sábado, 23 de fevereiro de 2019

Quixote impaciente

Em inúmeros pontos da sua obra, Jacques Derrida insiste na predominância da voz sobre a escrita na história da filosofia, do pensamento - de Platão a Heidegger (pensemos, por exemplo, na Gramatologia, de 1967; mas é possível recordar que Paul Zumthor estabelece o argumento contrário, falando da predominância da escrita nessa mesma história - no Essai de poétique médiévale, de 1972, por exemplo). 

Mais do que uma predominância, trata-se sempre de uma convivência, estratos históricos heterogêneos nos quais letra e voz estão em constante permutação e atravessamento. A própria história da literatura - moderna, contemporânea - pode ser rearranjada a partir dessa perspectiva, a partir da solicitação ficcional da técnica seja da voz, seja da letra.

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No Quixote de Cervantes, por exemplo, encontramos um confronto dos dois paradigmas: no capítulo 20 da primeira parte do romance (publicada em 1605), Sancho conta uma história a seu mestre-cavaleiro. Cervantes desde o início apresenta Quixote como alguém doente de literatura - como no futuro a Bovary de Flaubert ou o Montano de Vila-Matas -, alguém, portanto, intensamente possuídos pelos processos da literatura e do literário. Diante da história de Sancho, errática e digressiva, Quixote perde a paciência - a oralidade característica de Sancho (popular também no sentido que dá Bakhtin a partir de Rabelais; ou Ginzburg a partir do moleiro Menocchio) entra em confronto com o ideal livresco e escritural do Quixote.

De resto, esse é mais um dos momentos em que Cervantes apresenta aqueles curtos-circuitos na representação que Foucault aponta em As palavras e as coisas. Mais do que apenas constatar e apresentar a dicotomia letra x voz no interior do romance, Cervantes opera a mescla dos dois registros, a oscilação entre um e outro, absorvendo na narrativa o processo histórico de convivência entre escrita e oralidade no século XVII. Em certo sentido, a passagem é até hegeliana em sua montagem, uma vez que apresenta 1) Quixote perdendo a paciência e mandando Sancho contar a história direito; 2) Sancho surpreso com a interrupção e defendendo seu ponto de vista, apelando para a tradição e o modo tradicional de contar as histórias em seu povoado; 3) A derradeira aceitação do procedimento digressivo-oral da parte do Quixote, que diz a Sancho para continuar e, nessa aceitação, arremata a absorção do dilema histórico pela ficção.

quarta-feira, 13 de fevereiro de 2019

Letra e voz

Em inúmeros pontos da sua obra, Jacques Derrida insiste na predominância da voz sobre a escrita na história da filosofia, do pensamento - de Platão a Heidegger (pensemos, por exemplo, na Gramatologia, de 1967; mas é possível recordar que Paul Zumthor estabelece o argumento contrário, falando da predominância da escrita nessa mesma história - no Essai de poétique médiévale, de 1972, por exemplo). 

Mais do que uma predominância, trata-se sempre de uma convivência, estratos históricos heterogêneos nos quais letra e voz estão em constante permutação e atravessamento. A própria história da literatura - moderna, contemporânea - pode ser rearranjada a partir dessa perspectiva, a partir da solicitação ficcional da técnica seja da voz, seja da letra. 

O caso de Javier Marías é paradigmático do uso da oralidade como procedimento ficcional - não se trata apenas do diálogo, mas da absorção da oralidade em suas múltiplas formas e derivações no andamento da ficção. Marías é constante em sua investigação do efeito da voz e do dizer nos personagens, que constantemente estão envolvidos na interpretação daquilo que foi dito, diretamente ou indiretamente (em um presente testemunhado, por exemplo, ou em um passado distante, que alcança o personagem por vias tortuosas). Pode-se pensar na longa reflexão sobre o eavesdropping que ele coloca em Todas las almas (1989). 

No outro extremo, poderíamos posicionar - arbitrariamente - David Markson. A ficção de Markson não solicita a oralidade em absoluto. Por outro lado, é eloquente em sua solicitação do escrito, da disposição gráfica do escrito na página, ou mesmo da materialidade da escrita (os romances tardios de Markson, experimentais, foram todos realizados a partir de um procedimento desenvolvido por ele de copiar citações e comentários sobre livros, autores e obras de arte em geral, fragmentos de textos copiados em cartões). A partir de sua coleção de cartões com citações, Markson montava seus romances, dispondo os fragmentos dentro de uma ordem provisória e instável. 

terça-feira, 12 de fevereiro de 2019

Dialética da coesão

Goethe é o melhor exemplo de uma existência cuja lógica vital se desenvolve com a maior coerência possível, ao passo que seus conteúdos, considerados objetivamente, se chocam de modo extremo e muitas vezes incompreensível.

Não só todas as atividades possíveis - práticas e poéticas, científicas ou puramente pessoais, interesses produtivos e receptivos, momentos de abertura e de fechamento - nele se misturam a ponto de o resultado de um dia parecer completamente diferente do da véspera, mas também, do ponto de vista qualitativo, as obras-primas e as produções malogradas, as mais profundas intuições e os mais estranhos erros se sucedem de maneira tão contingente e incoerente que é difícil compreender como podem se justapor.

Mas, quando se apreende o ritmo e o quadro geral dessa vida em perpétua metamorfose, percebe-se nesses conteúdos contraditórios e ilógicos a mais maravilhosa unidade.

Por meio desses estágios, desses altos e baixos, dessa afinidade entre o que é o mais afastado, uma "forma dada ao viver se desenvolveu.

Os fenômenos desse tipo, que percorrem toda vida humana e cuja problemática atinge em Goethe a tensão mais extrema e a solução mais realizada, revelam o mistério da relação entre processo e conteúdo dos mecanismos psíquicos e insinuam que a aparente contradição entre continuidade e descontinuidade não é pertinente aqui.

Talvez os processos psíquicos ocorram sob uma forma que ainda não conseguimos apreender conceptualmente, para a qual essa decisão não é necessária.

(George Simmel, Ensaios sobre teoria da história, trad. Estela Abreu, Contraponto, 2011, p. 64-65)