terça-feira, 28 de agosto de 2012

Um parágrafo de Stendhal

Manuscrito de Stendhal: viagem à Itália, 1811
1) Há qualquer coisa do aleph de Borges no método da desconstrução: dissecar, pouco a pouco, todo um universo a partir de um pequeno resíduo, uma leve falha, uma breve lacuna surpreendida no tecido de uma argumentação. Como naquele fenomenal exercício de leitura que J. Hillis Miller realiza, desconstruindo a desconstrução de Paul de Man no aparentemente simples movimento de ler e reler e virar do avesso um único parágrafo. 
2) Eis um parágrafo de Stendhal, citado no post anterior, que aponta para uma breve interrupção na narrativa, quase como uma nota de rodapé incorporada ao texto - uma história que Stendhal não podia deixar de fora, confiante na capacidade de proliferação desse pequeno enxerto. A qualidade estética desse fragmento, contudo, é imensa: é com ele que Stendhal articula um horizonte feito apenas de insinuações, contrapondo duas nações e suas contradições, seus impasses - essa coisa chamada de pilhéria ou caricatura não era conhecida nesse país de despotismo cauteloso, escreve Stendhal, e com essa frase resolve a definição da França (pela afirmação) e também a da Itália (pela negação, ou melhor, pela ausência).
3) A ideia de contrabando, a percepção da porosidade das fronteiras, da frágil arbitrariedade da marcação das fronteiras, os fluxos erráticos das influências recíprocas, tudo isso está no parágrafo de Stendhal. A caricatura, moeda corrente na rotina francesa, é absorvida como revolucionária pela rotina italiana - e não custa lembrar a reflexão de Derrida sobre Baudelaire, focando justamente a troca impura e o contrabando na imagem da moeda falsa (título de um poema em prosa de Baudelaire). Uma troca que ocorre a partir da imagem, da imagem perversa, a imagem como suplemento do real, transfiguração do real (o arquiduque que jorra trigo de um furo na barriga). Essa ênfase na imagem desfigurada da caricatura é um dos eixos da modernidade - Dolf Oehler se ocupou do contato entre Baudelaire e Daumier; Walter Benjamin escreveu tanto sobre um colecionador (Eduard Fuchs) quanto sobre artistas (George Grosz, Heartfield).  

sexta-feira, 24 de agosto de 2012

O fantasma de Stendhal

                      Napoleão por Antoine-Jean Gros. Retratado aos vinte e sete anos, o período no qual se passa A cartuxa de Parma, de Stendhal.
1) O que há de único em Stendhal? O que há de perturbador em Stendhal? Não sofre com o tempo: tem sido lido e reverenciado por artistas de alta envergadura, que encontram em seus livros enigmas que escapam da história cronológica padrão. Elias Canetti cita Stendhal com frequência - e há um capítulo de Massa e poder dedicado ao escritor francês. Stendhal era também uma das maiores obsessões de Leonardo Sciascia - colecionava edições, relia os romances de Stendhal ao menos uma vez ao ano, tomava notas, elaborava projetos para livros sobre Stendhal, etc. Depois da morte de Sciascia, sua mulher reuniu esse material em um livro póstumo: O adorável Stendhal
2) Roberto Bolaño, assim como Sciascia, separou uma parte de sua biblioteca especialmente para Stendhal - cujos livros ele não emprestava a ninguém. Mas a marca mais profunda está num dos versos de seu longo poema "Um passeio pela literatura", incluído no livro Tres - Bolaño sonha com o fantasma de Stendhal: Soñé que leía a Stendhal en la Estación Nuclear de Civitavecchia [cidade italiana na qual Stendhal foi cônsul francês]: una sombra se deslizaba por la cerámica de los reactores. Es el fantasma de Stendhal decía un joven con botas y desnudo de cintura para arriba. 
3) Stendhal é brilhante especialmente na costura de seus romances, no dinamismo que utiliza para a construção de suas tramas - sua capacidade de montar pequenos relatos independentes dentro da narrativa. Um exemplo, nas primeiras páginas d'A cartuxa de Parma:
Em maio de 1796, três dias depois da entrada dos franceses em Milão, um jovem pintor miniaturista, meio louco, chamado Gros [Antoine-Jean Gros, 1771-1835, pintor romântico, autor de vários retratos de Napoleão], célebre desde então, e que viera com o exército, ouvindo contar no grande Café Servi as façanhas do arquiduque, que para completar era enorme, pegou a lista dos sorvetes impressa numa folha de papel pardo ordinário. No verso da folha desenhou o gordo arquiduque; um soldado francês lhe dava um golpe de baioneta na barriga, e em vez de sangue dali saía uma quantidade incrível de trigo [o arquiduque estava roubando dos camponeses]. Essa coisa chamada de pilhéria ou caricatura não era conhecida nesse país de despotismo cauteloso. O desenho deixado por Gros em cima da mesa do Café Servi pareceu um milagre caído do céu; foi gravado durante a noite e no dia seguinte o venderam a vinte mil exemplares.
Stendhal, A cartuxa de Parma. Tradução de Rosa Freire d'Aguiar. Penguin-Companhia, 2012, p. 33.

