sexta-feira, 14 de fevereiro de 2025
As cartas de Herzog
segunda-feira, 25 de novembro de 2024
Der Ister
2) A corrente do rio, sua dimensão de movimento constante, evoca a instabilidade do Ser - o movimento do rio é tanto a "localidade do que é errático" quanto a "erraticidade do que é local". O Danúbio evoca um pertencimento específico, que não é aquele dos oceanos, ou mesmo aquele do Mediterrâneo; ao mesmo tempo, é seu curso que garante, para Heidegger, uma ligação entre a Alemanha e a Grécia, uma ligação que pode ser fundada no espaço, a partir de um conjunto de coordenadas geográficas específicas (um rio "que parece correr ao contrário"). A Antígona de Sófocles permite a Heidegger articular a leitura inicial de Hölderlin (tradutor do grego) com seu encaminhamento da reflexão em direção à política e ao uso do território (pois Antígona desafia a ordem do soberano com relação ao uso da terra, do espaço).
3) É outro, contudo, o Danúbio que encontra Claudio Magris algumas décadas depois (embora seja curioso o fato da publicação do curso de Heidegger sobre Hölderlin ser póstuma e ter sido realizada em 1984 - apenas dois anos antes do lançamento de Danúbio, a obra-prima de Magris): Magris relata sua passagem pela casa de Elias Canetti, por exemplo, mas essa casa nada tem a ver com o solo, tampouco está ancorada na paisagem imaginativa dos sujeitos - é apenas um ponto de passagem, uma posição contingente dentro de uma cartografia provisória.
sábado, 30 de julho de 2022
Sobriedade
1) "Havia pouco, no banco, ele tinha dito também que todos os anos que passaram a ensinar lhe tinham feito mais mal que bem. E comparou o seu caso com o ensino de Freud. As suas lições, como se fossem vinho, tinham embriagado as pessoas. Não sabiam usá-las com sobriedade. Seria eu capaz de compreender? Oh, sim, tinham descoberto uma fórmula. Exatamente" (O. K. Bouwsma, Conversas com Wittgenstein, 1949-1951, trad. Miguel Serras Pereira, Relógio D'Água, 2005, p. 55)
2) Wittgenstein no fim da vida - morre em 1951, aos 62 anos - observa seu percurso e lamenta a "herança" que deixa (ou, ao menos, aquilo que alguns fizeram do pharmakon que ele ofereceu: é interessante que ele fale de seu trabalho como um "vinho" que "embriaga", muito na linha de Sócrates e Platão, o único filósofo que lia (segundo o próprio Bouwsma em seu relato)). Sempre a história do pensamento como história de um endereçamento - a troca de cartas, mensagens, o recebimento enviesado de uma herança: Platão, Sócrates e o cartão-postal em Derrida; Sloterdijk lendo Heidegger pelo viés da carta em Regras para o parque humano...
3) "Eles não sabem que estamos trazendo a peste" (ou seja, a fórmula), disse Freud quando atravessou o oceano pela primeira vez para falar sobre psicanálise nos Estados Unidos. O mistério do ensinamento reside sobre um paradoxo: para ser efetivo, o mestre deve ser esquecido, suplantado, deixado para trás; o ápice da responsabilidade com relação ao destino dos discípulos toca o extremo oposto, da radical diferença entre o ponto de partida e o ponto de chegada. George Steiner: "Ensinar com grandiosidade é despertar dúvidas no aluno, é treiná-lo para divergir. É preparar o discípulo para partir. O verdadeiro Mestre deve, no final, estar só" (Lições dos mestres, trad. Maria Alice Máximo, Record, 2005, p. 128).
quinta-feira, 20 de janeiro de 2022
Nova refutação do tempo
1) Em O zelo de deus: sobre a luta dos três monoteísmos, lançado em 2007, Peter Sloterdijk retoma rapidamente um tópico extensamente discutido por Auerbach em Mimesis ou mesmo por Harold Bloom em parte de sua obra: a transformação dos textos do passado a partir de um novo olhar político e teológico promovido pelos "teólogos de Niceia", que criaram o Antigo Testamento como decorrência do Novo (configurando uma preparação de terreno deliberadamente anacrônica). "O que os teólogos cristão denominaram Deus Pai foi uma invenção tardia com propósitos políticos-trinitários", escreve Sloterdijk. "Naquela época, era preciso introduzir um Pai bondoso que combinasse mais ou menos com o filho admirável. Naturalmente a nova descrição cristã de Deus pouco tinha a ver com o Javé dos escritos judaicos" (p. 35).
