sábado, 31 de outubro de 2015

Repetição

No plano filosófico foi Wittgenstein quem examinou o significado de uma palavra no seu uso (Gebrauch). Como se deduz do seu livro Notas sobre o 'Ramo de Ouro' de Frazer, ele atesta a autonomia dos comportamentos, dos gestos e dos rituais em relação às crenças, às explicações, aos mitos: a sua definição do homem como "animal cerimonial" liberta a noção de "uso" de toda dimensão acanhadamente funcional e utilitária.
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Repetição, portanto, não quer dizer de modo algum reiteração do idêntico. Em Kierkegaard, a repetição desempenha a mesma função que a "mediação" na filosofia de Hegel: se a novidade se apresentasse no seu espontâneo imediatismo, seria imóvel ou indeterminada. Pode-se alcançar uma novidade efetiva só através do caminho indireto da repetição.
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A repetição em Nietzsche assume um valor fortemente propulsivo e energético: o l'amor fati é vontade de eterno retorno. Eu posso me apropriar do passado apenas se o amo. A ultrapassagem não pode ser uma fuga ingênua para a frente: podemos ser fortes apenas se sempre o fomos, apesar das derrotas e frustrações.
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Para Heidegger, a repetição (Wiederholung) é considerada, em Ser e tempo, uma característica da existência autêntica; entretanto, ela não deve ser entendida apenas como fidelidade a uma decisão passada. A repetição não cai na armadilha do passado, reproduzindo-o tal e qual: não é restauração, nem reiteração do idêntico. O passado não conta enquanto passado, nem o futuro enquanto futuro. Isso não exclui a recordação, nem a antecipação, mas a primeira deve ser entendida como recordar-se de algo que nunca foi pensado, e a segunda adianta-se à maneira do "passo atrás".
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É no pensamento de Freud que a "repetição diferente" conquista um lugar de absoluto destaque, porque está estritamente ligada com a terapia psicanalítica, baseada na transferência (Übertragung). O paciente identifica no analista um retorno, quase uma reencarnação de uma pessoa importante do seu passado, e transfere para ele aqueles sentimentos e aquelas reações que estavam destinados ao modelo. Essa relação não é, entretanto, mediada pela recordação; o paciente não se lembra de nada daquilo que transfere para o analista, mas o exterioriza na ação. Ele realiza uma repetição, ignorando que seja assim.

(Mario Perniola. Pensando o ritual: sexualidade, morte, mundo. Trad. Maria do Rosário Toschi. São Paulo: Studio Nobel, 2010, p. 28-32)

