terça-feira, 30 de novembro de 2021

Trovão

No Finnegans Wake, James Joyce inventa uma palavra de cem letras que aparece de quando em quando, em intervalos regulares: ela "representa" os trovões, o início do mundo, a recorrência dos ciclos naturais e também o som que faz a cabeça do protagonista ao ser fraturada por conta de uma queda da escada. "Nos livros de Joyce, o trovão é sempre a voz do Deus colérico. Em Ulysses, ele troa quando os estudantes na maternidade zombam das forças da vida. A linguagem usada é repleta de terror primitivo (...) Joyce mesmo sempre tremeu com o troar do trovão e, a quem lhe perguntava por quê, respondia: Você não foi criado na Irlanda católica" (Burgess, Homem comum enfim, trad. José Antonio Arantes, Cia das Letras, p. 29).

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O Vico da Ciência Nova afirma que o trovão marca a origem da linguagem e do pensamento: o abrupto ruído gera o temor e o temor gera a elaboração cultural (a linguagem, o pensamento), estratégia de sobrevivência, de familiarização do temor (pela via das metáforas, que aproximam o humano do "divino" - criado pelo próprio humano - pois dão vida ao inanimado (a própria ideia de "dar vida" já é uma metáfora, mostrando o inexorável ciclo dos corsi e ricorsi). 

quarta-feira, 24 de novembro de 2021

O lado de cá da foto



1) Uma passagem interessante de The Lazarus Project, de Aleksandar Hemon, seu único romance, publicado originalmente em 2008 (mesmo ano de Man in the Dark, romance de Paul Auster que também comenta a relação entre imagem e violência, fazendo referência à gravação de uma decapitação no Iraque): o narrador, um refugiado de Sarajevo que mora há muitos anos em Chicago (exatamente como Hemon, embora não seja esse seu nome), ganha uma bolsa para escrever um livro e vai ao Leste Europeu com seu amigo fotógrafo, Rora (todo capítulo do romance de Hemon inicia com uma imagem, parte delas retirada dos arquivos da Chicago Historical Society, parte delas de autoria de Velibor Božović, que o leitor imagina ser o "modelo" para o personagem Rora).

2) No fim de um dos capítulos, quando o narrador e seu amigo fotógrafo já estão em viagem, o primeiro conta ainda mais detalhes acerca de sua dinâmica doméstico-familiar, suas brigas com a esposa e, nesse caso específico, uma discussão que tiveram sobre as imagens de tortura em Abu Ghraib (ele escandalizado, ela contemporizando de sua perspectiva de "estadunidense pura"). Depois de um longo parágrafo sobre as desavenças do casal, o narrador corta o fluxo abruptamente e inicia um novo parágrafo (o último do capítulo) da seguinte forma: "Rambo gostava principalmente que eu tirasse fotos dele com os mortos para depois ficar olhando para elas, Rora disse. Ele ficava excitado - aquilo era o pau duro dele, o seu poder absoluto: estar vivo em meio à morte. Tudo se reduzia a isso: os mortos estavam errados, os vivos estavam certos. Todo mundo que já foi fotografado ou está morto ou estará. É por isso que ninguém tira foto de mim. Quero ficar do lado de cá da foto" (na tradução brasileira, p. 197). 

3) Rambo é um dos "caudilhos" da Guerra da Bósnia, a quem Rora se refere continuamente ao longo do romance (contribuição à análise da "personalidade autoritária", de Sarmiento e Adorno). Apesar de breve, a reflexão de Rora é interessante em dois aspectos: o modo como, de forma condensada, liga a fotografia à morte, como fizeram Benjamin, Sontag e Barthes; o modo como relaciona o registro visual dos mortos ao "poder absoluto" e à "excitação", como "estar vivo em meio à morte" é central para a manutenção da autoridade, algo que está no cerne da argumentação de Elias Canetti em Massa e poder, por exemplo, quando fala do "detentor do poder como sobrevivente" e da "aversão dos poderosos pelos sobreviventes", ou ainda dos "mortos como aqueles aos quais se sobreviveu".  

quinta-feira, 18 de novembro de 2021

Revelações


1) Em seu breve livro sobre Vico, Peter Burke diz que é significativo não apenas o que Vico leu, mas também como leu: Burke afirma que Vico desenvolveu um método de leitura "nas entrelinhas", atentando não apenas para aquilo que era "intencionado" pelo texto mas também buscando as "revelações involuntárias" dos autores (entre parênteses, Burke afirma que a expressão "revelações involuntárias" vem de um ensaio de Alessandro Manzoni dedicado a Vico). A obra de Homero é integralmente revisada por Vico a partir desse método, aplicado de forma "integral, autoconsciente e sistemática": Vico busca em Homero o que é "incidental" e "inconsciente", tomado como fonte não da "história de eventos", mas "para a história dos costumes e das crenças" (p. 86).