sexta-feira, 28 de maio de 2021
Mobilização, desarmamento
"A verdade da investigação não é a investigação da verdade. Não queremos investigar o mundo como é, mas inventá-lo como não é. O termo 'inventar' não deve ser entendido em sentido tecnológico; não significa juntar positivo com positivo, som com som, peça com peça como se invenção fosse uma fabricação entre outras. Inventar significa antes: estar presente na quebra da casca positiva do existente; participar da introdução do real no jogo das contas de vidro, experimentar como o ainda-não emana do desde-sempre, como o inaudito se desprende do sempre ouvido para surgir como se fosse da primeira vez.
(...)
Enquanto a investigação positivista, extremamente ignorante e bisbilhoteira, se baseia na hipótese de que o mundo não está suficientemente conhecido, a consciência-composição sabe que o mundo não está suficientemente desconhecido. Apresenta-se aos nossos olhos e ouvidos demasiadamente revelado e, na verdade, não se trata de decifrar enigmas, mas de protegê-los de seus decifradores"
Peter Sloterdijk, Mobilização copernicana e desarmamento ptolomaico, trad. Heidrun Krieger Olinto, Tempo Brasileiro, 1992, p. 108-109
quarta-feira, 26 de maio de 2021
Temperamentos
2) O que busca Sloterdijk é estabelecer uma sorte de modulação instável entre sujeito e época, entre o posicionamento específico de um pensamento individual no fluxo do tempo e a inscrição generalizada desse mesmo tempo/época na capacidade de escrita do sujeito. Se algo funciona de fio condutor para os comentários de Sloterdijk sobre figuras tão diversas, é a tentativa de descrever criticamente o modo como os sujeitos estão e não estão em sintonia com suas épocas (o modo como Wittgenstein, por exemplo, solicita o recurso à figura medieval do eremita, ao mesmo tempo em que recusa a forma textual completa em prol do aforismo; ou como Schelling surpreende seus contemporâneos em ao menos dois momentos: na juventude, com seu brilho inesperado; na maturidade, com seu estilo tardio que leva ao incompleto e ao melancólico).
3) As posições ocupadas pelos filósofos comentados por Sloterdijk nunca se resolvem em um puro pertencimento ao passado ou um puro envio em direção ao futuro (quando a obra será finalmente compreendida em todas suas possibilidades). O renascimento de Pascal, por exemplo, é exaltado como uma decorrência da educação a partir das afinidades eletivas com Goethe e Nietzsche; Schopenhauer, por sua vez, será sempre necessário para aqueles que decidirem abordar a "renúncia" ("a palavra mais difícil do mundo" para os modernos); Leibniz, por fim, pode ser uma das principais fontes de inspiração para gerações futuras que busquem "regenerar" um princípio do "otimismo" ou, pelo menos, do "não-pessimismo".
terça-feira, 25 de maio de 2021
O ambiente hostil
2) Sob essas condições, o sistema imunológico se torna um assunto para debate: quando tudo pode ser "latentemente" contaminado e envenenado, escreve Sloterdijk, quando tudo é potencialmente enganoso e suspeito, nem a totalidade nem a possibilidade de "ser um Todo" podem ser inferidas das circunstâncias externas. A integridade não pode mais ser pensada como algo obtido por meio da devoção ao ambiente benevolente, mas apenas como o esforço individual de um organismo em se demarcar de seu ambiente. Isso abre caminho para um novo campo de pensamento, típico da contemporaneidade: a ideia segundo a qual a vida insiste menos em seu "ser-aí" por sua participação no todo e sim por sua estabilização via "autofechamento" e recusa seletiva de participação.
