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sexta-feira, 14 de fevereiro de 2025

As cartas de Herzog





1) Em um ensaio sobre Saul Bellow ("Relendo Saul Bellow", Por que escrever? Conversas e ensaios sobre literatura, 1960-2013, trad. Jorio Dauster, Cia das Letras, 2022, p. 380-401), Philip Roth comenta o romance Herzog, de 1964, apontando que quase não há ação ou drama para além daquela que ocorre no cérebro do protagonista - nesse sentido, poderia ser lido ao lado do Monsieur Teste, de Paul Valéry, que já rendeu muitas associações pela via do cérebro, da cabeça e do crânio (via Beckett, Descartes, Piglia e Agamben, por exemplo).

2) Roth aponta que o fluxo de consciência de Bellow em Herzog não está aparentado com aqueles de Faulkner ou Virginia Woolf (ou, ao menos, não exclusivamente): ele vê uma afinidade maior com o Diário de um louco, de Gógol: a principal estratégia narrativa compartilhada por Bellow e Gógol, escreve Roth, é a escrita de cartas (no caso de Gógol, é um cachorro quem teria escrito o maço de cartas que o narrador encontra, e o cachorro pertence à mulher pela qual está apaixonado - tudo tão Kafka e Felice (via Canetti), tudo tão Sloterdijk e Heidegger (via Regras para o parque humano)).

3) O diferencial do romance de Bellow, escreve Roth (p. 394), está na intensidade do uso das cartas e na liberdade ensandecida com a qual o narrador seleciona seus destinatários: a mãe morte, a amante viva, a primeira esposa, o presidente Eisenhower, o chefe da polícia de Chicago, Nietzsche, Heidegger ("Caro doktor professor, gostaria de saber o que o senhor quer dizer com a expressão 'a queda no cotidiano'") e, por fim - resgatando, de certa forma, o magistrado Daniel Paul Schreber de Freud, Lacan e Deleuze -, o próprio Deus ("tenho desejado cumprir sua vontade insondável").

segunda-feira, 25 de novembro de 2024

Der Ister


1) Com os textos sobre Hölderlin, Heidegger muda de elemento - passa da terra (do solo, preponderante em Ser e tempo - "ter uma casa atrás de si", como escreve Sloterdijk) para a água e, com isso, propõe uma nova fenomenologia do habitar. Durante a guerra, em 1942, Heidegger oferece na Universidade de Freiburg um curso sobre Hölderlin, sobre o poema dedicado ao rio Danúbio, Der Ister. O canto dos rios se funde aos cantos da poesia, da mesma forma que a ressonância do espaço externo estabelece contato com a paisagem imaginativa dos sujeitos (na Eneida de Virgílio, por exemplo, o Tibre surge como um deus). 

2) A corrente do rio, sua dimensão de movimento constante, evoca a instabilidade do Ser - o movimento do rio é tanto a "localidade do que é errático" quanto a "erraticidade do que é local". O Danúbio evoca um pertencimento específico, que não é aquele dos oceanos, ou mesmo aquele do Mediterrâneo; ao mesmo tempo, é seu curso que garante, para Heidegger, uma ligação entre a Alemanha e a Grécia, uma ligação que pode ser fundada no espaço, a partir de um conjunto de coordenadas geográficas específicas (um rio "que parece correr ao contrário"). A Antígona de Sófocles permite a Heidegger articular a leitura inicial de Hölderlin (tradutor do grego) com seu encaminhamento da reflexão em direção à política e ao uso do território (pois Antígona desafia a ordem do soberano com relação ao uso da terra, do espaço).

3) É outro, contudo, o Danúbio que encontra Claudio Magris algumas décadas depois (embora seja curioso o fato da publicação do curso de Heidegger sobre Hölderlin ser póstuma e ter sido realizada em 1984 - apenas dois anos antes do lançamento de Danúbio, a obra-prima de Magris): Magris relata sua passagem pela casa de Elias Canetti, por exemplo, mas essa casa nada tem a ver com o solo, tampouco está ancorada na paisagem imaginativa dos sujeitos - é apenas um ponto de passagem, uma posição contingente dentro de uma cartografia provisória.  

sábado, 30 de julho de 2022

Sobriedade



1) "Havia pouco, no banco, ele tinha dito também que todos os anos que passaram a ensinar lhe tinham feito mais mal que bem. E comparou o seu caso com o ensino de Freud. As suas lições, como se fossem vinho, tinham embriagado as pessoas. Não sabiam usá-las com sobriedade. Seria eu capaz de compreender? Oh, sim, tinham descoberto uma fórmula. Exatamente" (O. K. Bouwsma, Conversas com Wittgenstein, 1949-1951, trad. Miguel Serras Pereira, Relógio D'Água, 2005, p. 55)

2) Wittgenstein no fim da vida - morre em 1951, aos 62 anos - observa seu percurso e lamenta a "herança" que deixa (ou, ao menos, aquilo que alguns fizeram do pharmakon que ele ofereceu: é interessante que ele fale de seu trabalho como um "vinho" que "embriaga", muito na linha de Sócrates e Platão, o único filósofo que lia (segundo o próprio Bouwsma em seu relato)). Sempre a história do pensamento como história de um endereçamento - a troca de cartas, mensagens, o recebimento enviesado de uma herança: Platão, Sócrates e o cartão-postal em Derrida; Sloterdijk lendo Heidegger pelo viés da carta em Regras para o parque humano...

