segunda-feira, 31 de janeiro de 2022

Foucault, 1971



1) Por vezes é a rapidez na realização de um texto que confere a ele certa pátina de iluminação, como se o encadeamento um pouco sumário das ideias auxiliasse na visualização das ideias - que aparecem, de certa forma, sem "adereços". O texto que Foucault publica em 1971 na revista Diacritics (em seu primeiro número, que ironicamente apresenta também uma entrevista com Lévi-Strauss), sobre as "monstruosidades da crítica", segue um pouco essa linha: todo parágrafo inicia com uma espécie de indicação de assunto que vem em itálico, fazendo com que a argumentação tome a forma de uma lista de tópicos que vão sendo pouco a pouco esmiuçados (mas nunca demais, sempre pinceladas gerais) e resolvidos. 

2) Seu foco principal é a resenha que George Steiner publica sobre As palavras e as coisas também em 1971: de forma irônica, Foucault exalta a "criatividade" de Steiner, que fabrica uma série de "lacunas" no livro resenhado - "não somente ele reinventa aquilo que lê no livro", escreve Foucault sobre Steiner, "não somente inventa elementos que ali não figuram, mas inventa também aquilo a que faz objeção, ele inventa as obras com as quais ele compara o livro, e inventa até as próprias obras do autor. Uma lástima, para o Sr. Steiner, que Borges, homem de gênio, já tenha inventado a crítica-ficção". É digno de nota que, na última frase de sua resposta, Foucault invoque mais uma vez Borges (figura tutelar do livro em questão, As palavras e as coisas), que faz deliberadamente aquilo que Steiner faz involuntariamente.

3) Um dos principais eixos do ataque de Foucault a Steiner diz respeito à evocação de "figuras da moda", chamando a atenção para o fato de Steiner procurar na argumentação de Foucault a ausência de certos textos, sem atentar para a presença de outros (na questão da "arqueologia", por exemplo, Steiner espera Freud; Foucault argumenta que basta Kant). "Sou acusado", escreve Foucault, "de ter deixado de citar uma outra das minhas fontes: Lévi-Strauss", que deveria estar na origem de seu trabalho, já que mostrou, argumenta Steiner (reporta Foucault), as relações entre a "troca econômica" e a "comunicação linguística". Estamos "no domínio da pura invenção", escreve Foucault: Lévi-Strauss "jamais estabeleceu as relações entre a economia e a linguística"; quando a ele, Foucault, "não estudei as relações entre a economia e a linguística, mas procurei os elementos comuns às teorias da moeda e à gramática geral, no século XVIII", ideia que não chegou "espontaneamente", mas lendo um autor que citou, Turgot (que não está suficientemente à la mode para Steiner, encerra Foucault).

sexta-feira, 28 de janeiro de 2022

Sobre as fronteiras


"Encontramos essa reconciliação com a morte, esse simples e piedoso recolhimento deste mundo, também em Cervantes, embora ele esteja mais distante da imagem do mundo engendrada pela concepção teológica da arte. O final de Dom Quixote é característico. Durante sua breve doença terminal, o engenhoso fidalgo cai num sono profundo, do qual desperta mudado. Readquire não só a razão, como também seu verdadeiro nome - Alonso Quijano, el bueno. A dissolução física é, ao mesmo tempo, uma restituição espiritual em que o moribundo, 'exclamando em alta voz', reconhece uma prova da misericórdia divina. Dom Quixote entrega sua alma como um homem curado. (...) Aqui também, como nos dramas de Lope e Calderón, as coisas terrenas se conciliam com o supraterreno. Essa grande arte espanhola não repudia o natural, mas também nada do sobrenatural" (Ernst Robert Curtius, Literatura europeia e Idade Média latina, trad. Teodoro Cabral, Edusp, 2013, p. 721-722)

*

"Em Kafka, todos os personagens são limítrofes, habitantes de dois mundos, caminhantes da fronteira entre o sonho e a realidade, a vida e a morte, o ser e o não-ser, ou solitários, viajantes, pessoas sem pátria, sem paz, sem identidade definida. São eles que tornam a obra do judeu de Praga tão inconfundível. Mas é curioso: todos esses personagens, ainda que pertençam a mundos intermediários, não têm um papel social que os predestine a quedas trágicas, não têm origens espetaculares nem se destacam por uma excepcional grandeza. Não é importante quem sejam mas o que acontece com eles, o que lhes sucede e o que se possa demonstrar por meio deles. Em outras palavras: quem vier a confrontar-se com esses personagens será compelido a rever seus valores, será, ele próprio, atraído a espaços intermediários onde a normalidade parecerá suprimida, ver-se-á defrontado com uma visão totalmente diversa da realidade" (Karl-Josef Kuschel, Os escritores e as escrituras: retratos teológico-literários, trad. Paulo Soethe, Loyola, 1999, p. 39)

