julho de 2023

A lanterna de Virgílio



1) No canto XXII do Purgatório, Dante estabelece um diálogo entre dois modelos seus de poetas do passado, de um lado Estácio, do outro Virgílio, comprimidos na encosta da montanha. Entre os muitos detalhes luminosos da passagem, está uma lição de leitura, ou melhor, de "má leitura" ou de leitura "equivocada": Virgílio, que morre antes do nascimento de Cristo, pergunta a Estácio como este se tornou cristão (Publius Papinius Statius nasce em Nápoles por volta do ano 45 e morre por volta do ano 96); e Estácio responde que foi precisamente a poesia de Virgílio que o guiou pelo caminho da conversão (com isso Dante mostra que a poesia de seu guia maior pode ser cristão, de certa forma, avant la lettre).

2) A imagem criada por Dante é eloquente: na conversa que tem com Virgílio, quando explica como se deu sua conversão, Estácio afirma que o poeta maior e anterior segurou uma lanterna nas costas, algo que não tinha qualquer serventia para si próprio, mas que certamente ajudou aqueles que vinham atrás - ou seja, o próprio Estácio e outros poetas que viveram as primeiras décadas do cristianismo (uma imagem que ecoa naquela do Angelus Novus da tese IX Walter Benjamin; lembrando que Benjamin não só leu o livro de Auerbach sobre Dante - Dante como poeta do mundo terreno - como o cita em seu ensaio sobre o surrealismo, ambos de 1929 (ensaio de Benjamin e livro de Auerbach)). Estácio, portanto, força uma leitura de Virgílio e, nessa violência com o texto, inscreve sua própria experiência, a transformação de sua própria vida.

3) Estácio ainda pergunta a Virgílio por onde andam outros escritores importantes e caros a ele, como Terêncio e Plauto; estes e vários outros, responde Virgílio (como é o caso de Homero, por exemplo), estão no primeiro círculo do Inferno, onde também estou, acrescenta Virgílio. Alguns gregos estão lá também, continua Virgílio, como Eurípides, Simônides, Agatão. "Juntos conversamos com frequência sobre poesia". Essas insondáveis conexões entre tempos e textos, entre presenças e indivíduos (como Sordello e Virgílio, que se cumprimentam efusivamente sem se conhecer, apenas porque compartilham a cidade de origem), são possíveis porque Dante concebe um logos suprahistórico cristão que tudo organiza.

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