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sexta-feira, 13 de dezembro de 2024

O carvalho de Coriolano



1) Na vida de Coriolano, logo no início, na terceira seção, Plutarco conta como o então jovem guerreiro recebeu de seu comandante uma coroa feita das folhas do carvalho, concedida àqueles que salvam um companheiro de armas ao protegê-lo com o escudo. Como é típico de Plutarco (e, sem dúvida, um dos elementos que asseguram o valor do seu estilo ao longo dos séculos), ele inicia uma digressão aproveitando o tema do "carvalho": árvore que remete aos arcádios e à Arcádia, a mais fértil entre as árvores selvagens e a mais vigorosa entre as árvores cultivadas; "convém não esquecer", acrescenta Plutarco, que o carvalho oferece nutrição com suas "bolotas", além de ser fonte do hidromel, além de auxiliar na caça às "aves comestíveis" ao fornecer seu "visgo".

2) Como também acontece frequentemente em Plutarco, muitas das referências mobilizadas ao longo das digressões servem para uma valorização, ainda que enviesada, do mundo grego. É esse o caso na evocação das bolotas dos carvalhos: entre parênteses, Plutarco escreve que um "oráculo" certa feita chamou os arcádios de "comedores de bolotas". Uma das ocorrências dessa expressão está na Anthologia Palatina, que apresenta esse "Oráculo da Pítia", de autoria desconhecida: "Pedes a Arcádia? Muito pedes tu – não ta darei! / Na Arcádia há muitos homens comedores de bolotas / que se te interporão" (Heródoto (1.66), que transmite o oráculo, diz que ele foi dado pela Pítia aos Espartanos).

3) Nos versos 20-21 da décima Bucólica, Virgílio resgata um de seus pastores, Menalcas, e o apresenta "molhado pela colheita da bolota"; em nota, o tradutor João Pedro Mendes acrescenta: "A apanha do fruto do carvalho, para sustento dos porcos e bois na invernia, é executada na estação chuvosa e fria. O pastor chega molhado devido a essa tarefa de inverno. Também pode interpretar-se de outro modo. Catão, De Agric., 54, e Columela, VII, 9, 8, informam que os rústicos conservavam as bolotas em água para uso posterior" (p. 314-315, n. 18). No Canto XIII (versos 409-410) da Odisseia, Homero faz Ulisses reencontrar Eumeu e descreve as atividades dos porcos deste último: bebem água turva e comem muitas bolotas gostosas, próprias para a engorda.

sábado, 16 de novembro de 2024

Adestradores


Ainda em De genio Socratis, bem depois da passagem na qual se fala do daimon de Sócrates como um espirro, outro personagem relembra o que um oráculo teria dito ao pai de Sócrates quando este era ainda criança (20, 589, E): devia deixá-lo fazer o que quisesse, sem limitar ou guiar seus impulsos, garantindo sua plena liberdade, pois o menino já tinha dentro de si um guia melhor que qualquer mestre ou pedagogo.

Por fim, outro personagem, ampliando a questão (24, 594, B), levanta a hipótese de que os deuses marcam os melhores de nós, como um adestrador escolhe um cavalo dentro de um grupo de cavalos; os escolhidos recebem mensagens por símbolos, incompreensíveis para o restante do rebanho; assim como a maioria dos cães não entende o chamado do treinador, mas o cão escolhido sabe obedecer a um determinado assovio. "Tenho a impressão de que também Homero conhecia essa diferença", diz o personagem de Plutarco, citando o verso: "Heleno, querido filho de Príamo, entendeu dentro de si a decisão que agradava aos deuses em seus conselhos" (Ilíada, VII, 44-45). 

sexta-feira, 15 de novembro de 2024

Sócrates e o espirro


Em sua narrativa De genio Socratis (tradução latina do grego Perí tou Sōkrátous daimoníou), Plutarco não apenas retoma a figura de Sócrates, mas o faz a partir do modelo oferecido pelo Fédon platônico: uma reflexão especulativa acerca do destino das almas após a morte. Na narrativa de Plutarco, Sócrates aparece eventualmente como tema de conversação de um grupo de conjurados que prepara uma insurreição contra os tiranos que tomaram o poder em Tebas (o que faz pensar em certas histórias de Jorge Luis Borges ou de Leonardo Sciascia). 