terça-feira, 25 de janeiro de 2022

O discípulo



1) Em seu livro Lições dos mestres (trad. Maria Alice Máximo, Record, 2005), George Steiner menciona um romance esquecido de Paul Bourget, publicado em 1889, Le Disciple. Segundo Steiner, o livro é uma relíquia de enorme legado, "de um modo geral desapercebido". Sem ele não teríamos Monsieur Teste, de Paul Valéry; e, apesar do desdém por Bourget manifestado em seus diários, André Gide recorre ao romance de Bourget "para seus sardônicos estudos sobre mestres e discípulos em seu O imoralista e em Os porões do Vaticano", escreve Steiner (p. 123). Apesar de não ser um grande livro, continua Steiner, Le Disciple levanta uma das questões "mais complicadas" da filosofia: um mestre é responsável pela conduta de seus discípulos?

2) Steiner parte de um romance obscuro - mas lido por uma porção de figuras canônicas - e chega na questão central de seu livro, a relação entre mestres e discípulos: Sócrates e Platão, Virgílio e Dante, Jesus e os apóstolos, Husserl e Heidegger... O mistério do ensinamento reside sobre um paradoxo: para ser efetivo, o mestre deve ser esquecido, suplantado, deixado para trás; o ápice da responsabilidade com relação ao destino dos discípulos toca o extremo oposto, da radical diferença entre o ponto de partida e o ponto de chegada. "Ensinar com grandiosidade é despertar dúvidas no aluno, é treiná-lo para divergir. É preparar o discípulo para partir. O verdadeiro Mestre deve, no final, estar só" (p. 128).

3) Um romance obscuro e esquecido é peça central também na relação entre Jacques Derrida e Paul de Man (double bind em ação: quem é mestre, quem é discípulo?). Em vários textos e entrevistas, Derrida conta como de Man um dia disse a ele: "Se quiser saber algo de mim, leia o romance de Henri Thomas, Le Parjure" (publicado originalmente como "Hölderlin na América" no Mercure de France). Thomas - que traduziu Ernst Jünger para o francês - ficcionaliza parte da vida de Paul de Man para contar a história de um "perjúrio", de um homem que "trai" o juramento do casamento e se casa de novo, com outra mulher, em outro país (de Man sai da Bélgica em 1948 e vai para Nova York, onde se casa com Patricia Kelley em 1950; ele já era casado com Anaïde Baraghian desde 1944).

quinta-feira, 20 de janeiro de 2022

Nova refutação do tempo



1)
Em O zelo de deus: sobre a luta dos três monoteísmos, lançado em 2007, Peter Sloterdijk retoma rapidamente um tópico extensamente discutido por Auerbach em Mimesis ou mesmo por Harold Bloom em parte de sua obra: a transformação dos textos do passado a partir de um novo olhar político e teológico promovido pelos "teólogos de Niceia", que criaram o Antigo Testamento como decorrência do Novo (configurando uma preparação de terreno deliberadamente anacrônica). "O que os teólogos cristão denominaram Deus Pai foi uma invenção tardia com propósitos políticos-trinitários", escreve Sloterdijk. "Naquela época, era preciso introduzir um Pai bondoso que combinasse mais ou menos com o filho admirável. Naturalmente a nova descrição cristã de Deus pouco tinha a ver com o Javé dos escritos judaicos" (p. 35).

2) Alan Pauls, em El factor Borges, enfatiza a "síndrome borgeana" da "segunda mão": Borges como artista da cópia e da falsificação, mas também como aquele que "emancipa" as traduções dentro de uma "ética da subordinação" ("original é sempre o outro"). Com "El acercamiento a Almotásim", texto publicado em História da eternidade, Borges glosa e se alimenta de um "livro alheio", um livro que na verdade é uma postulação da glosa: o "livro-mãe" (o livro que está sendo "resenhado" na nota de Borges) é "filho da glosa que o comenta". A obra original é originada pela resenha que a comenta, transformando aquilo que deveria existir antes em um efeito retrospectivo (como ler o Quixote primeiro em inglês; como tratar as traduções das 1001 noites como vários originais possíveis).

