sábado, 11 de junho de 2016

Vida póstuma, 3

Um amigo japonês disse-me que o famoso santuário imperial em Ise se mantém inalterado desde o século VII - idêntico ao que era quando foi construído pela primeira vez. Para os ocidentais, é claro, ele não parece assim tão velho. É que, segundo a tradição corrente, os edifícios em Ise têm sido reconstruídos (em locais alternados) a cada vinte anos, exatamente da mesma maneira - usando-se os mesmos instrumentos antigos e os mesmos materiais -, e cada passo do processo é marcado pelos rituais antigos apropriados. Mas é óbvio que os instrumentos não poderiam ser exatamente os mesmos, poderiam? Eles não teriam durado treze séculos. E o que significa dizer que os materiais são os mesmos, visto que a cada vez se usa madeira nova? E de que modo duas performances rituais poderiam jamais ser "a mesma"?

(Na verdade, o ciclo de reconstrução foi certa feita interrompido por mais de 150 anos, e os edifícios e instrumentos sofreram algumas mudanças. Mas esta não é a tradição ou percepção japonesa dominante. A tradição diz que eles não mudaram, e a percepção é de que são os mesmos).

Um crítico de arte ocidental explica que os edifícios reconstruídos não são "réplicas", mas sim "Ise recriado".

Nosso conceito da continuidade de uma floresta talvez seja algo de mais próximo da concepção xintoísta, já que ele envolveria de fato a natureza: a floresta amazônica vem existindo há séculos ou milênios, mesmo se todas as árvores originais pereceram e foram substituídas várias vezes. Em todo caso, é óbvio que a identidade é uma construção relativa, baseada em uma valoração seletiva de similaridades e diferenças. Em Ise, é irrelevante que os materiais tenham sido renovados - e assim não sejam os mesmos aos olhos ocidentais -, contanto que permaneçam sendo do mesmo tipo e que sua combinação obedeça ao antigo regime técnico e ritual. Segundo tais critérios, aquilo que chamamos Abadia de Tinturn [Famosas ruínas, situadas no País de Gales, de igreja reconstruída no século XIII, pertencente à abadia fundada no século anterior por monges cisterciences. Inspirou o poema de Wordsworth, "Lines". N.T.] não poderia receber tal nome, a despeito da "autenticidade" ou da idade de suas pedras. Não seria a Abadia de Tinturn, porque é uma ruína.

Em sua Vida de Teseu, Plutarco conta a seguinte história sobre o navio em que o herói retornou a Atenas, após ter vencido o Minotauro: 

A galé de trinta remos na qual Teseu velejou com os jovens e retornou são e salvo foi preservada pelos atenienses até a época de Demétrio de Falera (317-307 a.C.). De tempos em tempos, removiam o madeirame velho e o substituíam por um novo, de modo que o navio tornou-se uma ilustração clássica, para os filósofos, da polêmica sobre o crescimento e a mudança, alguns argumentando que ele continuava o mesmo, outros defendendo que se transformara em uma embarcação distinta.

O que pensar, assim, da observação tão popular segundo a qual "a cultura está sempre em transformação"?

(Marshall Sahlins, Esperando Foucault, ainda. Trad. Marcela Coelho de Souza e Eduardo Viveiros de Castro. São Paulo: Cosac Naify, 2004, p. 13-14).
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As Vidas de Plutarco são material inesgotável na investigação sobre ecos, repetições, vidas póstumas. A maioria delas é organizada em duplas - um grego e um romano, lado a lado (Teseu, por exemplo, vem com Rômulo). Napoleão, esse estrategista da repetição, foi leitor aplicado de Plutarco. Mas as Vidas - como tentei elaborar algumas vezes - de Plutarco retornam nas Vidas de Marcel Schwob, Giorgio Vasari, na Sinagoga de Wilcock, nas vidas infames de Foucault, nas vidas minúsculas de Pierre Michon, e não apenas em sua história universal da infâmia, mas também no Pierre Menard de Borges, esse outro estrategista da repetição, que não quer copiar o Quixote, e sim fazer coincidir seu texto com aquele de Cervantes (Borges traz a lição textual da vida póstuma: o sentido não é inerente, essencial, substancial; as condições históricas de enunciação modificam todos os enunciados, por isso o estilo de Menard é rebuscado, arcaizante, e o estilo de Cervantes, comum, corrente, não-inventivo).  

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