3) "Eles não sabem que estamos trazendo a peste" (ou seja, a fórmula), disse Freud quando atravessou o oceano pela primeira vez para falar sobre psicanálise nos Estados Unidos. O mistério do ensinamento reside sobre um paradoxo: para ser efetivo, o mestre deve ser esquecido, suplantado, deixado para trás; o ápice da responsabilidade com relação ao destino dos discípulos toca o extremo oposto, da radical diferença entre o ponto de partida e o ponto de chegada. George Steiner: "Ensinar com grandiosidade é despertar dúvidas no aluno, é treiná-lo para divergir. É preparar o discípulo para partir. O verdadeiro Mestre deve, no final, estar só" (Lições dos mestres, trad. Maria Alice Máximo, Record, 2005, p. 128).

quinta-feira, 20 de janeiro de 2022

Nova refutação do tempo



1)
Em O zelo de deus: sobre a luta dos três monoteísmos, lançado em 2007, Peter Sloterdijk retoma rapidamente um tópico extensamente discutido por Auerbach em Mimesis ou mesmo por Harold Bloom em parte de sua obra: a transformação dos textos do passado a partir de um novo olhar político e teológico promovido pelos "teólogos de Niceia", que criaram o Antigo Testamento como decorrência do Novo (configurando uma preparação de terreno deliberadamente anacrônica). "O que os teólogos cristão denominaram Deus Pai foi uma invenção tardia com propósitos políticos-trinitários", escreve Sloterdijk. "Naquela época, era preciso introduzir um Pai bondoso que combinasse mais ou menos com o filho admirável. Naturalmente a nova descrição cristã de Deus pouco tinha a ver com o Javé dos escritos judaicos" (p. 35).

2) Alan Pauls, em El factor Borges, enfatiza a "síndrome borgeana" da "segunda mão": Borges como artista da cópia e da falsificação, mas também como aquele que "emancipa" as traduções dentro de uma "ética da subordinação" ("original é sempre o outro"). Com "El acercamiento a Almotásim", texto publicado em História da eternidade, Borges glosa e se alimenta de um "livro alheio", um livro que na verdade é uma postulação da glosa: o "livro-mãe" (o livro que está sendo "resenhado" na nota de Borges) é "filho da glosa que o comenta". A obra original é originada pela resenha que a comenta, transformando aquilo que deveria existir antes em um efeito retrospectivo (como ler o Quixote primeiro em inglês; como tratar as traduções das 1001 noites como vários originais possíveis).

3) Essa dinâmica está presente no conceito de Freud de Nachträglichkeit (aparece, por exemplo, no caso do Homem dos Lobos) - retroaction, après-coup, afterwardsness -, “processo contínuo de protensão e retenção, uma complexa alternância de futuros antecipados e passados reconstruídos”, nas palavras de Hal Foster (O retorno do real, p. 46). É digno de nota que a ideia de uma configuração retrospectiva dos eventos passados está presente também na análise que Freud faz do "mito Moisés" em Moisés e o monoteísmo, ligando-se com isso à argumentação de Sloterdijk (e fechando um circuito de anacronismo deliberado também aqui, agora, como se o texto de Sloterdijk interferisse sobre o de Freud, como Menard o faz com Cervantes e assim por diante): o confuso encadeamento dos fatos na história coletiva é corrigido a posteriori, com duas figuras distintas sendo unidas tanto em "Moisés" quanto em "Javé".

sexta-feira, 28 de maio de 2021

Mobilização, desarmamento


"A verdade da investigação não é a investigação da verdade. Não queremos investigar o mundo como é, mas inventá-lo como não é. O termo 'inventar' não deve ser entendido em sentido tecnológico; não significa juntar positivo com positivo, som com som, peça com peça como se invenção fosse uma fabricação entre outras. Inventar significa antes: estar presente na quebra da casca positiva do existente; participar da introdução do real no jogo das contas de vidro, experimentar como o ainda-não emana do desde-sempre, como o inaudito se desprende do sempre ouvido para surgir como se fosse da primeira vez.

(...)

Enquanto a investigação positivista, extremamente ignorante e bisbilhoteira, se baseia na hipótese de que o mundo não está suficientemente conhecido, a consciência-composição sabe que o mundo não está suficientemente desconhecido. Apresenta-se aos nossos olhos e ouvidos demasiadamente revelado e, na verdade, não se trata de decifrar enigmas, mas de protegê-los de seus decifradores"


Peter Sloterdijk, Mobilização copernicana e desarmamento ptolomaico, trad. Heidrun Krieger Olinto, Tempo Brasileiro, 1992, p. 108-109

quarta-feira, 26 de maio de 2021

Temperamentos


1) Em seu livro Temperamentos filosóficos (identificado como um "breviário" no subtítulo da edição portuguesa, embora a palavra não conste do original), Sloterdijk faz uso da forma breve para apreender um conjunto de vidas - o que permite a inclusão de seu projeto naquela linha associativa que abarca Vidas dos artistas de Vasari, Vidas imaginárias, de Marcel Schwob, História universal da infâmia, de Borges, a Sinagoga dos iconoclastas, de Wilcock, a Literatura nazi na América, de Bolaño, as Vidas minúsculas, de Pierre Michon, e assim por diante. A atenção à forma como veículo específico do pensamento não é estranha a Sloterdijk: ao falar de Hegel, nesse livro sobre os "temperamentos", ele escreve que sua figura de pensamento preferida é a conclusão (que corresponde a um ritmo e a um encadeamento de ideias, assim como a forma breve da "vida"). 