3) Essa dinâmica está presente no conceito de Freud de Nachträglichkeit (aparece, por exemplo, no caso do Homem dos Lobos) - retroaction, après-coup, afterwardsness -, “processo contínuo de protensão e retenção, uma complexa alternância de futuros antecipados e passados reconstruídos”, nas palavras de Hal Foster (O retorno do real, p. 46). É digno de nota que a ideia de uma configuração retrospectiva dos eventos passados está presente também na análise que Freud faz do "mito Moisés" em Moisés e o monoteísmo, ligando-se com isso à argumentação de Sloterdijk (e fechando um circuito de anacronismo deliberado também aqui, agora, como se o texto de Sloterdijk interferisse sobre o de Freud, como Menard o faz com Cervantes e assim por diante): o confuso encadeamento dos fatos na história coletiva é corrigido a posteriori, com duas figuras distintas sendo unidas tanto em "Moisés" quanto em "Javé".

sexta-feira, 14 de janeiro de 2022

Contágio


1) Frazer (O ramo de ouro) afirma que a magia opera a partir de dois princípios: de um lado, a ideia de que o semelhante produz o semelhante, que o efeito é assemelhado à causa; de outro, a ideia que as coisas, uma vez postas em contato, continuam a agir à distância umas sobre as outras, mesmo depois de encerrado o contato físico (uma sorte de lei do contágio). Lévi-Strauss (O pensamento selvagem), por sua vez, comenta como o sistema de rastreio de pistas no deserto australiano (o aborígene que lê pegadas, nuvens, ventos) é correlato ao sistema de "navegação" do morador das grandes cidades (ler as placas de trânsito, o olhar do outro motorista, a variação de ruído nos motores), ambos sistemas de controle de signos que solicitam intelecção.

2) The Power of the Dog - o filme de Jane Campion - articula os dois registros: uma narrativa do contágio que se desenrola em paralelo a uma educação do olhar-rastreador. As posições temporais, contudo, estão mescladas de forma complexa: o contágio diz respeito tanto ao envenenamento de Phil quanto a sua relação passada com Bronco Henry; a educação do olhar-rastreador se dá tanto entre Phil e Bronco Henry quanto entre Phil e Peter (que inverte em parte essa relação quando mostra a Phil, abruptamente, que ele também é capaz de reconhecer o cão na face da montanha). A caixa secreta, que guarda as revistas de Bronco Henry, serve de artefato-fetiche, fechando o circuito da triangulação Phil-Peter-BH (ela garante que o contágio se espalhe ao longo do tempo, mesmo décadas depois da morte de seu dono).

3) O contágio (do veneno em Phil) se dá através do corte, o corte na mão feito no momento em que perseguem um coelho assustado que se esconde numa pilha de pedaços de madeira. O corte, de resto, é um detalhe que se destaca na composição geral do filme e do personagem - em outras palavras, é um punctum. Na Câmara clara, Barthes fala do punctum precisamente como "ferimento" ou "picada", aquilo que na imagem leva a um "ferimento" do olho/no olhar, um golpe, um corte, uma "pontuação" (é digno de nota, portanto, que o detalhe do corte na mão de Phil seja precisamente um punctum, o ferimento do corpo é simultaneamente o ferimento da imagem, aquilo que chama o olhar, que atrai o olhar, que galvaniza a atenção e que torna possível o contágio - e, com isso, o encerramento, o clímax, o arremate, a catarse, o gozo). 

domingo, 9 de janeiro de 2022

O signo na montanha


1) The Power of the Dog, de Jane Campion, mostra, no personagem Phil, a junção tensa de dois universos, dois mundos, dois campos antagônicos de experiência: o campo e a cidade, o manual e o mental, o grosseiro e o refinado, opostos combinados em uma mesma subjetividade, o castrador de novilhos formado em Yale, em "letras clássicas". Como costuma acontecer, é em uma piada (chistes e sua relação com o inconsciente...) que os dois campos emergem entrelaçados: no jantar, o governador pergunta: "ele fala com o gado em grego ou latim?" (o que faz pensar na reflexão de Roberto Calasso, que já disse que "a métrica é o gado dos deuses"). 

2) O que está continuamente em jogo é a capacidade de reconhecer no mundo os signos que não estão imediatamente à vista - Phil diz a um dos peões: "Se você não vê nada, não há nada para ver". O enigma é reiterado ao longo do filme, um enigma revelado a Phil por Bronco Henry, o morto que nunca aparece, a ausência presente, espécie de sacerdote que inicia Phil nos arcanos de uma visibilidade incerta (nesse ponto também os extremos se tocam: quando o governador fala do passado de Phil em Yale, salienta sua participação em uma irmandade exclusiva (Phi Beta Kappa is the oldest academic honor society in the country)). Na linha do Facundo de Sarmiento, Phil é treinado como um rastreador, um decifrador daquilo que resiste à leitura (como Édipo e José no Egito, Freud e Thomas Mann).