Em certa passagem (11, 581, B), um dos personagens relata algo que ouviu de um megarense: a informação de que o "gênio" de Sócrates (seu daimon, a energia sobrenatural que o guiava e protegia) era, na verdade, um espirro: se alguém espirrava à sua direita, ou atrás, ou à frente, Sócrates sabia que devia agir; se o espirro viesse da esquerda, sabia que devia ficar quieto e não fazer nada (o mesmo personagem chega à conclusão, no andamento de sua fala, que a ideia toda é ridícula e não combina com aquilo que sabemos sobre Sócrates).

sábado, 14 de setembro de 2024

Arqueologia do descontentamento



1) Existe um sentimento de descontentamento diante da própria época, diante da própria contemporaneidade, que funciona como um fio que une e articula uma série de obras e poéticas: é possível começar com Leonardo Sciascia que, apesar de ligado à política (portanto, aos debates e às burocracias de sua época), exaltava outros tempos, outros gestos, outros interesses e sentimentos (aqueles de Voltaire, por exemplo), sempre manifestando descontentamento com o embrutecimento que diagnosticava na sociedade ao seu redor (o caso Aldo Moro é paradigmático dessa situação).

2) A partir de Sciascia, é possível prosseguir em direção àquela que é sua principal referência, Stendhal, também ele marcado pelo cultivo de um desajuste com sua própria época (e, assim como Sciascia, um descompasso que é ambivalente: Stendhal exaltou seu contemporâneo Napoleão e todas as mudanças que o Imperador desencadeou), buscando nos arquivos italianos os traços luminosos de um passado que ele reconhecia como mais condizente com sua sensibilidade (Crônicas italianas); assim como Sciascia leu Stendhal com devoção, o mesmo fez Stendhal com Montaigne: é do inventor do ensaio que fez a potência do "eu", a capacidade virtualmente infinita de dar voltas ao redor dos próprios medos e ambições, capacidade essa que é o centro da invenção ficcional do próprio Stendhal (Souvenirs d'égotisme).

3) Montaigne também é um bom exemplo da tensão entre o pertencimento do artista à própria época e seu desejo de ser sozinho, de estar isolado - Montaigne que foi prefeito de Bordeaux entre 1580 e 1581 e que também mandou construir uma torre para melhor trabalhar em solidão. E, a partir de Montaigne, é possível pensar em Plutarco, uma de suas referências constantes: vive no Império Romano (nasce por volta de 46, morre por volta de 120), mas escreve em grego; foi sacerdote, magistrado e uma espécie de diplomata; sempre atento aos meandros políticos do presente imediato, mas permanentemente ligado às camadas metafísicas da experiência (falava em Alma e em Providência).

sábado, 17 de setembro de 2022

Canonização



1) Outro ponto importante levantado por Giorgio Agamben em seu livro O Reino e o Jardim - além da relação inventiva que Dante estabelece com a filosofia de seu tempo, como comentei em outra postagem - diz respeito às armadilhas da canonização: "o paraíso terrestre de Dante é a negação do paraíso dos teólogos", escreve Agamben, e continua: "e é ao menos singular que, apesar desta evidente e peremptória contrariedade, se continue a interpretar Dante através de Tomás e a teologia escolástica - mais uma prova, se houvesse necessidade, do fato que nada torna tão obscura e ilegível uma obra quanto sua canonização" (5.8). 

2) Como escreve Borges em seu ensaio "Sobre os clássicos", incluído em Outras inquisições (1952): "Não importa o método essencial das obras canonizadas; importam a nobreza e número de problemas que suscitam". E continua: "Finjamos que os detratores de Goethe têm razão, finjamos que o valor de suas obras é avaliável em zero. Um fato continua incólume: um goetheano é uma pessoa interessada pelo universo, interessada em Shakespeare e em Espinosa, em Macpherson-Ossian e em Lavater, na poesia dos persas e na conformação das nuvens, em hexâmetros, em arquitetura, em metais, no cravo cromático de Castel e em Denis Diderot, na anatomia, nos alquimistas, nas cores, nos graciosos labirintos da arte e na evolução dos seres em tudo, é lícito afirmar, salvo nas matemáticas. O mundo limitável ou consentido pela palavra de Goethe não é menos versátil que o mundo".