2) O que busca Sloterdijk é estabelecer uma sorte de modulação instável entre sujeito e época, entre o posicionamento específico de um pensamento individual no fluxo do tempo e a inscrição generalizada desse mesmo tempo/época na capacidade de escrita do sujeito. Se algo funciona de fio condutor para os comentários de Sloterdijk sobre figuras tão diversas, é a tentativa de descrever criticamente o modo como os sujeitos estão e não estão em sintonia com suas épocas (o modo como Wittgenstein, por exemplo, solicita o recurso à figura medieval do eremita, ao mesmo tempo em que recusa a forma textual completa em prol do aforismo; ou como Schelling surpreende seus contemporâneos em ao menos dois momentos: na juventude, com seu brilho inesperado; na maturidade, com seu estilo tardio que leva ao incompleto e ao melancólico).

3) As posições ocupadas pelos filósofos comentados por Sloterdijk nunca se resolvem em um puro pertencimento ao passado ou um puro envio em direção ao futuro (quando a obra será finalmente compreendida em todas suas possibilidades). O renascimento de Pascal, por exemplo, é exaltado como uma decorrência da educação a partir das afinidades eletivas com Goethe e Nietzsche; Schopenhauer, por sua vez, será sempre necessário para aqueles que decidirem abordar a "renúncia" ("a palavra mais difícil do mundo" para os modernos); Leibniz, por fim, pode ser uma das principais fontes de inspiração para gerações futuras que busquem "regenerar" um princípio do "otimismo" ou, pelo menos, do "não-pessimismo". 

terça-feira, 25 de maio de 2021

O ambiente hostil


1) Sloterdijk (ainda em Luftbeben: An den Quellen des Terrors, de 2002) comenta a passagem de paradigma que a guerra instaurou no século XX: o ambiente externo (a natureza, o ar, a atmosfera) já não é mais garantia de respiro e tranquilidade (como foi para Nietzsche, Heidegger ou Robert Walser, por exemplo), pelo contrário - com o envenenamento generalizado propiciado pelas tecnologias de guerra "profanadas" para uso civil, o ambiente é sempre hostil e o indivíduo se vê envolvido em um permanente esforço para construir ambiente artificiais que possam proteger, temporariamente, do ambiente externo.

2) Sob essas condições, o sistema imunológico se torna um assunto para debate: quando tudo pode ser "latentemente" contaminado e envenenado, escreve Sloterdijk, quando tudo é potencialmente enganoso e suspeito, nem a totalidade nem a possibilidade de "ser um Todo" podem ser inferidas das circunstâncias externas. A integridade não pode mais ser pensada como algo obtido por meio da devoção ao ambiente benevolente, mas apenas como o esforço individual de um organismo em se demarcar de seu ambiente. Isso abre caminho para um novo campo de pensamento, típico da contemporaneidade: a ideia segundo a qual a vida insiste menos em seu "ser-aí" por sua participação no todo e sim por sua estabilização via "autofechamento" e recusa seletiva de participação. 

3) Pouco antes dessas conclusões finais, Sloterdijk resgata um ensaio de 1936 de Elias Canetti, originalmente uma palestra em homenagem aos 50 anos de Hermann Broch. Entre as duas guerras, Broch desponta como o poeta de nossos tempos, escreve Canetti, o poeta atento à atmosfera, atento a essa mudança de paradigma de que fala Sloterdijk (que enfatiza, não só pelo conteúdo de sua exposição, mas também pela escolha formal no posicionamento de Canetti/Broch em seu próprio ensaio, como Canetti lê em Broch uma sensibilidade profética, uma atenção à hostilidade do ambiente que só seria deflagrada anos depois). Broch desnaturaliza a imediaticidade do ambiente, seu caráter ainda não-pensado, falando do "sonambulismo" que marca aqueles que ainda não reconhecem a hostilidade do meio. 

sexta-feira, 21 de maio de 2021

Ciclo fóbico


1) Peter Sloterdijk, em seu livro sobre a história do terrorismo como história do século XX (Luftbeben: An den Quellen des Terrors, de 2002), fala do "ciclo fóbico" instaurado pela tecnologia: os dispositivos são empregados visando a resolução da ansiedade, mas é precisamente a lógica de inovação permanente embutida nos dispositivos que intensifica a ansiedade. De certa forma, Sloterdijk faz a ligação entre a novidade da guerra química dos gases durante a I Guerra Mundial e a atmosfera de conectividade difusa da nossa contemporaneidade: o ponto de ligação é a passagem de um paradigma do corpo-a-corpo (a baioneta como último vestígio desse paradigma) para um do corpo-e-todo (a nuvem, o mercado, a web, a globalização). 

2) Por isso a centralidade da técnica psicanalítica, escreve Sloterdijk, não só para o encadeamento que leva de Freud a Lacan e de Lacan a Zizek, por exemplo, mas especialmente na perspectiva da psicanálise como estratégia para ler signos e manipular cenas de origem (Sloterdijk ainda enfatiza a ironia daquele que valoriza a psicanálise ao mesmo tempo em que a recusa como terapia pessoal - o que é exatamente o caso de Derrida em O cartão-postal, que comenta o rumor infundado - espalhado por Serge Dubrovsky - de que ele estaria em análise). O discurso da psicanálise faz parte de um conjunto de dispositivos que asseguram a permanente circulação da ideologia da inovação, ou seja, da recusa de qualquer posição fixa (adaptando a profética frase de Karl Kraus, é o dispositivo que oferece a cura para uma doença que ele próprio cria).