quarta-feira, 22 de agosto de 2012

Atlas, 5

1) A partir das cadernetas de Meyer Schapiro, um deslizamento por analogia: os Cadernos da viagem à China, de Roland Barthes (tradução de Ivone Castilho Benedetti. WMF Martins Fontes, 2012). Barthes não está na seleção que Didi-Huberman faz para seu Atlas, ainda que os Cadernos da viagem à China contenham alguns desenhos - nada, porém, que se compare à constância e qualidade das anotações de Schapiro. Barthes faz poucos desenhos: algumas cabeças, penteados, feições, alguns gestos. Seus Cadernos, no entanto, tem a mesma pulsão de incompletude das cadernetas de Schapiro, e com elas também compartilham a urgência de um trabalho que deve dar conta de um tempo veloz, de uma experiência fluida e difícil de apreender.
2) O foco principal de Barthes, esteja ele na China ou na França (ou no Marrocos), é sempre a linguagem: muitas de suas anotações dizem respeito ao discurso dos chineses, a oscilação entre a espontaneidade (sempre rara) e a fala pronta, oficial, burocrática (aquilo que Barthes chama de "blocos"). Quase no fim da viagem, um apontamento surpreendente, que faz tremer toda a argumentação e a experiência de Barthes até ali: Atenção, escreve Barthes em 30 de abril de 1974, os blocos talvez estejam na tradução, pois muitas vezes discurso abundante de alguém, que provoca riso nos outros, mas se reduz a um bloco, a um significado, quando sai traduzido
3) Como entender a China sem entender a língua? Barthes parece cercar um problema impossível, esmurrando de forma infrutífera uma muralha de alteridade radical. Os Cadernos mostram um Barthes desprovido de suas ferramentas - a China não lhe oferece terreno seguro, todos seus questionamentos se dissolvem. Não há sexualidade, não há moda, não há diferença entre feminino e masculino, Barthes não encontra signos legíveis, não consegue interpretar o que vê. São contra Freud, pois sexualismo, escreve ele. A realidade não é sexual (p. 42). Outras passagens: Civilização sem falo? (p. 30) ou E com tudo isso não terei visto o pipiu de um único chinês. Ora, o que se conhece de um povo, se não se conhece seu sexo? (p. 122). Pipiu? Pois é. A frase original é a seguinte: Et avec tout ça, je n'aurai pas vu le kiki d'un seul Chinois. Or que connaître d'un peuple, si on ne connaît pas son sexe?

domingo, 19 de agosto de 2012

Atlas, 4

 1) Para Georges Didi-Huberman, o atlas é um dispositivo que deve ser constantemente montado, desmontado, remontado - explorado em suas intermináveis possibilidades de contato. O atlas pode ser uma ferramenta para compreender a violência política das imagens na história. O atlas é um ensaio de relação com o tempo, pois está sempre oscilando entre o virtual e o real, a potência e o devir.
2) As cadernetas de Meyer Schapiro são exemplos dessa oscilação: são documentos independentes, enigmáticos, ricos em possibilidades que estão na iminência de uma escolha, de uma montagem. As notas de Schapiro formam a substância primitiva do trabalho crítico posterior - servem como cristais de memória, resíduos do passado que invadem o momento da escritura, que é sempre uma tentativa de atualizar a experiência.
3) Cada fragmento do atlas de Schapiro leva a um momento muito específico e impossível de ser repetido - não se trata apenas de um monumento, vaso ou escultura, e sim de cada um desses elementos decantados pelo tempo e por uma observação direta, corporal, que é depois transformada em traço. É a sobrevivência de um pensamento mágico: o olho observa a materialidade da obra de arte e a mão deve reproduzir no papel aquilo que se vê - a partir daí, o objeto faz parte do corpo, está introjetado, familiarizado.   

sexta-feira, 17 de agosto de 2012

Atlas, 3

 1) O Atlas de Didi-Huberman trata principalmente do projeto incompleto (e impossível de ser completado) do Atlas de Aby Warburg - porém, no percurso, lida com uma série de obras portáteis, construídas como manuais de navegação pelas imagens do passado e do presente. Não apenas os atlas de Jünger e Ernst Friedrich, mas também as cadernetas de viagem de Meyer Schapiro - recheadas de desenhos e notas feitas às pressas: comentários sobre peças e fachadas, esboços de artefatos arcaicos, vasos, iluminuras medievais, gárgulas, indicações de dimensão, peso, material e cor. 
2) Em julho de 1926, Schapiro iniciou uma viagem de pesquisa com duração prevista de quinze meses - iria à Europa e ao Oriente Próximo, recolher dados para sua tese de doutorado (sobre a Abadia de Moissac, no sul da França). Os comentários de Schapiro eram divididos entre os cadernos e as longas cartas que escrevia para sua noiva, Lilian, que estava em Nova York terminando a faculdade de medicina. O jovem Schapiro - tinha 22 anos - circulava pelo Velho Mundo, podendo encontrar Joseph Roth ou Walter Benjamin pelas ruas, ver a estreia de Metropolis, de Fritz Lang, ou vivenciar uma porção das maravilhosas coisas de 1926 que Gumbrecht aponta em seu livro.
3) Não existe sequer a possibilidade de Benjamin e Schapiro não terem se cruzado por Paris - ambos frequentavam diariamente as salas de estudo, o setor de manuscritos e o setor de reproduções da Biblioteca Nacional, em Paris (assim como o fazia, religiosamente, Bataille). Tudo me interessa, escreve Schapiro em uma carta enviada de Milão, citando Valéry. Seus cadernos são impressionantes montagens de tempos e espaços: de uma página a outra, dos etruscos ao Império Bizantino, passando por Jerusalém, Turquia, Barcelona, Roma, Líbano, Grécia e Egito.      
  