3) Pouco antes dessas conclusões finais, Sloterdijk resgata um ensaio de 1936 de Elias Canetti, originalmente uma palestra em homenagem aos 50 anos de Hermann Broch. Entre as duas guerras, Broch desponta como o poeta de nossos tempos, escreve Canetti, o poeta atento à atmosfera, atento a essa mudança de paradigma de que fala Sloterdijk (que enfatiza, não só pelo conteúdo de sua exposição, mas também pela escolha formal no posicionamento de Canetti/Broch em seu próprio ensaio, como Canetti lê em Broch uma sensibilidade profética, uma atenção à hostilidade do ambiente que só seria deflagrada anos depois). Broch desnaturaliza a imediaticidade do ambiente, seu caráter ainda não-pensado, falando do "sonambulismo" que marca aqueles que ainda não reconhecem a hostilidade do meio.
sexta-feira, 21 de maio de 2021
Ciclo fóbico
2) Por isso a centralidade da técnica psicanalítica, escreve Sloterdijk, não só para o encadeamento que leva de Freud a Lacan e de Lacan a Zizek, por exemplo, mas especialmente na perspectiva da psicanálise como estratégia para ler signos e manipular cenas de origem (Sloterdijk ainda enfatiza a ironia daquele que valoriza a psicanálise ao mesmo tempo em que a recusa como terapia pessoal - o que é exatamente o caso de Derrida em O cartão-postal, que comenta o rumor infundado - espalhado por Serge Dubrovsky - de que ele estaria em análise). O discurso da psicanálise faz parte de um conjunto de dispositivos que asseguram a permanente circulação da ideologia da inovação, ou seja, da recusa de qualquer posição fixa (adaptando a profética frase de Karl Kraus, é o dispositivo que oferece a cura para uma doença que ele próprio cria).
3) Sloterdijk resgata ainda o projeto das Passagens de Benjamin como um precursor dessa reflexão sobre o ambiente e passagem do corpo-a-corpo para o corpo-e-todo: as passagens parisienses, para Benjamin, formam uma articulação complexa entre tempo e espaço (o primeiro é suspenso e homogeneizado; o segundo é aplainado em uma horizontalidade vidrada, transparente). A construção do espaço novo na cidade envolve uma carga decisiva de "vício", escreve Benjamin, comenta Sloterdijk, uma pulsão irresistível de formar "casulos", "envoltórios" (a forma material das passagens é, também, o espelhamento físico de um conjunto de formas simbólicas que povoam a vida imaginativa do século XIX).
quinta-feira, 25 de março de 2021
Conceito e doença
2) Nessa perspectiva, o mal de arquivo é uma doença da possessão, da mescla entre o ser e algo que está para além dele (Carlo Ginzburg, nos vários momentos em que reflete sobre seu encontro com os arquivos - especificamente a figura do moleiro Menocchio -, fala dessa transformação do pesquisador diante do acaso). A reflexão de Derrida nos anos 1990 sobre Freud e o arquivo retoma aspectos da reflexão de quase trinta anos antes sobre Platão e o pharmakon, o veneno-remédio: o principal objeto de Derrida nesse texto é o diálogo Fedro, no qual Sócrates faz uma defesa da possessão como marca de definição do comprometimento do pensador com aquilo que o faz amar o pensamento (é desse "mal" do pensar de que fala Roberto Calasso em A literatura e os deuses; é sobre essa capacidade da possessão de atravessar tempos e espaços de que fala boa parte da obra de Aby Warburg).
3) Quando fala de Michelet em Meta-História, Hayden White ressalta a configuração metafórica que ele propõe da Bastilha, "emblema da velha monarquia", "símbolo da condição irônica em que um 'governo da graça' mostrava sua 'boa índole' concedendo lettres de cachet a favoritos por mero capricho e aos inimigos da justiça por dinheiro". Segundo Michelet, escreve White, o pior crime do velho regime era "condenar homens a uma existência que não era nem vida nem morte", mas um meio-termo entre vida e morte, uma "vida inanimada, enterrada": a Bastilha é um mundo organizado para o esquecimento, para o inorgânico. "A Revolução foi a ressurreição política e moral de tudo de bom e humano 'enterrado' pelo velho regime" (Meta-História, trad. José Laurênio de Melo, Edusp, 2008, p. 166-167).
segunda-feira, 1 de fevereiro de 2021
O problema da verdade, 2
2) A “voz média” que Barthes resgata de Benveniste (que a resgata dos gregos, do teatro, da enunciação da palavra artística no centro da polis) serve a White como uma ferramenta para pensar o rompimento das dicotomias no interior das narrativas sobre o passado (subjetividade x objetividade; história x mito; literal x figurativo). Isso não quer dizer, escreve White, que os termos opositores estão interditados como modos de representação da realidade; quer dizer apenas que a oposição restrita dos termos não está imbuída de uma validade universal para todas as experiências no mundo.