3) Sloterdijk resgata ainda o projeto das Passagens de Benjamin como um precursor dessa reflexão sobre o ambiente e passagem do corpo-a-corpo para o corpo-e-todo: as passagens parisienses, para Benjamin, formam uma articulação complexa entre tempo e espaço (o primeiro é suspenso e homogeneizado; o segundo é aplainado em uma horizontalidade vidrada, transparente). A construção do espaço novo na cidade envolve uma carga decisiva de "vício", escreve Benjamin, comenta Sloterdijk, uma pulsão irresistível de formar "casulos", "envoltórios" (a forma material das passagens é, também, o espelhamento físico de um conjunto de formas simbólicas que povoam a vida imaginativa do século XIX).

quinta-feira, 25 de março de 2021

Conceito e doença


1) O "mal de arquivo", forma com a qual Derrida retoma um longo debate (a história da filosofia como história da troca de cartas, mensagens: Platão, Sócrates e o cartão-postal; Sloterdijk lendo Heidegger) sobre a relação entre pensamento e corpo, conceito e doença: no livro sobre Michelet que publica em 1954, Barthes fala desse "comer a História", ou seja, dessa imersão de Michelet nos arquivos, cheirando os mortos, comendo seus resíduos, absorvendo materialmente esses restos (doença adquirida pelo risco do trabalho nos arquivos, algo ligado à frase de Stephen Dedalus no romance de Joyce: History, Stephen said, is a nightmare from which I am trying to awake).

2) Nessa perspectiva, o mal de arquivo é uma doença da possessão, da mescla entre o ser e algo que está para além dele (Carlo Ginzburg, nos vários momentos em que reflete sobre seu encontro com os arquivos - especificamente a figura do moleiro Menocchio -, fala dessa transformação do pesquisador diante do acaso). A reflexão de Derrida nos anos 1990 sobre Freud e o arquivo retoma aspectos da reflexão de quase trinta anos antes sobre Platão e o pharmakon, o veneno-remédio: o principal objeto de Derrida nesse texto é o diálogo Fedro, no qual Sócrates faz uma defesa da possessão como marca de definição do comprometimento do pensador com aquilo que o faz amar o pensamento (é desse "mal" do pensar de que fala Roberto Calasso em A literatura e os deuses; é sobre essa capacidade da possessão de atravessar tempos e espaços de que fala boa parte da obra de Aby Warburg).

3) Quando fala de Michelet em Meta-História, Hayden White ressalta a configuração metafórica que ele propõe da Bastilha, "emblema da velha monarquia", "símbolo da condição irônica em que um 'governo da graça' mostrava sua 'boa índole' concedendo lettres de cachet a favoritos por mero capricho e aos inimigos da justiça por dinheiro". Segundo Michelet, escreve White, o pior crime do velho regime era "condenar homens a uma existência que não era nem vida nem morte", mas um meio-termo entre vida e morte, uma "vida inanimada, enterrada": a Bastilha é um mundo organizado para o esquecimento, para o inorgânico. "A Revolução foi a ressurreição política e moral de tudo de bom e humano 'enterrado' pelo velho regime" (Meta-História, trad. José Laurênio de Melo, Edusp, 2008, p. 166-167).  

segunda-feira, 1 de fevereiro de 2021

O problema da verdade, 2


1) Ainda em “Historical Emplotment and the Problem of Truth”, a conferência de 1990, logo depois de utilizar Barthes com o intuito de marcar as possibilidades de escrita tornadas disponíveis pelo modernismo e pelas vanguardas (algo que White apontou já em 1966, no célebre ensaio “O fardo da História”), White cita outro francês, como se estivesse dando outra volta no parafuso: cita Jacques Derrida e uma de suas definições de différance (o termo comum transformado em conceito a partir da mudança de uma vogal – que se escreve distintamente, mas que se escuta equivalentemente, fazendo da “diferença” uma questão de “grafia”).

2) A “voz média” que Barthes resgata de Benveniste (que a resgata dos gregos, do teatro, da enunciação da palavra artística no centro da polis) serve a White como uma ferramenta para pensar o rompimento das dicotomias no interior das narrativas sobre o passado (subjetividade x objetividade; história x mito; literal x figurativo). Isso não quer dizer, escreve White, que os termos opositores estão interditados como modos de representação da realidade; quer dizer apenas que a oposição restrita dos termos não está imbuída de uma validade universal para todas as experiências no mundo.

3) White cita um trecho do artigo de Derrida dedicado ao termo – a conferência pronunciada na Sociedade Francesa de Filosofia em janeiro de 1968, depois publicada na obra coletiva do grupo Tel Quel, Théorie d'ensemble, no mesmo ano (disponível em português como um dos capítulos do livro Margens da Filosofia). O que Derrida está questionando nessa passagem – e nesse texto – é, entre outras coisas, o sistema de distribuição de posições passivas e ativas dentro da história da filosofia, uma manobra de endereçamento naturalizada ao longo dos séculos e que, agora, pode ser repensada e reconfigurada (é, de novo, a questão do endereçamento de que fala Heidegger na “carta”, de que falará Sloterdijk nas “regras para o parque humano” e que retomará o próprio Derrida alguns anos depois ao falar do “cartão-postal”).

sexta-feira, 4 de dezembro de 2020

Ruído branco

O que é o "ruído branco" para Don DeLillo, para além do sentido imediato ligado às emissões fora de sintonia, aleatórias e com intensidade equilibrada em diferentes frequências? Seu estilo detalhista, seu apego crítico à tecnologia, seus personagens por vezes inusitados, excêntricos, falam de um mundo que oscila entre a hiper-conexão irrestrita (o consumismo como ontologia) e uma inércia subjacente, uma sorte de sonambulismo quimicamente induzido (faz sentido pensar em Hermann Broch e na trilogia dos sonâmbulos (1930, 1931, 1932): os mundos de DeLillo e Broch são semelhantes na embriaguez de tecnologia da guerra e na incerteza histérica da passagem de mãos das "potências mundiais").

