"À luz das exposições precedentes, pode-se elucidar melhor em que consiste a magia de Ser e tempo, que vai além de qualquer simples atração filosófica. Se o livro, com toda sua obscuridade, cativa o pensamento, é principalmente porque repete, em perfeito anonimato, as ideias mais profundas da gnose cristã. A pericorese do Evangelho de São João: 'Eu estou no Pai e o Pai em mim', e a pericorese de Heidegger: 'Ninguém é ele mesmo, e todos estão uns entre os outros', ainda que produzam resultados inteiramente diversos, articulam-se segundo o mesmo modelo. Se essas sentenças têm alcances diferentes, é porque João fala de uma intimidade que se proclama a si mesma como o modo de existir dos seres celestiais, ao passo que a análise de Heidegger descreve uma existência que se dissolveu na publicidade midiática vulgar. A sentença de João comunica uma mensagem microesférica que estabelece uma imensa clivagem entre o exterior e o interior; ela convida a fazer a travessia do exterior mortífero para o interior vivo. A sentença de Heidegger, ao contrário, tem um sentido macroesférico, pois parodia o resultado da socialização mediocrizante nas sociedades de massa midiatizadas: o Se é o habitante do grande mundo que paga o preço do conforto simbólico e material de sua forma de vida ao deixar-se tombar no sorvedouro que leva ao esvaziamento geral do mundo interior. Seu interior passou totalmente para o exterior; sua alma são as próprias exterioridades. Como se pensaria aí uma transição do ser-Se [Man-Sein] para o genuíno ser-Si [Selbst-Sein]?"
(Peter Sloterdijk. Esferas I: bolhas, trad. José Oscar de Almeida Marques. São Paulo: Estação Liberdade, 2016, p. 566)
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