domingo, 25 de outubro de 2015

O passado e o discurso

Era improvável que Vidal, nascido em 1950, ou 51, houvesse presenciado uma cena como a que acabava de me falar: na época, se escondia tudo das crianças, principalmente o mais vergonhoso. Eram tempos diferentes dos atuais: ninguém confessava uma humilhação, mesmo que tivesse sofrido reiteradas e graves. Agora, em compensação, não há nada mais rentável do que se proclamar vítima, subjugado e pisoteado, e difundir entre gemidos as próprias misérias. É curioso que tenha desaparecido o orgulho, durante o pós-guerra era muito forte o que alimentava os vencidos, que nem falavam de seus mortos e presos, como se trazê-los à luz do dia - mesmo que em privado - já fosse um opróbrio; não sei, um acatamento, um reconhecimento daquilo que tinham causado e de seu poder de fazer mal. Não se calava só por medo e para não refrescar a memória dos que ainda tinham a capacidade de infringi-lo, aumentá-lo e ampliá-lo; mas também para não lhes proporcionar um trunfo, para não baixar mais a cabeça diante deles, com lamentos. (Javier Marías, Assim começa o mal. Trad. Eduardo Brandão, Cia das Letras, 2015, p. 405).
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Agora está prestes a começar a escrever sobre o filme de William Wyler de 1946, Os melhores anos de nossas vidas, uma obra central para sua tese e que ela considera o épico nacional daquele momento particular da história americana - a história de três homens quebrados pela guerra e das dificuldades que enfrentam quando voltam para suas famílias, a mesma história vivida por milhões de pessoas na época. (...) A história se concentra precisamente nos conflitos entre homem e mulher que mais lhe interessam. Os homens não sabem mais como agir com as esposas e namoradas. Eles perderam o apetite pela vida doméstica, o sentimento de lar. Após anos vivendo longe de mulheres, anos de combate e matança, anos brigando para sobreviver aos horrores e perigos da guerra, eles se viram cortados de seu passado civil, mutilados. (...) Quando ela pensa naquela geração de homens calados, meninos que passaram pela Depressão e cresceram para se tornarem soldados, ela não os censura por se recusarem a falar, por não quererem voltar para o passado, mas como é curioso, ela pensa, como é altamente incoerente que a geração dela, que não tem muito do que falar por enquanto, tenha produzido homens que nunca param de falar, homens como Bing, por exemplo, ou homens como Jake, que fala de si próprio à menor deixa, que tem uma opinião a respeito de todos os assuntos, que cospe palavras da manhã à noite, mas só porque fala não significa que ela queira ouvi-lo, ao passo que com os homens calados, os velhos, aqueles que já estão quase morrendo, ela daria qualquer coisa para ouvir o que eles têm a dizer. (Paul Auster, Sunset Park. Trad. Rubens Figueiredo. Cia das Letras, 2012, p. 90, 91 e 96).
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Três quartos de hora mais tarde, para não perder a paisagem do lago Genebra, cujo espetáculo não cansa de me admirar toda vez que se abre, eu estava prestes a pôr de lado um jornal de Lausanne comprado em Zurique e apenas folheado, quando meus olhos pousaram numa reportagem que dizia que os restos do corpo do alpinista bernês Johannes Naegeli, dado como desaparecido desde o verão de 1914, haviam sido novamente expostos à luz pela geleira de Oberaar, setenta e dois anos mais tarde. Assim é que eles voltam, os mortos. Às vezes afloram do gelo mais de sete décadas depois e jazem à beira da morena, um montículo de ossos brunidos e um par de botas com grampos de ferro. (W. G. Sebald, Os emigrantes. Trad. José Marcos Macedo. Cia das Letras, 2009, p. 29).

terça-feira, 13 de outubro de 2015

Histórias do olho

Berthe Morisot com um buquê de violetas, 1872
1) Em seu livro sobre Manet, de 1955, Georges Bataille afirma que o pintor foi responsável pelo início da derrocada da retórica da representação na pintura. Em Manet, afirma Bataille, não há emoção, construção de ambiente, apreço pelos detalhes, em suma, não há conteúdo. A pintura é aquilo que é, um estudo de caso do olhar, um experimento - nesse sentido, a leitura técnica que Bataille faz de Manet resgata pontos de seu romance de 1928, A história do olho, que é também um exercício de distanciamento do conteúdo (a violência, o choque, os atos extremos) e exploração do olhar como fenômeno autossuficiente (e também a indiferença de Madame Edwarda).   
2) Sabe-se que a ficção de César Aira se pretende também como um ataque à retórica da representação. Aira fala de sua ficção como um tipo de máquina, que se faz sozinha, que se multiplica a partir de procedimentos de escritura. Em muitos de seus livros a história contada espelha esse gesto de multiplicação quase ao acaso. Ainda assim, são estudos de caso, histórias muitas vezes bizarras, mas que seguem um fluxo, ainda que errático. Como nas pinturas de Manet, não se reconhece com precisão o fundo, ainda que ele se anuncie. O foco de Aira também não está no conteúdo, mas na própria ocorrência da escritura. A escritura é aquilo que é. Como Bataille fala de Manet, também de Aira se pode dizer - trabalham a partir de uma "suprema indiferença".  
3) Em um dos ensaios de Olhar Escutar Ler, Lévi-Strauss fala de Rimbaud, de sua capacidade de distanciamento do conteúdo e envio à ocorrência própria da escritura. Lévi-Strauss fala da textura da escritura, de sinestesia, da possibilidade da palavra evocar cores: "Quando Rimbaud torna o a negro, isso surge, portanto, como um escândalo fonético e visual, imputável a uma vontade de provocação revelada em outros exemplos pelo poeta". E na página seguinte alcança Manet: "A respeito do retrato de Berthe Morisot com o buquê de violetas, Valéry também utilizaria o adjetivo éclatantes: 'O negro que só Manet possui [...] os espaços resplandecentes do negro intenso [...] o todo-poder desses negros'" (trad. Beatriz Perrone-Moisés, Cia das Letras, 1997, p. 101-102). Valéry e Lévi-Strauss ressaltam, portanto, esses espaços que enfatizam não o conteúdo, mas a substância que capta o olhar, que permite o olhar, que funda a história do olhar em primeiro plano.    