3) White cita um trecho do artigo de Derrida dedicado ao termo – a conferência pronunciada na Sociedade Francesa de Filosofia em janeiro de 1968, depois publicada na obra coletiva do grupo Tel Quel, Théorie d'ensemble, no mesmo ano (disponível em português como um dos capítulos do livro Margens da Filosofia). O que Derrida está questionando nessa passagem – e nesse texto – é, entre outras coisas, o sistema de distribuição de posições passivas e ativas dentro da história da filosofia, uma manobra de endereçamento naturalizada ao longo dos séculos e que, agora, pode ser repensada e reconfigurada (é, de novo, a questão do endereçamento de que fala Heidegger na “carta”, de que falará Sloterdijk nas “regras para o parque humano” e que retomará o próprio Derrida alguns anos depois ao falar do “cartão-postal”).
sexta-feira, 4 de dezembro de 2020
Ruído branco
O que é o "ruído branco" para Don DeLillo, para além do sentido imediato ligado às emissões fora de sintonia, aleatórias e com intensidade equilibrada em diferentes frequências? Seu estilo detalhista, seu apego crítico à tecnologia, seus personagens por vezes inusitados, excêntricos, falam de um mundo que oscila entre a hiper-conexão irrestrita (o consumismo como ontologia) e uma inércia subjacente, uma sorte de sonambulismo quimicamente induzido (faz sentido pensar em Hermann Broch e na trilogia dos sonâmbulos (1930, 1931, 1932): os mundos de DeLillo e Broch são semelhantes na embriaguez de tecnologia da guerra e na incerteza histérica da passagem de mãos das "potências mundiais").
A questão de DeLillo é também uma questão heideggeriana na medida em que tenta elaborar cenários possíveis a partir da relação entre o Ser e a técnica e a expansão desse atravessamento no próprio tecido do tempo (Submundo é a arqueologia pluridimensional de um artefato - a bola de beisebol - capturado nessa trama; A artista do corpo faz da materialidade do ente o próprio artefato). A reflexão sobre a "atmosfera" (central não só para Heidegger, mas também e especialmente para Peter Sloterdijk) é determinante em Ruído branco: "Após uma noite de neve onírica, o céu ficou limpo e tranquilo. Havia uma tensão azulada na luz de janeiro, uma dureza, uma confiança. O ruído de botas pisando neve compacta, os riscos nítidos deixados pelos jatos no azul. O tempo era um dado muito relevante, embora de início eu não o soubesse" (Ruído branco, trad. Paulo Henriques Britto, Cia das Letras, 1987, p. 107).
domingo, 15 de novembro de 2020
Dusklands / Portnoy
2) O dispositivo atua a partir da ambiguidade do discurso, preservando e abolindo ao mesmo tempo (uma versão da Aufhebung hegeliana?). Publicado em 1969 (o mesmo ano da Arqueologia do saber de Foucault), Portnoy's Complaint, o romance de Philip Roth, é emblemático dessa dinâmica: o dispositivo que permite o discurso (a cena analítica) é o mesmo que impede sua resolução e garante sua disseminação virtualmente infinita (a cena da "cura" intensifica a "doença", dando novos significados e ressonâncias para algo que, inicialmente, era quase sem importância). O próprio "discurso-romance" é simultaneamente preservado e abolido, já que seu encerramento é, ao mesmo tempo, uma desistência e um reenvio ao início.
3) Em 1974, Coetzee publica seu primeiro romance, Dusklands, dividido em duas narrativas "independentes" (sendo esse efeito de dissociação uma das principais dimensões do dispositivo preservação-abolição no romance): "The Vietnam Project" e "The Narrative of Jacobus Coetzee". A primeira conta a história de um homem que trabalha em uma agência governamental dos EUA que coordena as estratégias de guerra psicológica no Vietnã; a segunda se passa no século XVIII e fala da incursão do Coetzee do título para caçar no interior do país (o romance é o trabalho intenso de Coetzee a partir de uma imersão nos arquivos e de sua própria exposição ao dispositivo discursivo colonial - pesquisando relatos de viajantes na África do Sul primeiro na biblioteca do British Museum, depois na biblioteca da University of Texas at Austin - onde lia também os manuscritos de Beckett).