2) Vico busca em Homero, continua Burke, a "massa de informação sobre a sociedade grega da idade heroica", como combatiam, festejavam, reuniam assembleias... "Os poemas homéricos também revelam um modo de pensar próprio da idade heroica, um modo de pensar de que o poeta não podia ter consciência - pois a falta de autoconsciência é uma das principais características desse modo de pensar". Em seu texto sobre o escritor argentino e a tradição, Borges fala que o autor do Corão, seguro de sua condição de árabe, não menciona a palavra camelo. A legitimidade do Corão está em sua feição enviesada, oblíqua: o camelo está ausente não por ser banal aos árabes, mas por ser esteticamente desnecessário, e mais: por ser esteticamente perigoso, podendo dar uma dimensão postiça a um texto que se pretende eterno. 

3) A leitura nas "entrelinhas" de Vico é um dos elementos de base para a leitura dos "sinais" reveladores de Carlo Ginzburg, sua reivindicação do "paradigma indiciário". Em outubro de 2020, Ginzburg dá o título de Rivelazioni involontarie. Leggere la storia contropelo para sua aula inaugural na Università di Padova, uma fórmula que não só retoma o dito de Manzoni sobre Vico ("revelações involuntárias") como o encaixa na reflexão de Benjamin (a "história a contrapelo" das teses). O livro mais recente de GinzburgLa lettera uccide, lançado pela Adelphi em outubro de 2021, além de incorporar a aula de Padova, deixa claro que se trata, mais uma vez, de estabelecer um método de leitura dos detalhes: na introdução do livro, Ginzburg afirma que ao longo do tempo se dedicou ao "close reading de casos anômalos, distantes de qualquer cânone".

domingo, 14 de novembro de 2021

Igual, diferente


1) Para Vico, a metáfora garante que o pensamento e a linguagem estejam inseridos na história: a possibilidade de transformação na referência da linguagem ao mundo é garantia de que o mundo se transforma tanto quanto a linguagem (um dos principais pontos de discordância com Descartes, que recusava o metafórico e o histórico em prol de uma unidade pretensamente neutra do ideal científico). A metáfora inscreve na experiência um permanente paradoxo temporal: a metáfora é sempre mobilizada no presente da performance linguística e, ao mesmo tempo, carrega consigo energias arcaicas que dizem respeito à origem do mundo, do pensamento e da linguagem (como no mote ao redor do qual Ben Lerner organiza o romance 10:04: "tudo igual, só um pouco diferente").  

2) As "margens da filosofia", comentadas por Derrida no texto “A mitologia branca”, estão contidas nas metáforas que fabricam os enunciados filosóficos e contêm as figuras que dão feições específicas ao pensamento. As metáforas cobrem todo o dizer filosófico, instantâneos do encontro do conceito com criação, e, segundo Derrida, configuram duplo registro: expandem vertiginosamente a trama da argumentação, encobrindo sua arbitrariedade mediante um jogo linguístico de naturalização. 

3) Escreve Derrida: "o sentido visado através destas figuras é uma essência rigorosamente independente do que a transporta, o que é já uma tese filosófica, poder-se-ia mesmo dizer a única tese da filosofia, aquela que constitui o conceito de metáfora, a oposição do próprio e do não próprio, da essência e do acidente, da intuição e do discurso, do pensamento e da linguagem, do inteligível e do sensível, etc". (Jacques Derrida, Margens da Filosofia. (1972). Trad. Joaquim Torres Costa e António M. Magalhães. Campinas: Papirus, 1991, p. 270).

terça-feira, 9 de novembro de 2021

O ímã ama o ferro


1) Isaiah Berlin insiste na importância de "separar o joio do trigo" na obra de Vico, separar os momentos de arroubo fantasista dos momentos de genialidade e originalidade. O trabalho é difícil muito por conta da ambivalência dos escritos de Vico, seu estilo barroco, a reiteração por vezes contraditória das ideias (uma auto-aplicação das noções de corsi e ricorsi, da evocação espiralada da história, talvez). Vico refuta a ideia da tradução sem resíduos e, ao mesmo tempo, defende o caráter incontornável das traduções, das passagens, das adaptações, reiterações, repetições (não tanto do conteúdo daquilo que está sendo traduzido, mas o imperativo do próprio gesto tradutório: a matéria se transforma (nem tudo que está no grego pode estar, ipsis litteris, no latim), mas o gesto de promoção da transformação é sempre o mesmo).