domingo, 4 de outubro de 2015

Máscaras e assinaturas

Na entrevista com Derek Attridge - agora conhecida como Essa estranha instituição chamada literatura , Derrida fala de sua preferência pelos escritores que estavam, de certa forma, para além do ato da escritura, no espaço de cancelamento dessa literatura que se institui, que cria e inventa (Derrida desenvolve isso no ensaio de 1963, "Força e significação", quando fala de Artaud e de sua declaração acerca da escritura que precede a ideia, que não depende da ideia para se iniciar). Literatura que não "objetiva o arquivamento" e que não recusa sua "assinatura", como diz Derrida, carregada desse desejo de incompletude. "Os primeiros textos pelos quais me interessei eram marcados por esse desejo: Rousseau, Gide ou Nietzsche - textos que não eram simplesmente literários, tampouco filosóficos, mas confissões: os Devaneios de um passeador solitário, As confissões, o Diário de Gide, A porta estreita, Os frutos da terra, O imoralista, e, ao mesmo tempo, Nietzsche, o filósofo que fala em primeira pessoa, ao passo que multiplica nomes próprios, máscaras e assinaturas" (Essa estranha instituição chamada literatura, trad. Marileide Esqueda, BH: UFMG, 2014, p. 48).
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Se a ideia de uma literatura com desejo de incompletude, cuja escritura procura fundar uma instituição para a literatura que é falha e incompleta, longe da certeza, se tudo isso não fosse suficiente para fazer relembrar Fernando Pessoa, então certamente a multiplicação de "nomes próprios, máscaras e assinaturas" proveria a conexão. A breve vida de Pessoa coube dentro da de Gide, longevo (Pessoa: 1888-1935; Gide: 1869-1951), figura central desse paradigma exposto por Derrida (não só por ele, mas sobretudo por Barthes, o Barthes de A preparação do romance, seu seminário sobre a literatura como desejo de incompletude, como tensão entre máscara e assinatura). É preciso dizer que O Livro do Desassossego abarca tal paradigma e o leva além. Em carta de 3 de dezembro de 1931 a Gaspar Simões, Pessoa escreve: "Meu querido Gaspar Simões, nunca peça desculpa de nada, sobretudo ao público. E quem lhe diz que a história definitiva da literatura não levará o José Régio tão alto, ou mais alto, que o Tolstoi ou o André Gide, ou quem mais v. citasse? Não me custa nada a admitir essa possibilidade, sobre­tudo em quem, sendo tão jovem como o Régio, já tanto conseguiu adentro da sua sensibilidade. De resto – admito – nunca pude ler o Gide, e, quanto ao Tolstoi, basta ser russo para eu ter dificuldade em dar por ele". Talvez essa negativa acerca de Gide não seja tão fiável, num autor de tantas máscaras - mas a presença, afinal, está aí, a presença da assinatura - Gide.

sexta-feira, 2 de outubro de 2015

Indagação e equívoco


Nossa tarefa talvez seja indagar por que tantas obras e sistemas de pensamento poderosos deste século têm sido o lugar de "mensagens" filosóficas, ideológicas e políticas que são às vezes conservadoras (Joyce), às vezes brutal e diabolicamente homicidas, racistas, antissemitas (Pound, Céline), outras vezes equivocadas e instáveis (Artaud, Bataille). As histórias de Blanchot ou de Heidegger, a de Paul de Man também, são até mais complicadas, mais heterogêneas em si mesmas e tão diferentes umas das outras que essa mera associação correria o risco de confundir mais ainda alguns daqueles que multiplicam sua própria inépcia a esse respeito. A lista, infelizmente, seria longa. Na questão do equívoco, da heterogeneidade ou da instabilidade, a análise, por definição, escapa a todo fechamento e a toda formalização exaustiva. (Jacques Derrida, Essa estranha instituição chamada literatura: uma entrevista com Jacques Derrida. Trad. Marileide Esqueda. BH: UFMG, 2014, p. 76).