A questão de DeLillo é também uma questão heideggeriana na medida em que tenta elaborar cenários possíveis a partir da relação entre o Ser e a técnica e a expansão desse atravessamento no próprio tecido do tempo (Submundo é a arqueologia pluridimensional de um artefato - a bola de beisebol - capturado nessa trama; A artista do corpo faz da materialidade do ente o próprio artefato). A reflexão sobre a "atmosfera" (central não só para Heidegger, mas também e especialmente para Peter Sloterdijk) é determinante em Ruído branco: "Após uma noite de neve onírica, o céu ficou limpo e tranquilo. Havia uma tensão azulada na luz de janeiro, uma dureza, uma confiança. O ruído de botas pisando neve compacta, os riscos nítidos deixados pelos jatos no azul. O tempo era um dado muito relevante, embora de início eu não o soubesse" (Ruído branco, trad. Paulo Henriques Britto, Cia das Letras, 1987, p. 107).

domingo, 15 de novembro de 2020

Dusklands / Portnoy


1) Na História da sexualidade, ao falar da "vontade de poder" (1976), Foucault descreve, comenta e problematiza a dimensão dos "dispositivos do poder", estratégias que geram discurso ao dar a impressão que o discurso é interditado (o aparente interdito é uma das ramificações do dispositivo em sua constante coerção do sujeito). Trata-se de uma dimensão inerente à própria linguagem e sua condição de permanente incompletude (já está no Fedro, reaparece na polêmica de Karl Kraus com a psicanálise - pensada como solução para um problema que seu próprio discurso cria - e mais recentemente nas várias reflexões de Peter Sloterdijk (No mesmo barco, Se a Europa despertar) sobre o discurso "democrático" do Ocidente que descrever, denuncia e cria o "terrorismo" de que é vítima).

2) O dispositivo atua a partir da ambiguidade do discurso, preservando e abolindo ao mesmo tempo (uma versão da Aufhebung hegeliana?). Publicado em 1969 (o mesmo ano da Arqueologia do saber de Foucault), Portnoy's Complaint, o romance de Philip Roth, é emblemático dessa dinâmica: o dispositivo que permite o discurso (a cena analítica) é o mesmo que impede sua resolução e garante sua disseminação virtualmente infinita (a cena da "cura" intensifica a "doença", dando novos significados e ressonâncias para algo que, inicialmente, era quase sem importância). O próprio "discurso-romance" é simultaneamente preservado e abolido, já que seu encerramento é, ao mesmo tempo, uma desistência e um reenvio ao início.

3) Em 1974, Coetzee publica seu primeiro romance, Dusklands, dividido em duas narrativas "independentes" (sendo esse efeito de dissociação uma das principais dimensões do dispositivo preservação-abolição no romance): "The Vietnam Project" e "The Narrative of Jacobus Coetzee". A primeira conta a história de um homem que trabalha em uma agência governamental dos EUA que coordena as estratégias de guerra psicológica no Vietnã; a segunda se passa no século XVIII e fala da incursão do Coetzee do título para caçar no interior do país (o romance é o trabalho intenso de Coetzee a partir de uma imersão nos arquivos e de sua própria exposição ao dispositivo discursivo colonial - pesquisando relatos de viajantes na África do Sul primeiro na biblioteca do British Museum, depois na biblioteca da University of Texas at Austin - onde lia também os manuscritos de Beckett).  

quinta-feira, 14 de maio de 2020

Sciascia, 1978


1) O caso Moro funciona para Sciascia como uma incontornável mescla entre o individual e o coletivo, o subjetivo e o histórico: agora Sciascia reconhece sua poética e seus temas preferidos na própria realidade, tendo sido ele desde sempre um escritor particularmente atento à história italiana, siciliana, europeia. Mas o livro de Sciascia sobre o caso Moro é cindido, dividido, ambivalente: conta com uma primeira parte mais narrativa, associativa (é onde ele cita Poe e Borges) e uma segunda parte mais contida, uma vez que se trata do relatório escrito por ele na condição de parlamentar.

2) Pode-se constatar, portanto, na própria dinâmica estrutural do livro de Sciascia sobre o caso Moro essa ambivalência entre individual e coletivo, subjetivo e histórico: a primeira parte do livro mostra o Sciascia escritor buscando dar conta - narrativamente - dessa abrupta invasão dos fatos sobre sua poética e seus temas; a segunda parte mostra Sciascia atuando sobre o caso Moro não do interior de sua poética e de seus temas, mas do exterior, de uma exterioridade social, histórica (o que apenas intensifica a carga dramática da investigação da primeira parte, uma vez que é essa exterioridade política que Moro reivindica em suas cartas, e é também o contato entre subjetivo e coletivo que está em jogo nas cartas de Moro, que faz uso do potencial destino de sua família para convencer o Estado a negociar com os terroristas e, com isso, salvar sua vida).