2) Existem similaridades, ecos e paralelos, mas não uma identidade central que permaneça através dos tempos e espaços (Vico rejeita o princípio "iluminista" das verdades eternas e inalteráveis, e também o idealismo "neoplatônico" de parte dos renascentistas; embora reconheça, de forma ambivalente, a atuação de uma força divina superior). É o que permite que, para Vico, Dante seja uma espécie de novo Homero, sem que sua obra seja, de fato (sem resíduos ou sem diferença), uma repetição da épica grega: são duas épocas dominadas pelos "sacerdotes"; os deuses do Olimpo são substituídos pelos santos cristãos; a linguagem poética é mobilizada como instrumento de coesão comunitária, para além da centralidade institucional (a passagem do latim para o vulgar em Dante; a aglutinação de diversas experiências "regionalistas" visando um todo "grego" em Homero).

3) Com Vico também ganha destaque uma noção muito particular de "filologia", ou seja, a percepção de que a história da linguagem é a história dos indivíduos que usam a linguagem, que já não é mais pensada como algo estático e imutável, e sim cambiante, oscilante, feita de camadas heterogêneas de sentido. O modo de utilizar a linguagem tem repercussões sobre o modo de organização da religião, do direito, da vida social, da organização militar, dos laços familiares e assim por diante (quando encontra uma expressão como "o ímã ama o ferro", Vico reflete que não necessariamente isso indica um uso metafórico ou "poético" da linguagem - é preciso entender o contexto geral da língua dentro do qual se insere essa expressão específica, que pode ser corriqueira, banal).  

domingo, 7 de novembro de 2021

O pioneiro


"A Autobiografia [de Vico] é um registro interessante e dinâmico da vida de um homem completamente voltado para as questões filosóficas. (...) Ele viveu em uma pobreza amarga, teve pouco contato com a vida que o rodeava e, durante toda a sua existência, como resultado de uma queda sofrida na infância, foi um aleijado. Seu filho mais velho foi um criminoso; toda sua devoção foi dedicada a seu filho mais jovem, para o qual conseguiu assegurar a sucessão de sua cadeira de professor. Depois deste filho, o que mais amava era sua biblioteca. Da mesma forma que Maquiavel, ele escapava das suas misérias refugiando-se no mundo dos livros (...). Toda a sua vida careceu daquilo que é mais caro para um sábio, calma e tranquilidade. Era um sábio tímido, obsequioso e perseguido pela pobreza e ansiedade, que escreveu demais e depressa" (p. 25).

"A história, para Vico, era a progressão ordenada (guiada pela Providência atuante através das capacidades dos homens) de tipos sempre mais profundos de compreensão do mundo, de formas de sentir, atuar e expressar-se, cada uma das quais se desenvolve a partir da anterior, à qual substitui. A cada tipo ou cultura pertencem, necessariamente, algumas características que não é possível encontrar em qualquer outra. Assim começa a concepção da 'fenomenologia' da experiência e atividade humana, da história dos homens e da vida, conforme determinada pela sua própria moldagem, no início inconsciente e, a seguir, progressivamente mais consciente, ou seja, pelo domínio da natureza tanto morta como viva. Na forma que lhe deram Marx, Hegel e os seus seguidores, esta ideia domina o mundo moderno, e é por isso que Marx elogiava Vico. Para melhor ou para pior, ele foi o pioneiro desta visão dos homens e da história" (p. 45).

(Isaiah Berlin, Vico e Herder, trad. Juan Sobrinho, Ed. UnB, 1982)

segunda-feira, 1 de novembro de 2021

Uma encomenda


Em conversa recente dedicada exclusivamente a Ricardo Piglia, Alan Pauls relembra a época em que primeiro entrou em contato com o escritor, através de Josefina Ludmer e de seus cursos de teoria literária dados em casa. Uma das coisas interessantes que fala Pauls diz respeito a uma viagem que faz à Europa por volta de 1978 ("aquelas viagens de dois meses que se fazia na época", diz ele). Um de seus principais objetivos na viagem era comprar para Piglia uma cópia do livro de "Jurij Tynjanov", naquele momento só encontrável na Itália, intitulado Avanguardia e tradizione, provavelmente nessa edição de 1968 aqui reproduzida (e ainda disponível para compra, por incrível que pareça): parte da graça da viagem estava em "poder voltar a Buenos Aires e dar o livro a Piglia", diz Pauls.

A ideia de que uma viagem possa ser resumida à busca por um livro, um livro para um amigo (um amigo mais velho, uma espécie de modelo, alguém que lê os contos de Pauls quando ele ainda não é Alan Pauls), o livro de um "formalista russo" que, de resto, era e continuará sendo importante para a poética de Piglia, um autor que aparece tanto em seus ensaios quanto em sua ficção: Tinianov dedica um ensaio inteiro ao problema da "evolução literária" e Ricardo Piglia dá a ele os créditos da filiação "tio-sobrinho", em Respiração artificial: Alguien, un crítico ruso, el crítico ruso Iuri Tinianov, afirma que la literatura evoluciona de tío a sobrino (y no de padres a hijos) (p. 21 da edição Seix Barral). (A ideia, contudo, vem de Chklóvski, como mostrei aqui).