quinta-feira, 14 de maio de 2020
Sciascia, 1978
segunda-feira, 13 de abril de 2020
A pirâmide
É formidável (e instrutivo) em sua simplicidade o exercício de comparação que faz Sloterdijk em seu livrinho Derrida, o egípcio (em homenagem ao filósofo falecido pouco tempo antes). Cada breve capítulo apresenta - em linhas gerais e, ao mesmo tempo, a partir de pontos específicos - o confronto de Derrida com algum outro autor: Hegel, Freud, Thomas Mann, Boris Groys, Luhmann, Franz Borkenau e Régis Debray (diante de um grupo tão heterogêneo, fica claro que o que importa não é a coerência dos nomes e sim o exercício de relação).
Sloterdijk opera em dois níveis: lida com o "caráter egípcio" de Derrida a partir da noção de José como intérprete de sonhos (por isso a aproximação com Thomas Mann, via José e seus irmãos) e de Moisés como o estrangeiro que funda o próprio (segundo a hipótese de Freud em Moisés e o monoteísmo); e lida também com a dimensão "semiológica" da pirâmide via Hegel, uma espécie de imagem da relação entre significante e significado, interioridade e exterioridade, forma e conteúdo. Derrida como "egípcio", portanto, é aquele que liga o biográfico ao teórico a partir de uma relação idiossincrática com os textos e a tradição e, também, aquele que investe contra as fundações da "pirâmide" da semiologia hegeliana, que lê os textos enquanto lê a "História" e vice-versa.
segunda-feira, 10 de junho de 2019
Casa, antropotécnica
sexta-feira, 10 de novembro de 2017
Foucault, asiático
Woman's reason. Jewgreek is greekjew. Extremes meet.
quinta-feira, 12 de janeiro de 2017
Esferas, modo de leitura
2) Penso, por exemplo, na novela que Aharon Appelfeld publica em 1982, Tzili: uma menina que escapa da Shoah passando desapercebida entre os camponeses (era loira, franzina, pouco inteligente; ao saber da iminente chegada dos nazistas, a mãe a deixa para trás, "para cuidar da casa"). A metade final de sua história consiste na delicada e complexa interação entre duas esferas: depois de encontrar um fugitivo de um dos campos de concentração na floresta, Tzili fica grávida - pouco depois o homem some e deixa com ela, além do feto, sua mochila, uma mochila carregada de roupas (suas, da mulher e dos dois filhos, todos "abandonados" por ele no campo), roupas que eram usadas por Tzili como moeda de troca.
3) Tzili precisa seguir seu percurso até o final (até o final da guerra, até o final da floresta), e a conclusão do percurso se dá também a partir do atrito entre as duas esferas, a mochila que aos poucos se esvazia e a barriga que aos poucos se expande (interligadas dramaticamente na medida em que a mochila indiretamente oferece o alimento que permite o crescimento da barriga e a manutenção da própria Tzili).
sexta-feira, 6 de janeiro de 2017
A magia de Ser e tempo
segunda-feira, 2 de janeiro de 2017
Esferas, o espelho
quarta-feira, 14 de dezembro de 2016
Esferas, vida-morte
Guardemo-nos de dizer que há leis na natureza. Há apenas necessidades: não há ninguém que comande, ninguém obedeça, ninguém que transgrida. Quando vocês souberem que não há propósitos, saberão também que não há acaso: pois apenas em relação a um mundo de propósitos tem sentido a palavra "acaso". Guardemo-nos de dizer que a morte se opõe à vida. O que está vivo é apenas uma variedade daquilo que está morto, e uma variedade bastante rara. Guardemo-nos de pensar que o mundo cria eternamente o novo. (Friedrich Nietzsche, A gaia ciência. tradução, notas e posfácio de Paulo César de Souza, Cia das Letras, 2001, p. 136).
É na tranquilidade da decomposição que me recordo desta longa emoção confusa que foi minha vida, e que a julgo, como se diz que Deus nos julgará e com a mesma impertinência. Decompor também é viver, eu sei, eu sei, não me atormente, mas não estamos sempre presentes. (Samuel Beckett, Molloy, Nova Fronteira, 1988, p. 23)