quinta-feira, 12 de janeiro de 2017

Esferas, modo de leitura

1) Existem alguns poucos livros que tem a capacidade de colonizar o pensamento, transformando ou reconfigurando - no caso da crítica literária - um modo de leitura, a atenção que se pode ou não dar a certos detalhes em uma narrativa. Esferas, de Peter Sloterdijk, oferece possibilidades para tal reconfiguração ao longo de sua exposição, especialmente pela peculiar mistura de insights filosóficos e dados históricos precisos ou mesmo meticulosos esclarecimentos fisiológicos (acerca dos fetos, das pleuras ou dos espelhos).
2) Penso, por exemplo, na novela que Aharon Appelfeld publica em 1982, Tzili: uma menina que escapa da Shoah passando desapercebida entre os camponeses (era loira, franzina, pouco inteligente; ao saber da iminente chegada dos nazistas, a mãe a deixa para trás, "para cuidar da casa"). A metade final de sua história consiste na delicada e complexa interação entre duas esferas: depois de encontrar um fugitivo de um dos campos de concentração na floresta, Tzili fica grávida - pouco depois o homem some e deixa com ela, além do feto, sua mochila, uma mochila carregada de roupas (suas, da mulher e dos dois filhos, todos "abandonados" por ele no campo), roupas que eram usadas por Tzili como moeda de troca.
3) Tzili precisa seguir seu percurso até o final (até o final da guerra, até o final da floresta), e a conclusão do percurso se dá também a partir do atrito entre as duas esferas, a mochila que aos poucos se esvazia e a barriga que aos poucos se expande (interligadas dramaticamente na medida em que a mochila indiretamente oferece o alimento que permite o crescimento da barriga e a manutenção da própria Tzili).
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Na entrevista com Philip Roth, Appelfeld comenta Tzili: "Quando escrevi Tzili, eu tinha mais ou menos quarenta anos. Naquela época, interessavam-me as possibilidades da ingenuidade na arte. É possível haver arte moderna ingênua? Parecia-me que sem a ingenuidade que ainda se encontra nas crianças e nos velhos, e até certo ponto em nós, a obra de arte seria defeituosa. Tentei corrigir esse defeito". Pouco antes, o próprio Roth tenta resumir a novela de Appelfeld: "Tzili é a história de uma criança assustada num mundo ainda mais sinistro e árido que o de Kosinski, uma criança vivendo numa situação de isolamento numa paisagem tão infensa à vida humana quanto a do Molloy de Beckett" (é provável que essa menção que Roth faz a Beckett tenha levado Appelfeld a comentar essa relação entre arte moderna e ingenuidade de que fala adiante). 

(Philip Roth, Entre nós, trad. Paulo Henriques Britto, Cia das Letras, 2008, p. 35-37). 

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