quinta-feira, 29 de dezembro de 2022

Invecchiare



1) Leio a versão italiana de uma conferência apresentada em 1954 por Gottfried Benn, depois publicada na revista Merkur, intitulada "A velhice como problema para os artistas" (em alemão: Altern als Problem für Künstler; na tradução italiana: Invecchiare come problema per artisti). É o tema do "estilo tardio", que terá uma enunciação pioneira no ensaio de Adorno sobre Beethoven de 1938, passando por Edward Said (seu livro póstumo, Estilo tardio, de 2006, não cita o texto de Benn) e, mais recentemente, por Giorgio Agamben (escrevi um artigo sobre o tema, "O estilo tardio em Giorgio Agamben", disponível aqui).

2) Benn começa costurando referências esparsas vistas recentemente - Lorenzo Lotto, uma obra póstuma de Kant, Hokusai, Hölderlin - até se deter em Goethe, o grande "antepassado", que além de ter envelhecido refletiu sobre o envelhecimento (e sobre todo o resto, parece indicar nas entrelinhas Benn; algo de semelhante se encontra nos comentários de Kundera sobre Goethe (uma "invenção do humano" como aquela que Bloom cria a partir de Shakespeare)). O amor e o desejo parecem gerar um curto-circuito na "sabedoria" do "estilo tardio": "Goethe amou Ulrike aos setenta e cinco anos de idade", escreve Benn, e tinha o firme propósito de se casar com ela, reconfigurando assim as bases de uma rotina sólida e de uma "canonização" em vida.

3) Em seguida ao resgate de Goethe, Benn fala de André Gide e de seus diários, contando rapidamente uma passagem que define como "quase grotesca": aos 72 anos Gide se apaixona, na Tunísia, por um menino de 15 anos; descreve as noites de amor que o fazem lembrar de sua juventude; "quase penoso" é o efeito de uma "observação", continua Benn: na primeira vez que viu o menino, vestido de "serviçal" no hotel, Gide ficou tão tocado pela sua timidez e "ternura" que não conseguiu lhe dirigir a palavra (mesmo aos 72 anos, com tanta experiência, comenta Benn, Gide experimenta uma espécie de "regressão dos instintos", novamente a ideia do "curto-circuito" do estilo tardio).  

quarta-feira, 28 de dezembro de 2022

Olhar longínquo


"Não sou especialmente atraído pela filosofia de Wittgenstein, mas tenho uma paixão pelo homem. Tudo o que li sobre ele tem o dom de me emocionar. Muitas vezes achei traços comuns entre ele e Beckett. Duas aparições misteriosas, dois fenômenos que nos deixam satisfeitos por serem tão desconcertantes, tão inescrutáveis. Num e noutro a mesma distância das pessoas e das coisas, a mesma inflexibilidade, a mesma tentação do silêncio, do repúdio final do verbo, a mesma vontade de atingir fronteiras nunca imaginadas. Em outra época seriam atraídos pelo Deserto. Sabe-se hoje em dia que Wittgenstein, em certa fase, pensara em entrar para um convento. Quando a Beckett, imaginamo-lo perfeitamente, alguns séculos atrás, numa cela inteiramente nua, sem a menor mácula de um adorno, nem mesmo de um crucifixo. Divago? Lembrem-se então do olhar longínquo, enigmático, 'inumano' que tem em certas fotos"

(E. M. Cioran, "Beckett" (1976), Exercícios de admiração, trad. José Thomaz Brum, Rocco, 2011, p. 92)


"Não me lembro mais ao certo quais animais vi então no Nocturama de Antuérpia. Provavelmente morcegos e gerbos do Egito ou do deserto de Góbi [...] De resto, dos animais mantidos no Nocturama só me ficou na lembrança que alguns deles tinham olhos admiravelmente grandes e aquele olhar fixo e inquisitivo encontrado em certos pintores e filósofos que, por meio da pura intuição e do pensamento puro, tentam penetrar a escuridão que nos cerca"

(W. G. Sebald, Austerlitz [2001], trad. José Marcos Macedo, Cia das Letras, 2008, p. 8-9)

sábado, 17 de dezembro de 2022

Um jornal de 1910


 

"A programação incluía uma excursão de ônibus a um local sagrado: a casa de Tolstói em Iásnaia Poliana, apenas duzentos quilômetros ao sul de Moscou, o que, pelos padrões russos, é muito perto. Tudo ali está disposto exatamente como se o dono da casa tivesse acabado de deixar o escritório. As pantufas estão à sua espera, o tinteiro está cheio na escrivaninha. Nela vi também um jornal de 1910 e algumas cartas que o destinatário provavelmente já não estava lá para ler. Nos movemos por esse museu de reconstituições rigorosas como se viajássemos no tempo. A encenação é tão perfeita que quase não ousamos admitir a verdade: naturalmente estamos diante de uma falsificação feita para nos comover"

Hans Magnus Enzensberger, "Notas sobre um primeiro encontro com a Rússia (1963)", Tumulto, trad. Sonali Bertuol, Todavia, 2019, p. 19.

quarta-feira, 14 de dezembro de 2022

Nulla dies sine linea



1) Lendo os trabalhos de Mark Nixon sobre as cadernetas, cadernos, inéditos, anotações, esboços, versões prévias, fragmentos manuscritos, etc, de Beckett, uma série de detalhes vão aparecendo: o caderno que Beckett mantinha somente para anotar e comentar os sonhos que teve (com um período de visitação intensa de Napoleão, por conta da leitura que Beckett fez do livro de 1829 de J. G. Lockhart, The History of Napoleon Bonaparte; uma frase de Napoleão que aparece nos sonhos de Beckett, e que ele registra em seu caderno, é: "Entrarei na posteridade com o Código nas mãos").