3) Por fim, Borges alcança Dante: "Quase o mesmo diremos do mundo de Dante Alighieri, que abrange os mitos helênicos, a poesia virgiliana, a órbita aristotélica e platônica, as especulações de Alberto Magno e de Tomás de Aquino, as profecias hebraicas e, (desde Asín Palacios) as tradições escatológicas do Islam. O de Shakespeare confina com o de Homero, com o de Montaigne, com o de Plutarco, e antecipa em seu âmbito as involuções de Dostoiévski ou de Conrad, a ansiedade verbal de um James Joyce ou de um Mallarmé".

segunda-feira, 23 de novembro de 2020

Roma, 1492


1) Em determinado momento do quarto capítulo de Nondimanco, seu livro sobre Maquiavel e Pascal lançado em 2018, Carlo Ginzburg parece suspender o andamento da argumentação para comentar algo sobre a materialidade de um livro: a edição de 1492, feita em Roma, do comentário de São Tomás de Aquino à Política de Aristóteles. O objetivo principal de Ginzburg é estabelecer qual foi a edição da Política lida por Maquiavel - para chegar lá (nesse ponto argumentativo lançado para o futuro), ele visita geograficamente a Biblioteca Comunale degli Intronati de Siena, onde está um exemplar da edição de 1492.

2) "O exemplar que consultei", escreve Ginzburg, "tem um valor especial, porque pertenceu àquele que inspirou o projeto editorial: Agostino Piccolomini" (não confundir com Agostino Patrizi Piccolomini). Ginzburg descreve as duas cartas dedicatórias presentes no exemplar: a primeira é escrita por Agostino e endereçada ao seu mestre, Ludovico di Valenza; a segunda carta é escrita pelo próprio Ludovico e endereçada ao tio de Agostino, Francesco Todeschini Piccolomini, que em breve se tornaria o Papa Pio III (ocupando o posto de 22 de setembro a 18 de outubro de 1503). O exemplar se torna uma sorte de testemunha dos eventos e da materialidade dos corpos daqueles de quem fala Ginzburg - na linha do Barthes da Câmara clara: "vejo os olhos que viram o Imperador".

3) Gostaria de ler um relato suplementar ao livro de Ginzburg, uma sorte de apostila, dedicada exclusivamente a detalhar as viagens necessárias para ter em mãos certos livros. Não é só esse de Agostino Piccolomini em Siena que Ginzburg cita: vários outros livros únicos aparecem e são elementos determinantes para a argumentação (ele aponta diferenças entre os exemplares, acréscimos, substituições, rasuras e assim por diante). O livro de Pontano sobre a prudência, de 1508 (edição napolitana), foi consultado em Bolonha; a edição das Vidas de Plutarco em latim, de 1491 (edição veneziana), foi consultada em Chicago, e assim por diante.

terça-feira, 29 de maio de 2018

A forma é o gado dos deuses


1) Em A literatura e os deuses, Roberto Calasso resgata de Aby Warburg a noção de "onda mnêmica" - pensada para as artes visuais e em Calasso transferida para a literatura. As formas literárias migram no tempo e no espaço, adaptando-se às normas do contexto, ressignificando seus procedimentos. "A métrica é o gado dos deuses", escreve Calasso, resgatando os gregos e o pensamento hinduísta - o ritmo da literatura, seus métodos de encadeamento e apresentação do conteúdo, são os traços visíveis da passagem do tempo. Esse jogo da forma é o que torna possível tanto o Atlas Mnemosyne, de Aby Warburg, quanto o Livro das Passagens, de Walter Benjamin, contemporâneos esforços tanto de exposição quanto de comentário da "onda mnêmica" (a noção de jogo da forma, aliás, é enfatizada por Huizinga poucos anos depois, em 1938, com a publicação de Homo Ludens).

2) A forma é portátil, remontável - é o que mostra também Vila-Matas na História abreviada da literatura portátil. Seu modelo é a História universal da infâmia, de Borges, cuja primeira edição é de 1935, lado a lado com Benjamin e Warburg. Um ano antes, Henri Focillon lança A vida das formas, em que diz que a arte não trabalha na sucessão cronológica, mas na articulação de intensidades; é também esse contato entre forma e intensidade no tempo que movimenta o trabalho inicial de Lukács, A alma e as formas, de 1911. Tudo isso seria intensificado e aprofundado, no campo específico da teoria literária, no amplo estudo de matriz warburguiana de Ernst Robert Curtius, Literatura Européia e Idade Média Latina, de 1953, que pensa a continuidade da literatura - "de Homero a Goethe" - através da recorrência das formas.  