3) A cena de Phil com os peões - que mostra a cegueira dos outros, a incapacidade de reconhecer o signo na montanha - é contrastada com a cena de Phil com Peter, que reconhece de imediato o desenho formado pelas sombras na montanha (formando essa tríade de sustentação subterrânea da trama, Bronco Henry - Phil - Peter, ligados pela capacidade de ver o invisível, decorrente de uma sensibilidade "homoafetiva" (salientada em Phil por sua ligação com os "gregos")). É digno de nota que, como bom filólogo, Phil se refira ao professor-sacerdote Bronco Henry a partir de um termo estrangeiro, Il lupo, para delimitar com rigor suas raízes míticas (é significativo, por outro lado, que a "loba", lupa, que alimenta os dois irmãos na fábula, seja transformada em "lobo", lupo, nessa reconstrução de Phil, que visa recalcar precisamente essa dimensão "feminina" de seu Bildungsroman).

sábado, 1 de janeiro de 2022

Pé-no-chão




Em seu ensaio dedicado à aproximação entre Joyce e Vico - Dante... Bruno. Vico.. Joyce, publicado originalmente em 1929 no livro Our Exagmination Round His Factification for Incamination of Work in Progress -, Samuel Beckett começa com uma definição de Vico:

Giambattista Vico was a practical roundheaded Neapolitan.

A tradução de Lya Luft no volume coletivo riverrun, Ensaios sobre James Joyce (editado pela Imago em 1992, com organização de Arthur Nestrovski) diz o seguinte (p. 324):

Giambattista Vico era um napolitano puritano.

Outra tradução, mais recente, de Lucas Peleias Gahiosk, foi publicada no periódico Revista de Teoria da História (UFG), apresentando a frase de Beckett da seguinte forma:

Giambattista Vico foi um Napolitano prático e pé-no-chão.

Além disso, o tradutor acrescenta uma nota de rodapé para esclarecer a escolha do termo "pé-no-chão":

"Beckett emprega o termo roundheaded, que também é utilizado por Joyce, de forma positiva, para enfatizar a orientação de Vico em direção à empiria. Ver: VERENE, Donald Phillip. On Vico, Joyce and Beckett. In.: Beckett/Philosophy. Org. Matthew Feldman e Karim Mamdani. Stuttgart, Ibidem-Verlag, 2015. p. 69."

*

1) Não se trata apenas do problema de eliminar um termo do original na tradução, mas de eliminar um termo tão importante para a correta avaliação da triangulação Vico-Joyce-Beckett (ainda mais se tratando de um conjunto de obras nas quais a valorização dos "termos" é enorme - basta pensar no uso que faz Vico da filologia). A evocação da "cabeça" não é apenas a evocação da "razão" (o cogito, especialmente se pensarmos na rivalidade que Vico desde o início estabelece contra o projeto cartesiano), mas a colocação em primeiro plano da materialidade do corpo, seu peso, sua influência: em sua Autobiografia, Vico fala de como caiu e bateu a cabeça quando criança; quando evoca Vico, James Joyce faz questão de reiterar esse fato, essa cena inaugural, da cabeça rachada como senha para ver o mundo com outros olhos. 

2) É bastante conhecida a proximidade crítica que Beckett estabelece com Descartes em sua obra: tudo começou com Whoroscope, um longo poema escrito em inglês, mas publicado em Paris por The Hours Press (um pequena casa editorial que contava com um concurso literário, que naquele ano foi vencido por Beckett). O personagem principal é Descartes (Beckett avisa nas notas), que medita sobre o tempo (tema do concurso) em algo que lembra um fluxo de consciência mesclado a comentários culinários, geográficos, teológicos e retóricos.

3) A cabeça, o crânio: Eugene Webb, em livro de 1974 (The Plays of Samuel Beckett), fala do cenário de Fim de partida como o interior do crânio "de um indivíduo que fechou seus olhos para o mundo". Paul Valéry relata em seus Cadernos que teve em suas mãos o crânio de Descartes, em uma visita ao Museu de História Natural (Reino Virtanen, L'imagerie scientifique de Paul Valéry, J. Vrin, 1975, p. 124). Nada mais adequado ao criador do Monsieur Testepara Valéry, o cogito de Descartes é uma ficção, ou ainda, um procedimento ficcional que não pretende mudar o pensamento mas, apenas, dar coerência à história que engendra - assim como Teste, uma história que deseja perder-se em seu próprio infinito.