3) Levando em conta o que diz Peter Sloterdijk em suas Regras para o parque humano - ou seja, que a história do pensamento é a história do envio de mensagens, de cartas, e também a história da recepção sempre diferida dessas mensagens -, a dinâmica epistolar do caso Moro tal como analisa Sciascia é também uma reflexão sobre os limites da ética, da estética e da política (Moro faz uso das cartas para refletir sobre e questionar a própria noção do poder, como fez outrora Platão em Siracusa - uma situação que alimenta tanto O cartão-postal, de Derrida (lançado em 1980), quanto as aulas que Foucault apresenta de 1982 a 1984 em dois de seus seminários - Governo de si e dos outros - no Collège de France).

segunda-feira, 13 de abril de 2020

A pirâmide


É formidável (e instrutivo) em sua simplicidade o exercício de comparação que faz Sloterdijk em seu livrinho Derrida, o egípcio (em homenagem ao filósofo falecido pouco tempo antes). Cada breve capítulo apresenta - em linhas gerais e, ao mesmo tempo, a partir de pontos específicos - o confronto de Derrida com algum outro autor: Hegel, Freud, Thomas Mann, Boris Groys, Luhmann, Franz Borkenau e Régis Debray (diante de um grupo tão heterogêneo, fica claro que o que importa não é a coerência dos nomes e sim o exercício de relação). 

O exercício de Sloterdijk é ambivalente: pouco se "aprende" sobre Derrida ou sobre os autores citados; pouco se "aprende", de resto, sobre o próprio pensamento de Sloterdijk - mais uma vez, isso deixa claro a importância do exercício de relação, trata-se da exposição de um método de trabalho (mas é evidente que diante da mecânica do método muito se aproveita daquilo que, semanticamente, se oferece sobre os nomes comentados). É possível notar, contudo, um núcleo hermenêutico no livro: a estrutura que se forma na equação Hegel + Freud + Thomas Mann = Derrida (aí se resolve, aliás, a questão da "pirâmide" e do "ser egípcio").

Sloterdijk opera em dois níveis: lida com o "caráter egípcio" de Derrida a partir da noção de José como intérprete de sonhos (por isso a aproximação com Thomas Mann, via José e seus irmãos) e de Moisés como o estrangeiro que funda o próprio (segundo a hipótese de Freud em Moisés e o monoteísmo); e lida também com a dimensão "semiológica" da pirâmide via Hegel, uma espécie de imagem da relação entre significante e significado, interioridade e exterioridade, forma e conteúdo. Derrida como "egípcio", portanto, é aquele que liga o biográfico ao teórico a partir de uma relação idiossincrática com os textos e a tradição e, também, aquele que investe contra as fundações da "pirâmide" da semiologia hegeliana, que lê os textos enquanto lê a "História" e vice-versa. 

segunda-feira, 10 de junho de 2019

Casa, antropotécnica

"Peter Sloterdijk afirmou recentemente que, para compreender esse aspecto [a capacidade de automodelagem do sujeito] - situado na estreita margem ao longo da qual o humanismo vai além de si mesmo -, é preciso abandonar o lugar extático ao qual nos conduziu Heidegger. Ou, ao menos, atravessá-lo em uma direção diversa daquela, hiper-humanística, no fim das contas, que ele tomou para defender a absolutez ontológica do Dasein. Para fazer isso, é preciso violar um duplo interdito, imposto pelo próprio Heidegger, relativo à antropologia e à técnica, em favor do absoluto primado da linguagem.

Uma vez que é justamente a antropotécnica - e não a faculdade linguística - o vetor de sentido mais extremo que, em uma vertiginosa transposição semântica, liga o vocabulário ainda não moderno da Oratio ao nosso destino de animais pós-modernos. E isso não porque a linguagem não faça parte dos instrumentos que o homem deu a si mesmo a fim de alcançar a própria condição essencial, mas porque ela não foi o primeiro nem o principal entre eles. Antes que pela linguagem, embora não independentemente dela, o homo humanus, ou sapiens, como se queira, forjou-se, de fato, por meio da técnica.

Primeiramente, a técnica pesada do golpear e do lançar, da pedra e do fogo; em seguida, aquela leve, dos gestos e dos símbolos - assim como, antes da linguagem, teve de habitar outra casa, outro invólucro antrópico, capaz de abrigá-lo das potências predominantes"

(Roberto Esposito, Pensamento vivo: origem e atualidade da filosofia italiana, trad. Henrique Burigo, Ed. UFMG, 2013, p. 55)

sexta-feira, 10 de novembro de 2017

Foucault, asiático

Em um ensaio sobre o "discurso de Foucault" ("a historiografia do anti-humanismo", agora presente na coletânea The Content of the Form), Hayden White diz que a retórica do autor de Vigiar e punir é deliberadamente contrária à "claridade" da herança cartesiana. Contra o "aticismo" da geração anterior, Foucault seria "asiático". De novo, toda a questão dos "gregos e bárbaros". 
*
A questão tem peso na história da filosofia, na história da literatura - o estilo que ora pende para o "grego", ora pende para o "asiático". White inclusive aponta que essa é uma característica não apenas de Foucault, mas de uma "geração" (Deleuze, Barthes, Derrida, Lyotard?). A questão é central também para Derrida, especialmente em sua leitura cruzada de Hegel e Kant: Kant ocupa a posição do judeu no sistema de Hegel, diz Derrida, assim como Levinas no sistema de Heidegger. Mais além, é um tema que Derrida resgata também de James Joyce: no ensaio "Violência e metafísica", de A escritura e a diferença, sobre Levinas, Derrida resgata a frase do Ulisses de Joyce:
Woman's reason. Jewgreek is greekjew. Extremes meet.  