3) Um exemplo: para escrever suas Vidas imaginárias (1896), Marcel Schwob foi atingido pela "onda mnêmica" que vinha em parte de Plutarco (Vidas paralelas), em parte de Vasari (Vidas dos pintores)  e em parte da hagiografia medieval. A onda segue na já citada História universal da infâmia, de Borges (1935, segunda edição revisada em 1954), na Sinagoga dos iconoclastas de J. Rodolfo Wilcock (1972), na Literatura nazi na América de Bolaño (1996), nos contos-verdade de Valêncio Xavier, Crimes à moda antiga (2004), e em Vite congetturali, de Fleur Jaeggy (2009), que encerra temporariamente o ciclo voltando o procedimento em direção ao próprio Marcel Schwob, que aqui vira personagem.

Essa forma peculiar do registro de vidas que se dá como uma lista de verbetes - um inventário, um dicionário, uma enciclopédia, sem ser nenhum inteiramente - atravessa tempo e espaço, formando um fio de eventos: por um momento, a forma captura uma intensidade (vidas infames, excêntricas, anormais, desviantes), cristalizando-a temporariamente antes que siga seu curso.    

terça-feira, 31 de outubro de 2017

O escândalo de Homero


Entre Homero e toda teologia sucessiva, incluída a de Hesíodo, subsiste uma divergência radical, que provoca escândalo. 

Homero, como é referido em Plutarco, recusa-se a distinguir entre deuses e daímones: "parece usar os dois termos indiferentemente e fala dos deuses como daímones". Isso impede de descarregar sobre os daímones as ações tenebrosas dos deuses e veta qualquer concepção de uma escala do ser em que, através de purificações sucessivas, seja possível ascender até o divino e este possa ordenadamente descer até o homem. 

Tal concepção, que é o fundamento iniciático de todo platonismo, já se tornara possível graças à subdivisão que Hesíodo fizera dos seres em quatro categorias: homens, heróis, daímones, deuses.

Homero, ao contrário, ignora a mediação. Para ele, dizer herói é como dizer genericamente homem, não sente falta de provocar a intervenção de uma classe autônoma de daímones. Aqui, os extremos são adjacentes: nada suaviza a violência do contato. Porém, é possível ler, sempre em Plutarco [O crepúsculo dos oráculos]: "aqueles que não admitem a estirpe dos daímones tornam estranhas entre eles e sem condições de serem misturadas as coisas dos homens e as dos deuses, eliminando, como disse Platão, 'a natureza interpretante e administradora', ou então nos obrigam a uma mistura geral e intrometem o deus entre as paixões e os negócios humanos, arrastando-o para baixo segundo as necessidades do momento, como se costuma dizer das mulheres de Tessália, capazes de trazer a luz para a terra". 

Talvez em nenhuma outra como nesta passagem do tardio e sábio Plutarco tenha sido enunciado o irremovível escândalo de Homero, o inimigo da mediação. Quando os padres cristãos praguejam contra as torpezas homéricas, não fazem outra coisa a não ser renovar, na essência, o escândalo de Platão e de seus descendentes, lucidamente organizados nas palavras de Plutarco. 

O curso da civilização grega surge então como o processo no qual se torna progressivamente intolerável a autoridade fundadora: o próprio Homero. 

(Roberto Calasso, As núpcias de Cadmo e Harmonia, trad. Nilson Moulin, Cia das Letras, 1990, p. 190-191).

sábado, 11 de junho de 2016

Vida póstuma, 3

Um amigo japonês disse-me que o famoso santuário imperial em Ise se mantém inalterado desde o século VII - idêntico ao que era quando foi construído pela primeira vez. Para os ocidentais, é claro, ele não parece assim tão velho. É que, segundo a tradição corrente, os edifícios em Ise têm sido reconstruídos (em locais alternados) a cada vinte anos, exatamente da mesma maneira - usando-se os mesmos instrumentos antigos e os mesmos materiais -, e cada passo do processo é marcado pelos rituais antigos apropriados. Mas é óbvio que os instrumentos não poderiam ser exatamente os mesmos, poderiam? Eles não teriam durado treze séculos. E o que significa dizer que os materiais são os mesmos, visto que a cada vez se usa madeira nova? E de que modo duas performances rituais poderiam jamais ser "a mesma"?