2) É também durante a viagem de Beckett pela Alemanha que se inicia seu processo de distanciamento das "convenções" da narrativa - algo que, evidentemente, Beckett já tinha no horizonte desde o início, muito por conta de sua leitura comprometida e detalhada dos trabalhos de James Joyce e Marcel Proust (sobre quem publica um estudo em 1930). No dia 11 de janeiro de 1937, no caderno de número 4, Beckett escreve a seguinte fórmula: Try + be in future less beastly + circumstantial.

3) Para Beckett, o diário estava longe de ser um divertimento ou um passatempo - era uma tarefa, uma obrigação, algo que ele forçava sobre si próprio (no caso específico dos seis cadernos escritos durante a viagem à Alemanha, de setembro de 1936 a março de 1937, é preciso levar em consideração também o esforço necessário para que eles sobrevivessem à II Guerra - sinal da importância que o próprio Beckett dava ao exercício). Além disso, Beckett é metódico no registro de tudo que faz - especialmente os museus que visita - em cada cidade que passa: Hamburgo, Braunschweig, Berlim, Halle, Weimar, Erfurt, Naumburg, Leipzig, Dresden, Freiberg, Bamberg, Würzburg, Nurembergue, Regensburg, Munique.

sexta-feira, 9 de dezembro de 2022

Beckett na Alemanha



1) No mesmo ano em que Ernst Jünger está viajando ao Brasil, 1936, Samuel Beckett parte para a Alemanha - as duas viagens se iniciam inclusive na mesma época, setembro/outubro (a primeira entrada de Jünger em seu diário - transformado no livro Viagem atlântica - é de 19 de outubro de 1936; de Beckett, 28 de setembro). Beckett também escreve um diário, um pouco mais extenso do que o de Jünger, já que sua viagem durou meses, se estendendo até o ano seguinte. O objetivo principal de Beckett com a viagem era o de praticar seu alemão e visitar minuciosamente os museus; acabou também acompanhando, de perto e em primeira mão, a consolidação do fascismo.

2) Os diários são muito diferentes: o de Jünger foi trabalhado posteriormente como livro, de modo que ele burila suas descrições fenomenológicas e dá o polimento que ofusca a "espontaneidade" do diário; o de Beckett é, em vários momentos, o acúmulo de notas esparsas, listas, nomes acumulados, roteiros, ruas, títulos de obras de arte e livros lidos e/ou comprados e assim por diante. Abaixo um fragmento das anotações de Beckett retirado do artigo "Beckett, German Fascism, and History: The Futility of Protest", de James McNaughton:


3) Os seis cadernos manuscritos que formam os "Diários Alemães" de Beckett estão depositados no arquivo da Beckett International Foundation, na Universidade de Reading (o material como um todo tem, aproximadamente, 120 mil palavras). Algumas das experiências desses meses alemães são retrabalhadas na ficção futura, como é o caso de sua visita aos afrescos de Tiepolo na Würzburg Residenz, que aparecem em Malone morre. Os diários de Beckett ainda não foram publicados, mas são analisados detidamente por Mark Nixon em seu livro de 2011, Samuel Beckett's German Diaries 1936-1937 (Using the diaries as the central point of focus, Nixon draws on unpublished manuscripts, notebooks, correspondence, reading notes from the 1930s to reflect on both Beckett's creative evolution prior to 1936 and the direction his writing took after his return to Dublin in April 1937).

domingo, 4 de dezembro de 2022

Outra escritura



1) Chegando a Salvador, durante sua viagem pelo Brasil em 1936, Ernst Jünger vai à "Cidade Alta" e depois desce para "explorar as ruas". Sempre a atenção às próteses, aos dispositivos e à difusão da técnica: ele escreve que para diante das "lojas de instrumentos dentários e cirúrgicos": "tive a impressão que seria difícil encontrar tais instrumentos na maioria das clínicas de Berlim" (de onde vem esses instrumentos? Dos Estados Unidos?). Em outra vitrine, Jünger reencontra as fotografias, comentadas alguns dias antes: "as pomposas molduras das fotografias de grupos de pessoas" (Viagem atlântica, trad. Marcos A. P. Ribeiro, Edusp, 2022, p. 98).

2) A suposição de Jünger é que se trata "da última turma de formandos em medicina"; os professores "com barretes e túnicas pretas profusamente adornadas com peliças brancas" ocupam o centro da imagem; "a impressão geral era que seguiam modelos de Oxford", comenta Jünger, "ainda que, algumas vezes, um senhor moreno sobressaísse" (Jünger descendo uma rua de Salvador em 1936 e parando diante da vitrine de um fotógrafo, encontrando a imagem de uma turma de formandos de uma universidade brasileira cujos ritos e pompas imitam aqueles de uma universidade inglesa fundada em 1096).

3) Outro dispositivo ligado aos signos que recebe a atenção de Jünger: os livros; mais especificamente os livros vistos na biblioteca de um "convento", "espécie de ermida à beira-mar", ocupada por religiosos de origem alemã. "Meu guia, dom Alfonso Zehnle, mostrou-me, inicialmente, a capela e a imagem barroca da Virgem", escreve Jünger. A biblioteca conta com uma "rica literatura sobre teologia antiga"; "lamentavelmente, a despeito das vaporizações periódicas com sulfeto de carbono, encontrei a maioria dos volumes estragados pela ação dos insetos". Surge abruptamente uma nova cena de leitura, uma decifração de algo que Jünger não entende: "Quando se abre uma das folhas desses livros, corroída pelos cupins, vemos aparecer os caracteres de outra escritura, da qual tudo, ao final, foi sacrificado - pena, papel, poesia e, também, o poeta. A advertência é particularmente forte nos trópicos" (p. 102).