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O tema circula: está na leitura que faz Edward Said de Freud, quando propõe um eixo oblíquo, asiático, em Freud e os não-europeus; ou ainda Peter Sloterdijk quando fala de Derrida como um egípcio (retomando também Hegel e a leitura de Hegel feita por Derrida no ensaio "O poço e a pirâmide"); Guy Davenport, por sua vez, escreve que “a intuição mais produtiva de Oswald Spengler foi a de dividir as culturas do mundo em três grandes estilos: o apolíneo, ou greco-romano; o fáustico, ou norte-europeu; e o magiar, ou asiático e islâmico”, o que nos interessa, conclui ele, “é que as categorias de Spengler são exatamente aquelas de Edgar Allan Poe [em seus Tales of the Grotesque and Arabesque]”  

quinta-feira, 12 de janeiro de 2017

Esferas, modo de leitura

1) Existem alguns poucos livros que tem a capacidade de colonizar o pensamento, transformando ou reconfigurando - no caso da crítica literária - um modo de leitura, a atenção que se pode ou não dar a certos detalhes em uma narrativa. Esferas, de Peter Sloterdijk, oferece possibilidades para tal reconfiguração ao longo de sua exposição, especialmente pela peculiar mistura de insights filosóficos e dados históricos precisos ou mesmo meticulosos esclarecimentos fisiológicos (acerca dos fetos, das pleuras ou dos espelhos).
2) Penso, por exemplo, na novela que Aharon Appelfeld publica em 1982, Tzili: uma menina que escapa da Shoah passando desapercebida entre os camponeses (era loira, franzina, pouco inteligente; ao saber da iminente chegada dos nazistas, a mãe a deixa para trás, "para cuidar da casa"). A metade final de sua história consiste na delicada e complexa interação entre duas esferas: depois de encontrar um fugitivo de um dos campos de concentração na floresta, Tzili fica grávida - pouco depois o homem some e deixa com ela, além do feto, sua mochila, uma mochila carregada de roupas (suas, da mulher e dos dois filhos, todos "abandonados" por ele no campo), roupas que eram usadas por Tzili como moeda de troca.
3) Tzili precisa seguir seu percurso até o final (até o final da guerra, até o final da floresta), e a conclusão do percurso se dá também a partir do atrito entre as duas esferas, a mochila que aos poucos se esvazia e a barriga que aos poucos se expande (interligadas dramaticamente na medida em que a mochila indiretamente oferece o alimento que permite o crescimento da barriga e a manutenção da própria Tzili).
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Na entrevista com Philip Roth, Appelfeld comenta Tzili: "Quando escrevi Tzili, eu tinha mais ou menos quarenta anos. Naquela época, interessavam-me as possibilidades da ingenuidade na arte. É possível haver arte moderna ingênua? Parecia-me que sem a ingenuidade que ainda se encontra nas crianças e nos velhos, e até certo ponto em nós, a obra de arte seria defeituosa. Tentei corrigir esse defeito". Pouco antes, o próprio Roth tenta resumir a novela de Appelfeld: "Tzili é a história de uma criança assustada num mundo ainda mais sinistro e árido que o de Kosinski, uma criança vivendo numa situação de isolamento numa paisagem tão infensa à vida humana quanto a do Molloy de Beckett" (é provável que essa menção que Roth faz a Beckett tenha levado Appelfeld a comentar essa relação entre arte moderna e ingenuidade de que fala adiante). 

(Philip Roth, Entre nós, trad. Paulo Henriques Britto, Cia das Letras, 2008, p. 35-37). 

sexta-feira, 6 de janeiro de 2017

A magia de Ser e tempo

"À luz das exposições precedentes, pode-se elucidar melhor em que consiste a magia de Ser e tempo, que vai além de qualquer simples atração filosófica. Se o livro, com toda sua obscuridade, cativa o pensamento, é principalmente porque repete, em perfeito anonimato, as ideias mais profundas da gnose cristã. A pericorese do Evangelho de São João: 'Eu estou no Pai e o Pai em mim', e a pericorese de Heidegger: 'Ninguém é ele mesmo, e todos estão uns entre os outros', ainda que produzam resultados inteiramente diversos, articulam-se segundo o mesmo modelo. Se essas sentenças têm alcances diferentes, é porque João fala de uma intimidade que se proclama a si mesma como o modo de existir dos seres celestiais, ao passo que a análise de Heidegger descreve uma existência que se dissolveu na publicidade midiática vulgar. A sentença de João comunica uma mensagem microesférica que estabelece uma imensa clivagem entre o exterior e o interior; ela convida a fazer a travessia do exterior mortífero para o interior vivo. A sentença de Heidegger, ao contrário, tem um sentido macroesférico, pois parodia o resultado da socialização mediocrizante nas sociedades de massa midiatizadas: o Se é o habitante do grande mundo que paga o preço do conforto simbólico e material de sua forma de vida ao deixar-se tombar no sorvedouro que leva ao esvaziamento geral do mundo interior. Seu interior passou totalmente para o exterior; sua alma são as próprias exterioridades. Como se pensaria aí uma transição do ser-Se [Man-Sein] para o genuíno ser-Si [Selbst-Sein]?"