(Na verdade, o ciclo de reconstrução foi certa feita interrompido por mais de 150 anos, e os edifícios e instrumentos sofreram algumas mudanças. Mas esta não é a tradição ou percepção japonesa dominante. A tradição diz que eles não mudaram, e a percepção é de que são os mesmos).

Um crítico de arte ocidental explica que os edifícios reconstruídos não são "réplicas", mas sim "Ise recriado".

Nosso conceito da continuidade de uma floresta talvez seja algo de mais próximo da concepção xintoísta, já que ele envolveria de fato a natureza: a floresta amazônica vem existindo há séculos ou milênios, mesmo se todas as árvores originais pereceram e foram substituídas várias vezes. Em todo caso, é óbvio que a identidade é uma construção relativa, baseada em uma valoração seletiva de similaridades e diferenças. Em Ise, é irrelevante que os materiais tenham sido renovados - e assim não sejam os mesmos aos olhos ocidentais -, contanto que permaneçam sendo do mesmo tipo e que sua combinação obedeça ao antigo regime técnico e ritual. Segundo tais critérios, aquilo que chamamos Abadia de Tinturn [Famosas ruínas, situadas no País de Gales, de igreja reconstruída no século XIII, pertencente à abadia fundada no século anterior por monges cisterciences. Inspirou o poema de Wordsworth, "Lines". N.T.] não poderia receber tal nome, a despeito da "autenticidade" ou da idade de suas pedras. Não seria a Abadia de Tinturn, porque é uma ruína.

Em sua Vida de Teseu, Plutarco conta a seguinte história sobre o navio em que o herói retornou a Atenas, após ter vencido o Minotauro: 

A galé de trinta remos na qual Teseu velejou com os jovens e retornou são e salvo foi preservada pelos atenienses até a época de Demétrio de Falera (317-307 a.C.). De tempos em tempos, removiam o madeirame velho e o substituíam por um novo, de modo que o navio tornou-se uma ilustração clássica, para os filósofos, da polêmica sobre o crescimento e a mudança, alguns argumentando que ele continuava o mesmo, outros defendendo que se transformara em uma embarcação distinta.

O que pensar, assim, da observação tão popular segundo a qual "a cultura está sempre em transformação"?

(Marshall Sahlins, Esperando Foucault, ainda. Trad. Marcela Coelho de Souza e Eduardo Viveiros de Castro. São Paulo: Cosac Naify, 2004, p. 13-14).
*
As Vidas de Plutarco são material inesgotável na investigação sobre ecos, repetições, vidas póstumas. A maioria delas é organizada em duplas - um grego e um romano, lado a lado (Teseu, por exemplo, vem com Rômulo). Napoleão, esse estrategista da repetição, foi leitor aplicado de Plutarco. Mas as Vidas - como tentei elaborar algumas vezes - de Plutarco retornam nas Vidas de Marcel Schwob, Giorgio Vasari, na Sinagoga de Wilcock, nas vidas infames de Foucault, nas vidas minúsculas de Pierre Michon, e não apenas em sua história universal da infâmia, mas também no Pierre Menard de Borges, esse outro estrategista da repetição, que não quer copiar o Quixote, e sim fazer coincidir seu texto com aquele de Cervantes (Borges traz a lição textual da vida póstuma: o sentido não é inerente, essencial, substancial; as condições históricas de enunciação modificam todos os enunciados, por isso o estilo de Menard é rebuscado, arcaizante, e o estilo de Cervantes, comum, corrente, não-inventivo).  

segunda-feira, 15 de junho de 2015

Odores, tiques, mímicas


Nos livros, Montaigne se interessa por detalhes que podem parecer-nos muito acessórios, como este, no pequeno capítulo "Sobre os cheiros", do primeiro livro: "Diz-se de alguns, como de Alexandre, o Grande, que seu suor exalava um odor suave, por alguma rara e extraordinária compleição". Montaigne leu esse dado minúsculo nas Vidas paralelas dos homens ilustres, de Plutarco, seu livro de cabeceira, um best-seller do Renascimento. 