sexta-feira, 10 de agosto de 2012

Atlas, 2

1) Segundo Georges Didi-Huberman, durante a I Guerra Mundial, Aby Warburg transformou-se definitivamente em uma espécie de Atlas moderno - profundamente afetado pela tragédia da guerra, Warburg começa um fanático colecionismo que terminará por levá-lo à loucura. Lê vários jornais por dia, recortando notícias e imagens; compra e coleciona fotografias e cartões-postais; chega a pensar que a única solução é assassinar a família e depois cometer suicídio. Organiza e cataloga um imenso arquivo com os papeis que coleciona.
2) Ernst Jünger, na posição de combatente da guerra, também teve a chance de construir seu atlas de imagens da guerra, tão extenso que rendeu duas publicações: A face da guerra mundial, lançado em 1930, e O mundo em mudança: imagens do nosso tempo, lançado em 1933, com Emmanuel Schultz. Algumas das imagens foram feitas pelo próprio Jünger. A maioria, no entanto, foi fruto de um trabalho posterior de coleta e organização.
3) Didi-Huberman confronta o atlas de Jünger, que qualifica de orgulhoso (no sentido patriótico do termo), ao atlas de Ernst Friedrich, Krieg dem Kriege!, publicado em 1924 (e traduzido como Guerra contra guerra!). Friedrich não apenas realizou um atlas que era o extremo oposto do de Jünger (trágico, acusatório, melancólico), como era ele próprio o extremo oposto de Jünger - ou seja, muito longe de ser um soldado: anarquista, sabotador das forças armadas, pacifista e fundador, também em 1924, do Museu Anti-Guerra de Berlim (destruído pelos nazistas em 1933 e transformado em base de repressão e tortura).  
  

domingo, 5 de agosto de 2012

Atlas, 1

1) Homero, na Odisséia (I, 52-54), define o titã Atlas como um espírito maligno - detentor de um saber trágico, construído a partir do exílio e da dor (e ainda assim consagrado pai fundador da astronomia, da astrologia, da geografia e da filosofia). Tudo que Atlas aprendeu sobre o universo foi consequência direta de seu sofrimento, de seu violento contato com a esfera que carrega. 
2) Atlas é irmão de Prometeu, também ele castigado por Zeus. Os dois irmãos foram acorrentados em pontos opostos do mundo, castigados pela derrota na guerra contra os deuses com "suplícios dialéticamente dispostos", nas palavras de Didi-Huberman: Prometeu com um suplício visceral (o fígado devorado), Atlas com um suplício sideral (o céu suportado).  
3) O mito de Atlas atravessa a história humana como uma imagem da ambivalência: um castigo transformado em saber imenso; um exílio transformado em domínio absoluto sobre o mundo; um guerreiro condenado à imobilidade que é, ao mesmo tempo, um reservatório inesgotável de ideias e conceitos. A própria posição do corpo de Atlas marca essa ambivalência: uma perna mostra o esgotamento, a prostração; a outra, o desejo de se erguer. 

sexta-feira, 3 de agosto de 2012

Atlas

Em seu livro Atlas, como levar o mundo nas costas? (um longo ensaio que acompanhou o catálogo de uma exposição que ele mesmo organizou), Georges Didi-Huberman enfatiza, a partir de Aby Warburg, as inúmeras sobrevivências possíveis da imagem do titã Atlas, condenado por Zeus a sustentar o universo em seus ombros. Atlas significando, etimologicamente, aquele que carrega - aquele que carrega as imagens que contam a história do mundo, para Warburg e Didi-Huberman. A imagem do titã é ambivalente, instável. Na terminologia de Walter Benjamin, é uma imagem dialética - aquela que condensa em si temporalidades conflitantes, que exalta, simultaneamente, a coesão e o caos, ocupando posições díspares dentro de uma mesma constelação de possibilidades (mais um capítulo na extensa história do relacionamento entre Warburg e Benjamin). Atlas é uma imagem da potência e do sofrimento, do castigo e da glória - foi violentamente obrigado ao exílio por Zeus, mas foi lá que adquiriu um saber (uma perspectiva, uma visão do mundo) imenso e incomparável. A imagem de Atlas é a história do mundo em um relâmpago - primitivo, arcaico, atemporal, profético. É por isso que Atlas deixou de ser a imagem de um objeto e passou a ser a imagem de um método, de uma operação de abertura da história.