(Peter Sloterdijk. Esferas I: bolhas, trad. José Oscar de Almeida Marques. São Paulo: Estação Liberdade, 2016, p. 566)

segunda-feira, 2 de janeiro de 2017

Esferas, o espelho

1) Antes de se ocupar diretamente de uma crítica à chamada fase do espelho desenvolvida por Jacques Lacan - e isso acontece na "Digressão 9" de Esferas I - Bolhas -, Peter Sloterdijk prepara o terreno já na página 180, onde escreve especificamente sobre a historicidade do artefato espelho: "Tampouco o teorema tragicamente híbrido de Lacan sobre o 'estágio do espelho' como formador da função do Eu pode superar sua dependência desse familiar utensílio cosmético ou egotécnico do século XIX - para grande prejuízo dos que se deixaram ofuscar por essa miragem psicológica". 
2) Assim como faz Kittler ao ressaltar como a obra de Hegel (ao menos como a conhecemos hoje) não seria possível sem os meios técnicos em ascensão e transformação ao longo dos séculos XVIII e XIX (leitura crítica que Stefan Andriopoulos retoma e expande), Sloterdijk apresenta uma hipótese de natureza semelhante ao comentar Lacan: "antes do século XIX, a maioria das habitações europeias não possuía espelhos, de modo que, mesmo da simples perspectiva da história da cultura, o teorema de Lacan, que se pretende um dogma antropológico válido para qualquer época, parece não ter nenhum fundamento" (Esferas I: bolhas, trad. José Oscar de Almeida Marques. São Paulo: Estação Liberdade, 2016, p. 482). A ressalva de Sloterdijk é também, por seu lado, um pouco forçada, especialmente se lembrarmos a posição privilegiada do espelho como artefato na imaginação renascentista - e seu papel decisivo nos contatos com os habitantes dos "Novos Mundos". 
3) Sloterdijk comenta em seguida a insistência da psicanálise com a imago - iniciada já com Freud e Jung, que transforma o termo em conceito (torna-se também título de uma revista, American Imago, que Freud funda em 1939 com Hanns Sachs) - e ressalta que é precisamente esse ponto, essa fascinação quase a priorística com a imagem que faz da teoria psicanalítica de Lacan algo de "criptocatólico" e "aproximado ao surrealismo", nas palavras de Sloterdijk (é digno de nota que Sloterdijk continuamente remeta a psicanálise ao mesmerismo e vice-versa - ele dedica um longo capítulo de Bolhas a Mesmer e às teorias do magnetismo -, e que nesse ponto ligue Lacan ao surrealismo, pois me lembra que foi justamente a atividade de Mesmer que me remeteu aos procedimentos do surrealismo em geral e aos de Marcel Duchamp em particular).    

quarta-feira, 14 de dezembro de 2016

Esferas, vida-morte

1) Já nas primeiras páginas de Esferas I Sloterdijk fala de Nietzsche e da Gaia ciência, referência recorrente ao longo de todo o livro. Nietzsche, "o magistral formulador daquelas verdades com as quais não se pode viver", escreve Sloterdijk, "mas que tampouco se pode pretender ignorar, para não ofender a probidade intelectual", "articulou conclusivamente o que o mundo em seu todo deve se tornar para os empreendedores modernos com base nessa percepção: 'uma porta abrindo-se para mil desertos, vazios e glaciais'. Viver na época moderna significa pagar o preço da ausência de camadas protetoras" (p. 25).
2) Poucas páginas adiante, Sloterdijk fala de Nietzsche como esse "Diógenes trágico", concluindo que "pode-se considerar a civilização técnica, sobretudo sua aceleração no século XX, como a tentativa de sufocar as questões levantadas pelos testemunhos cruciais de Nietzsche em um manto de conforto" (p. 28). O trecho todo é construído como um comentário de Sloterdijk ao fragmento 125 da Gaia ciência; a exposição decorrente, contudo, especialmente quando Sloterdijk comenta as várias mortes que são necessárias para assegurar a ficção da individualidade do sujeito sob a benção da razão instrumental, toda essa exposição de Sloterdijk, portanto, é um desdobramento de uma parte do fragmento 109 do mesmo livro de Nietzsche:
Guardemo-nos de dizer que há leis na natureza. Há apenas necessidades: não há ninguém que comande, ninguém obedeça, ninguém que transgrida. Quando vocês souberem que não há propósitos, saberão também que não há acaso: pois apenas em relação a um mundo de propósitos tem sentido a palavra "acaso". Guardemo-nos de dizer que a morte se opõe à vida. O que está vivo é apenas uma variedade daquilo que está morto, e uma variedade bastante rara. Guardemo-nos de pensar que o mundo cria eternamente o novo. (Friedrich Nietzsche, A gaia ciência. tradução, notas e posfácio de Paulo César de Souza, Cia das Letras, 2001, p. 136).
A articulação entre o diagnóstico de Sloterdijk acerca do século XX - tentativa de sufocar as questões levantadas por Nietzsche - e a intuição do próprio Nietzsche acerca da coexistência entre morte e vida me fez pensar em Sebald e em seu percurso não como escritor, mas como crítico e pensador da literatura. 
3) Em 1973, Sebald termina sua tese de doutorado, O mito da destruição na obra de Alfred Döblin, que sai em livro em 1980. 

Na leitura muito particular de Sebald, Döblin surge como alguém ainda nostálgico do "manto de conforto" oferecido tanto pela nação quanto pela ideia de destruição total da nação, ou ainda a vida sob a expectativa messiânica de um evento, uma chegada revolucionária. Para Sebald, a fuga desse modelo - e, consequentemente, textos literários que podem ser associados ao projeto de Sloterdijk de rompimento do tal manto de conforto - está em Kafka e Beckett. Ao oferecer esses nomes como contrapontos ao trabalho de Döblin, Sebald cita uma frase de Molloy, o romance que Beckett publica em 1951: “viver é também se decompor”. Na tradução de Léo Schlafman:
É na tranquilidade da decomposição que me recordo desta longa emoção confusa que foi minha vida, e que a julgo, como se diz que Deus nos julgará e com a mesma impertinência. Decompor também é viver, eu sei, eu sei, não me atormente, mas não estamos sempre presentes. (Samuel Beckett, Molloy, Nova Fronteira, 1988, p. 23)