O melhor que se pode esperar é que os homens não tenham cheiro algum. Ora, Alexandre - de suor suave - não só não cheirava mal como cheirava bem por natureza. Segundo Plutarco, ele tinha um temperamento ardente, semelhante ao fogo, que cozia e dissipava a umidade do corpo. Montaigne é apaixonado por esse tipo de observações que coleta nos historiadores. Interessa-se não pelos grandes acontecimentos, pelas batalhas, pelas conquistas, e sim pelas anedotas, pelos tiques, pelas mímicas: Alexandre inclinava a cabeça para o lado, César coçava a cabeça com um dedo, Cícero cutucava o nariz. Esses gestos não controlados, que escapam da vontade, dizem mais sobre um homem do que as façanhas de sua lenda.

(Antoine Compagnon, Uma temporada com Montaigne. Trad. Rosemary Abilio. WMF Martins Fontes, 2015, p. 145-146).
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Duas frentes se abrem a partir do comentário de Compagnon sobre Montaigne: a reflexão sobre as vidas, célebres ou infames, e a dispersão de seus detalhes (seja em Giorgio Vasari, ou em Michon e Foucault); e o desenvolvimento do "paradigma indiciário" de Carlo Ginzburg, que se desdobra a partir da intuição de Aby Warburg ("Deus está nos detalhes") e a partir da sintomatologia de Freud. Nada mais freudiano do que esses "tiques" e "gestos não controlados" de que fala Montaigne, e de que falará Agamben em Signatura rerum a partir da "teoria" e da "filosofia das assinaturas" (e sobretudo a partir da arqueologia de Foucault, fazendo com que as "vidas" e os "gestos" se juntem novamente; Montaigne como mais um elo de uma cadeia que leva dos homens das cavernas até o homem da multidão de Edgar Allan Poe). 
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"Uma disciplina como a psicanálise constitui-se", escreve Ginzburg, "em torno da hipótese de que pormenores aparentemente negligenciáveis pudessem revelar fenômenos profundos de notável alcance. A decadência do pensamento sistemático veio acompanhada pelo destino do pensamento aforismático - de Nietzsche a Adorno. O próprio termo 'aforismático' é revelador. A literatura aforismática é, por definição, uma tentativa de formular juízos sobre o homem e a sociedade a partir de sintomas, de indícios: um homem e uma sociedade que estão doentes, em crise. E também 'crise' é um termo médico, hipocrático. Pode-se demonstrar facilmente que o maior romance da nossa época - a Recherche de Proust - é constituído segundo um rigoroso paradigma indiciário" (Carlo Ginzburg, Mitos, emblemas, sinais. "Sinais: raízes de um paradigma indiciário". Trad. Federico Carotti. Cia das Letras, 1989, p. 178).

domingo, 14 de setembro de 2014

Vidas, vida

Desenho de Goethe, 1817

Pierre Michon faz tanto o relato dessas vidas minúsculas quanto o relato da progressão da vida desse narrador ao redor dessas vidas minúsculas, ou ainda, a especulação ficcional a respeito do quanto dessas vidas minúsculas sobrevive nessa subjetividade que toma a palavra - que se identifica como escritor tardio, que compartilha o nome Michon com Michon (se alguém poderia reivindicar o mote de Vila-Matas - "meu estilo é o de quem chega tarde e por isso tem pressa -, esse alguém certamente é Michon, que faz desse "chegar tarde" mote para ficção). Vidas minúsculas, portanto, é um romance de formação, um Bildungsroman, que se projeta para o exterior, que codifica uma voz em formação somente de forma enviesada, na refração que sofre essa voz ao se projetar em direção aos mortos (dupla reivindicação de Bakhtin, portanto: primeiro, a reversão do modelo do romance de formação, quando Michon posiciona o tempo de amadurecimento no passado; segundo, a ativação que Michon faz do modelo arcaico das Vidas (Plutarco, mas também Vasari e Marcel Schwob) em paralelo ao modelo do diálogo com os mortos (Luciano de Samósata))