1) Antes de se ocupar diretamente de uma crítica à chamada fase do espelho desenvolvida por Jacques Lacan - e isso acontece na "Digressão 9" de Esferas I - Bolhas -, Peter Sloterdijk prepara o terreno já na página 180, onde escreve especificamente sobre a historicidade do artefato espelho: "Tampouco o teorema tragicamente híbrido de Lacan sobre o 'estágio do espelho' como formador da função do Eu pode superar sua dependência desse familiar utensílio cosmético ou egotécnico do século XIX - para grande prejuízo dos que se deixaram ofuscar por essa miragem psicológica".
2) Assim como faz Kittler ao ressaltar como a obra de Hegel (ao menos como a conhecemos hoje) não seria possível sem os meios técnicos em ascensão e transformação ao longo dos séculos XVIII e XIX (leitura crítica que Stefan Andriopoulos retoma e expande), Sloterdijk apresenta uma hipótese de natureza semelhante ao comentar Lacan: "antes do século XIX, a maioria das habitações europeias não possuía espelhos, de modo que, mesmo da simples perspectiva da história da cultura, o teorema de Lacan, que se pretende um dogma antropológico válido para qualquer época, parece não ter nenhum fundamento" (Esferas I: bolhas, trad. José Oscar de Almeida Marques. São Paulo: Estação Liberdade, 2016, p. 482). A ressalva de Sloterdijk é também, por seu lado, um pouco forçada, especialmente se lembrarmos a posição privilegiada do espelho como artefato na imaginação renascentista - e seu papel decisivo nos contatos com os habitantes dos "Novos Mundos".
3) Sloterdijk comenta em seguida a insistência da psicanálise com a imago - iniciada já com Freud e Jung, que transforma o termo em conceito (torna-se também título de uma revista, American Imago, que Freud funda em 1939 com Hanns Sachs) - e ressalta que é precisamente esse ponto, essa fascinação quase a priorística com a imagem que faz da teoria psicanalítica de Lacan algo de "criptocatólico" e "aproximado ao surrealismo", nas palavras de Sloterdijk (é digno de nota que Sloterdijk continuamente remeta a psicanálise ao mesmerismo e vice-versa - ele dedica um longo capítulo de Bolhas a Mesmer e às teorias do magnetismo -, e que nesse ponto ligue Lacan ao surrealismo, pois me lembra que foi justamente a atividade de Mesmer que me remeteu aos procedimentos do surrealismo em geral e aos de Marcel Duchamp em particular).
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